Quando obtiver aprovação do Conselho Nacional de Saúde, projeto liderado por Kássio Gomes de Lima utilizará técnicas espectroscópicas para analisar amostras de sangue de 480 voluntárias no RN
Uma média de 22 pessoas são diagnosticadas com câncer, diariamente, no Rio Grande do Norte. Por ano aproximadamente oito mil pessoas são acometidas pelos mais variados tipos da doença no estado. O câncer de próstata e de mama aparecem como os principais causadores de mortalidade entre homens e mulheres potiguares. Os dados são da Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap).
Muitas mortes, porém, poderiam ser evitadas se a doença fosse identificada num estágio inicial, de forma rápida e simples. Essa é a proposta do professor Kássio Michell Gomes de Lima, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que em 2016 colocará em prática o Programa de rastreamento primário de câncer de mama no estado do RN, em parceria com a Liga Norte Riograndense contra o Câncer, em Natal.
Nesse programa, o doutor em Química pela Unicamp utilizará ferramentas espectroscópicas, mais especificamente as técnicas de infravermelho e de raman para analisar amostras de sangue de mulheres. A espectroscopia raman é uma técnica fotônica de alta resolução que pode proporcionar, em poucos segundos, informação química e estrutural de quase qualquer material, composto orgânico ou inorgânico permitindo assim sua identificação.
“Nossa ideia é que rapidamente com essas técnicas poderemos identificar uma alteração na mama, através do sangue, possibilitando que essa pessoa faça o tratamento adequado, o quanto antes, evitando que ela venha a identificar essa alteração tardiamente. Isso de forma rápida, simples, através do sangue”, explica. Segundo ele, a vantagem dessas técnicas é que as respostas são rápidas. Após a medição, em um minuto e meio depois o profissional tem a informação, a partir daí os dados são tratados no computador para a obtenção do resultado final. “Você pode rapidamente dar um diagnóstico. Com a medicina clássica você demoraria muito tempo para dar o resultado”, compara Lima.
A metodologia do programa consiste em rastrear o câncer de mama utilizando amostras de sangue de 480 mulheres, sendo 240 saudáveis (grupo controle) e outras 240 pacientes da Liga (alteradas). As participantes terão entre 29 e 80 anos. De acordo com o professor Lima, esse número de mulheres foi obtido por meio de um critério de amostragem populacional usado para projetos de pesquisa que considera o número de habitantes da cidade, de mulheres e de mulheres em tratamento. “Basicamente chegamos a 5% do número total que é calculado através de uma relação estatística”, detalha.
Quanto à amplitude na faixa etária, Lima explica que isso é para garantir um parâmetro de “não alteração” para o algoritmo de análise que será utilizado na pesquisa. “O algoritmo tem que ter essa informação guardada – de amostras não alteradas – para, a partir de um determinado estágio, começar a ler as alterações, daí ele fixará uma idade que é responsável para as alterações, que achamos ser mais propenso em mulheres de 40 anos. O algoritmo terá aí uma fase de treinamento com amostras negativas, e a partir daí precisaremos alimentá-lo com informações antes dessas alterações, para que ele garanta com exatidão quando tiver as alterações”, afirma.
Conselho de ética
Como todo projeto que envolve seres humanos, o programa do professor Lima está sendo analisado pelo Comitê de Ética do CONEP, que é o Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. “A proposta foi depositada no Conselho em maio desse ano e está na fase final de aprovação. É um processo muito rigoroso, pois vamos trabalhar com seres humanos. Estamos fazendo tudo do jeito que manda o ‘figurino’. Quando ele for aprovado, nós de fato poderemos fazer as intervenções junto às mulheres”, anima-se. Ainda de acordo com ele, a demora na aprovação ocorre porque muitas vezes o projeto volta aos pesquisadores com pendências que devem ser corrigidas. “Cada vez que o projeto volta leva 45 dias, pois é o intervalo que o conselho se reúne”, completa Lima.
Durante a concepção do programa, Lima pensou em trabalhar com tecido de mama, mas o protocolo era muito rigoroso, muito mais do que com sangue que é um procedimento mais corriqueiro e não tão invasivo quanto retirar uma amostra de tecido. “Por isso com o passar do tempo eu fui mudando a maneira de amostragem, de tecido para sangue. Quem sabe num segundo desdobramento trabalharemos com tecido”, planeja.
Química médica
O professor Lima também pretende, com esse programa, convencer os gestores de hospitais a adquirir o equipamento e ter uma equipe multidisciplinar formada pela universidade para ficar dentro do hospital. Com isso, de acordo com ele, diminuiriam os riscos com as amostras de sangue que hoje precisariam ser transportadas do hospital para a universidade. “Ao passo que se equipamentos e equipe estivessem lá, uma fração da amostra de sangue poderia ir para a espectroscopia e o restante iria fazer os parâmetros convencionais. Quando você colhe o sangue de um paciente, algo em torno de 2ml, do plasma se utiliza muito pouco para fazer todos os parâmetros que a medicina convencional precisa e muito é descartado. Esse descarte seria aproveitado por uma equipe de espectroscopia, ao mesmo tempo que se analisaria os aspectos hematológicos – glicose, colesterol, triglicérios, creatinina etc – uma outra fração do plasma seria feita a análise espectral”, avalia.
A Liga do RN, por exemplo, conta com uma equipe de físicos atuando na área de física nuclear, com tomografias, petscan (tomografias por emissão de pósitrons) e radiologia. Entretanto, Lima destaca que o mesmo não ocorre com os químicos. “Isso no Brasil não existe, não existe essa aproximação da química com a medicina, seria a química médica. E nisso esse trabalho será pioneiro”, aposta.
Novos profissionais já estão sendo preparados para atuar na novíssima Química Médica. O professor Lima destaca três alunas de doutorado do Programa de Pós-Graduação da Química da UFRN que farão parte do projeto da Liga. “Todas elas trabalham com química em hospitais. Uma delas trabalha exclusivamente com mama, o uso da espectroscopia para mama. Outra usa essas técnicas para identificação de bactérias no ambiente hospitalar e a terceira trabalha com essa mesma linha de identificação para fungo, em hospitais. Quando essas alunas terminarem o doutorado e estiverem prontas para entrar no mercado de trabalho, espero que elas tenham uma avenida de perspectivas para trabalhar e não somente uma linha”.
Um programa nacional
O Programa de rastreamento primário de câncer de mama no estado do RN terá uma duração de quatro anos e ao final todos os resultados serão apresentados ao Ministério da Saúde para que a metodologia seja validada como um exemplo de sucesso dentro de uma amostragem populacional significativa, podendo ser inserido dentro de um programa nacional. “Depois do RN, esse trabalho pode ser realizado por outras universidades federais UFPB, UFAL, UFPE junto com hospitais das capitais. Cada universidade tem essas técnicas o que nos une seria alimentar com amostragens. Poderíamos começar pelas capitais e depois fazer um programa de rastreamento nacional, começando local e ampliando para o nacional, por quê? Porque todos vão fazer o mesmo protocolo, tirar o sangue, centrifugar, fazer o plasma, colocar no infravermelho e ler. Uma vez lido você pode mandar esse dado para um computador central, para onde todos também vão mandar seus dados. Começa como um projeto local, mas ele tem amplitude para ser um programa nacional”, planeja Lima.
O sonho do professor Lima é que ao ganhar alcance nacional, esse rastreamento primário chegue a todas as unidades de saúde do país. Atualmente, chegam para tratamento na Liga pacientes de todo o estado, mas que se encontram num estágio avançado da doença. “Se lá na cidade do interior do RN houvesse o uso dessas técnicas dentro da unidade de saúde do município, se ela já pudesse fazer a identificação daquele sangue, a paciente só viria para a Liga para um tratamento, caso fosse identificada a doença ainda nos primeiros estágios com chances mais altas de cura”, observa.
Inspiração
A inspiração para esse programa pioneiro, o professor Lima foi buscar em sua participação num estudo realizado em 2014, na Universidade de Lancaster, na Inglaterra. Nesse trabalho, os pesquisadores utilizaram as ferramentas espectroscópicas, as técnicas do infravermelho e ramam para investigar tecidos de próstata de britânicos entre 60 e 69 anos, em amostras de 30 anos. O objetivo da pesquisa foi verificar se o estilo de vida desses homens, nessa faixa etária, causava alguma alteração química nesses tecidos que pudesse ser avaliada num possível câncer de próstata. Um artigo com a conclusão da pesquisa foi publicado na prestigiada revista científica Nature.
O resultado do estudo apontou que sim havia uma relação entre o estilo e os hábitos de vida desses homens e o câncer de próstata. Ao comparar as amostras de um indivíduo de 83 e outro de 2013, foram observadas alterações que sinalizavam essa ligação. “A importância desse estudo é poder associar esta mudança no estilo de vida com a idade, o hábito de fumar, a ingestão de bebida alcoólica, atividade física. No estudo nos preocupamos em saber se essas mudanças estruturais refletem dentro da próstata, dentro desse tecido, e refletiu”, informa ele.
A participação do professor Kássio Gomes de Lima nesse projeto foi na parte do tratamento computacional dos dados obtidos dos tecidos. “Todas as informações espectrais já haviam sido coletadas, eu recebi todo esse conjunto de dados e utilizei algoritmos computacionais para tentar identificar possíveis diferenças entre os tecidos de cada década. Eu utilizei ferramentas matemáticas que nós desenvolvemos aqui na UFRN”, conta.
Quando voltou da Inglaterra com toda essa experiência na bagagem, Lima resolveu investir num estudo brasileiro. “A publicação do artigo na Nature deu toda uma relevância ao trabalho do qual participei. E ao final fiquei muito feliz porque vi que esse estudo, uma pesquisa de alto nível desenvolvida na Inglaterra, poderia perfeitamente ser feita no Brasil”.
Veja aqui na íntegra o artigo publicado na Nature.
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