Título de Doutor Honoris Causa de ditadores são revogados no Rio Grande do Norte Geral

segunda-feira, 28 abril 2025
Colegiado revogou títulos a ditadores por unanimidade (Foto: Marina Gadelha / UFRN)

UFRN revoga honraria dada a Castelo Branco e Médici durante o regime militar no Brasil

Entre as honrarias concedidas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) a militares e colaboradores da ditadura militar implantada no Brasil em 1964 e que durou mais de 20 anos estão a Medalha de Mérito Universitário, a Medalha de Mérito Universitário no grau de Grande Conselheiro, a Medalha de Amigo da UFRN, o Diploma de Amigo da UFRN, a Medalha de Mérito Funcional, o título de Orador da turma única de formandos (1973) e o cargo de Paraninfo da Solenidade Única de Colação de Grau (1974).

Dos 35 títulos aprovados entre 1966 e 1982, dois acabam de ser anulados pela UFRN: foram cassados os títulos de Doutor Honoris Causa dos ditadores Humberto de Alencar Castello Branco e Emílio Garrastazu Médici, concedidos em 1966 e 1971, respectivamente. O reitor da UFRN nas duas ocasiões era Manoel Onofre Lopes. A decisão unânime do Conselho Universitário (Consuni) da UFRN ocorreu no último dia 25 de abril.

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O portal Nossa Ciência conversou com professores da UFRN sobre a revogação e seus significados tanto para a História e quanto para a contemporaneidade.

“A revogação desses dois títulos, hoje, condiz com o que a Universidade prega e com o que ela expõe nos seus documentos oficiais. O recado é claro: é uma instituição democrática.” A afirmação é do relator do processo que culminou com a cassação, Jeferson de Souza Cavalcante, professor titular do Departamento de Fisiologia e Comportamento e diretor do Centro de Biociências da UFRN.

O processo seguiu seu curso normalmente em todas as instâncias da Universidade, sem objeções ou resistências de qualquer setor da comunidade universitária. Para o relator, esse trâmite normal na cassação dos títulos demonstra para a sociedade que a democracia é um valor fundamental para a instituição. “A unanimidade mostra um pensamento geral de um colegiado democrático. Eu acho que não existe conotação política nessa decisão. O que existe é que a democracia, independentemente de qualquer coisa, tem de ser preservada”, declara.

Regras

A concessão do título de Doutor Honoris Causa pela UFRN tem suas regras definidas pelo Regimento Geral da instituição. O artigo 139 do regimento prevê que podem receber o título personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído de modo notável para o progresso das ciências, letras ou artes ou que tenham prestado relevantes serviços à Universidade ou à humanidade.

Esse regimento foi uma das bases para a revogação da concessão dos títulos aos dois presidentes da ditadura. Além disso, foram utilizados o Relatório da Comissão da Verdade da UFRN (CV-UFRN) e o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A CV-UFRN foi instituída em outubro de 2012 e instalada em dezembro de 2013, pela então reitora Ângela Paiva. O Relatório da CV-UFRN recomenda a anulação fundamentando-se na comprovada responsabilidade de ambos os agraciados pelas graves violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar.

A implantação de algumas recomendações da CV-UFRN é um marco histórico e de grande importância para que fatos como a ditadura militar não se repitam. A opinião é de Maria da Conceição Fraga, professora titular aposentada do Departamento de História da UFRN. “A Comissão (da Verdade) permitiu identificar, montar cenário de tudo o que aconteceu naquela época. Mas as recomendações são mais importantes, porque são decisões que nos fazem lembrar, que nos fazem prevenir, que nos fazem promover a justiça e assegurar a memória para nunca esquecer dos acontecimentos”, comemora.

Castello Branco e Médici

Primeiro nome na lista de responsáveis por graves violações de direitos humanos no período da Ditadura, Castello Branco foi o primeiro dos presidentes da República durante o regime. Esteve no cargo entre 15 de abril de 1964 e 15 de março de 1967.

De sua responsabilidade pessoal é a criação do Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão encarregado de coordenar a repressão do Estado brasileiro, cujas ações foram dirigidas pelos presidentes militares subsequentes. A definição do objetivo do SNI consta do relatório da CNV.

Com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, o regime militar se consolidou com força, eliminando ou neutralizando quem se opusesse a ele. O Relatório da CV-UFRN descreve: “Estava aberta a temporada de perseguições políticas. É neste quadro do AI-5 que assume a presidência General Emílio Garrastazu Médici, iniciando aquela que seria a época mais obscura dos governos militares”.

Agentes infiltrados em sala de aula

Conceição Fraga: revogação é um ato de justiça e respeito à memória das vítimas da repressão (Foto: Instagram)

A professora Fraga, que ingressou na graduação da UFRN nos últimos anos da ditadura, comenta sobre as consequências práticas do Decreto nº 477/69. A medida proibia qualquer manifestação de professores, alunos ou funcionários, sob pena de processos, prisão e perda de direitos.

“A época em que todo mundo estava em aula, trabalhando e tinha dentro da Universidade agentes policiais infiltrados na comunidade universitária para vasculhar, para fofocar e para informar aos agentes da repressão o que ocorria dentro da Universidade”, revela. Ela acrescenta que, dessa permanente vigilância, resultava que qualquer pessoa podia ser presa, desaparecer, ser morta, exilada ou perseguida…

A revogação reforça a responsabilidade das instituições de esclarecer às gerações mais jovens sobre os horrores do passado. É o que aponta a fala de Jeferson Cavalcante. “A memória tem de estar sempre viva, tem de ser lembrada e os nomes têm de ser colocados com muita clareza. Às vezes, você tem gerações que não sabem o que é uma ditadura, não sabem o que é um ditador. É importante nominar, mostrar… Trazer à memória os nomes e os fatos. É importante que se faça sempre isso. Essa é uma memória ruim, mas ela é importante como lição”, afirma.

Outros agraciados

A lista de agraciados com honrarias pela UFRN revela fatos que chamam a atenção. Alguns nomes de destaque no período da ditadura receberam mais de um título. Jarbas Passarinho, que foi ministro do Trabalho, da Educação e da Previdência, além de presidente do Senado entre 1967 e 1985, recebeu a Medalha do Mérito Universitário em 1971, e, no ano seguinte, a Medalha do Mérito Universitário no Grau de Grande Conselheiro e o título de Doutor Honoris Causa.

Outro agraciado três vezes foi Ney Braga, ministro da Educação do Governo Geisel. Antes de receber o título de Doutor Honoris Causa em 1977, ele recebeu a Medalha de Mérito Universitário no grau de Grande Conselheiro e foi paraninfo da Solenidade Única de Colação de Grau, em 1974.

Tarso Dutra, ministro da Educação e Cultura no Governo Costa e Silva foi um dos nomes civis da Ditadura Militar. Trabalhou na área da educação, para adaptar o sistema educacional à lógica autoritária e tecnocrática do regime. Em seu currículo consta a infame revisão do AI-5. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 1969 e a Medalha de Mérito Universitário no grau de Grande Conselheiro, em 1971.

Coronel Confúcio Pamplona, cuja atuação no governo militar teve pouco destaque, recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 1973, após ter sido condecorado com a Medalha de Mérito Universitário no grau de Grande Conselheiro, em 1972, quando ocupava o cargo de Secretário Geral do MEC.

No presente, a democracia importa

Jeferson Cavalcante: a democracia tem que ser preservada (Foto: UFRN)

“A revogação proposta, não obstante constituir ato simbólico, representa resgate histórico, evitando que período sombrio da história do Brasil seja esquecido, para que jamais volte a se repetir.” O texto que compõe a peça assinada pelo reitor Daniel Diniz remete a um caso ocorrido há mais de 50 anos, mas lembra que as consequências ainda afetam o presente.

Conceição Fraga, organizadora de uma publicação de 600 páginas sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Rio Grande do Norte, afirma que a revogação dos títulos dos ditadores presidentes é um ato de homenagem, justiça e respeito à memória das vítimas da repressão e seus familiares. “Mas também significa mostrar às pessoas que tentaram recentemente dar outro golpe no país que, aqui na UFRN, nós não negociamos com quem tenta destruir a democracia do país, quem tenta quebrar o Estado Democrático de Direito”, exclama.

Ao definir como oportuno o tempo da revogação dos títulos, o professor Cavalcante lembra que os acontecimentos dos últimos três anos dão ainda mais importância à revogação. Ele se refere à tentativa de golpe pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores em 2022 e 2023. “Talvez, se (a revogação) fosse há 10 ou 15 anos, o impacto não seria tão forte como o impacto que tem hoje. As instituições devem analisar a que tipo de sociedade elas servem”, defende.

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Lista

Homenageados pela UFRN entre 1966 e 1982 e o respectivo ato normativo*

Título de Doutor Honoris Causa:

Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco – Presidente da República. Ata CONSUNI 2a extra -18/04/66.

Flávio Suplicy de Lacerda – Ministro da Educação no governo Castelo Branco. Resolução CONSUNI nº 041/1966.

Raymundo Moniz de Aragão – Ministro da Educação no governo Castelo Branco. Resolução CONSUNI nº 100/1968.

Tarso Dutra – Revisor do Ato Institucional nº 5. Resolução CONSUNI nº 005/1969.

Senador Jarbas Passarinho. Resolução CONSUNI nº 012/1971.

General Emílio Garrastazu Médici – Presidente da República. Proposta do Reitor Genário Fonseca. Resolução CONSUNI nº 047/1971.

Coronel Confúcio Pamplona. Proposto pelo Reitor Genário Fonseca, Leide Morais, Domingos Gomes de Lima e Hélio Varela de Albuquerque. 1973.

Senador João Calmon. Resolução CONSUNI nº 002/1973.

Senador Ney Braga. Ministro de Estado de Educação e Cultura do governo Geisel. Resolução CONSUNI nº 038/1977.

Ministro José Américo de Almeida. Resolução CONSUNI nº 034/1978.

Jornalista Roberto Marinho. Dono da TV Globo e apoiador declarado do Golpe Militar de 1964. Resolução CONSUNI nº 060/1981.

Rubem Carlos Ludwig. Ministro da Educação. Resolução CONSUNI nº 018/1982.

Medalha de Mérito Universitário:

Senador Jarbas Passarinho – Ministro da Educação. Proposta do Reitor Onofre Lopes. Resolução CONSUNI nº 054/1970.

Contra-Almirante Osório de Abreu Pereira Pinto. Proposta do Conselheiro José Nunes Cabral de Carvalho. 1972.

Contra-Almirante Newton Braga de Faria. Comandante da Base Naval de Natal. Resolução CONSUNI nº 24/1973.

Brigadeiro Everaldo Breves. Comandante do CATRE. Proposta do Reitor Genário Fonseca. 1974.

Medalha de Mérito Universitário no grau de Grande Conselheiro:

Senador Tarso Dutra. Resolução CONSUNI nº 018/1971.

Senador Jarbas Passarinho. Proposta do Reitor Onofre Lopes. Resolução CONSUNI nº 007/1971.

General de Brigada Carlos de Meira Mattos – Vice-chefe do Gabinete Militar do Governo Castelo Branco – Proposto pelo Reitor Genário Fonseca. Resolução CONSUNI nº052/ 1971.

Coronel Confúcio Pamplona. Secretário Geral do Ministério de Educação. 1972.

Coronel Júlio Ribeiro Gontijo – Secretário de Apoio do MEC. Proposto por Genário Fonseca, Leide Morais, Domingos Gomes de Lima e Zacheu Luiz Santos. 1973.

Senador Ney Aminthas de Barros Braga. Resolução CONSUNI nº 075/1974.

Dr. Raimundo de Moura Brito. Ministro da Saúde do governo Castelo Branco. Resolução CONSUNI nº 048/1975.

Professor Euro Brandão. Ministro da Educação no governo Figueiredo. Resolução CONSUNI nº 016/1976.

Dr. Paulo de Almeida Machado. Ministro da Saúde. Resolução CONSUNI nº 029/1977.

Diploma de Amigo da UFRN

Coronel Edgar Ferreira Maranhão. Proposta do Reitor Domingos Gomes de Lima. 1976.

Vice-Almirante Arthur Ricart da Costa. Resolução CONSUNI nº 015/1978.

General de Brigada Waldyr Pereira da Rocha. Proposta do Reitor Domingos Gomes de Lima. 1979

Brigadeiro Luiz Portilho Antony. Proposta do Reitor Domingos Gomes de Lima. 1979

Contra-Almirante Milton Ribeiro de Carvalho. Proposta do Reitor Domingos Gomes de Lima. 1979.

Capitão Dr. Kerginaldo Gomes Trigueira, Oficial do Exército. Proposta do Diretor do Museu Câmara Cascudo. 1974.

Medalha de Mérito Universitário no Grau de Oficial

Coronel José Estevam Mosca. Resolução CONSUNI nº 55/1982.

Medalha de Mérito Funcional:

Major Cleantho Homem de Siqueira. Resolução CONSUNI nº 16/1977.

Orador

General Emílio Garrastazu Médici foi orador da turma única de formandos – Presidente da República. Resolução CONSUNI nº 86/1973.

Paraninfo

Senador Ney Aminthas de Barros Braga foi paraninfo da Solenidade Única de Colação de Grau. Resolução CONSUNI nº 077/1974.

(*Fonte: 60 anos do Golpe Civil-Militar no Rio Grande do Norte, de Maria da Conceição Fraga e João Maria de Sousa Fraga)

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Mônica Costa

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