Estudo da UFRN aponta comprometimento cognitivo em idosos após chikungunya
Embora tenha ficado um pouco fora dos noticiários nos últimos anos devido à pandemia da covid-19, o vírus chikungunya continua a ser foco de preocupação. Para além dos 32% de aumento no número de infecções em 2021, revelado pelo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, a atenção a possíveis consequências de longo prazo também movimenta a comunidade científica.
Entre esses efeitos, o comprometimento cognitivo em idosos foi especialmente investigado por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia (Psicobio/UFRN). Os resultados demonstraram, pela primeira vez, um declínio significativo dos processos cognitivos nesse público e foram publicados na revista Frontiers in Psychiatry, no artigo intitulado Disfunção cognitiva da infecção pelo vírus Chikungunya em adultos mais velhos.
“Já tínhamos a impressão advinda dos relatos subjetivos dos próprios pacientes de que havia algum impacto cognitivo. Precisávamos avaliar se essa percepção estava correta. Para nossa surpresa, foi não só confirmado como demonstrado que envolvia não apenas a memória, mas outros processos cognitivos fundamentais como as funções executivas”, conta a professora e pesquisadora do Psicobio Katie Almondes, uma das autoras do artigo.
A partir de queixas de pacientes, a equipe de pesquisadores recrutou, entre outubro e dezembro de 2019, idosos voluntários que haviam sido acometidos pela doença chikungunya em Natal, na faixa etária entre 60 e 90 anos e com mais de quatro anos de educação formal. Contando ainda com um grupo controle, no qual ninguém foi infectado pelo vírus, os cientistas promoveram um estudo transversal, por meio de avaliações clínicas, neuropsicológicas e geriátricas.
Procedimento técnico-científico padrão ouro, a avaliação neuropsicológica é utilizada para elucidar diagnóstico de quadros demenciais e/ou de declínio cognitivo e definir prognóstico. Conforme explica Katie Almondes, “as medidas neuropsicológicas são indicadores úteis de disfunção cerebral para muitas condições neurológicas e neuropsiquiátricas, tais como doenças neurodegenerativas, doenças cerebrovasculares, tumores cerebrais, entre outras enfermidades”.
Uma dessas avaliações foi o teste cognitivo Montreal, conhecido pela sigla em inglês MoCA. Ao longo do período de pesquisa, enquanto a idade foi mantida constante, a infecção pelo vírus chikungunya foi associada a um aumento de 607,29% na chance de ter o desempenho no MoCA considerado prejudicado ou em declínio quando comparado ao grupo com os controles saudáveis.
“A significância estatística de tal associação foi confirmada pela robusta quantidade de evidências fornecidas pela amostra. Além disso, os dados mostraram que o risco de desempenho prejudicado no teste MoCA aumentou à medida que tínhamos participantes mais velhos. Ou seja, cada incremento de um ano na idade dos participantes foi associado ao aumento de 7,242% na chance de apresentar desempenho deficiente no teste MoCA”, explica Katie.
Chikungunya
Causada pelo vírus chikungunya (CHIKV), a febre chikungunya é uma doença articular incapacitante. Sua transmissão acontece pela picada da fêmea dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, mesmos vetores da dengue, da Zika e da febre amarela, bem como da gestante para o bebê, ou seja, de maneira vertical. Identificado pela primeira vez na década de 1950, na Tanzânia, o vírus desencadeou, no ano de 2014, uma epidemia em países da Europa, da Ásia, da África e da América, incluindo o Brasil.
Alguns dos principais sintomas na fase aguda da infecção por chikungunya são artrite grave, febre, calafrios, mialgia, dor de cabeça e exantema maculopapular — pequenas lesões na pele. Em geral, a doença é autolimitada e a extinção dos sintomas varia de 5 a 14 dias, porém, em alguns casos, pacientes podem evoluir para um estágio crônico, no qual as dores articulares persistentes e incapacitantes levam meses ou até anos para passar.
Tempos após o surto ocorrido em 2014 e com a chegada de outras doenças, pode parecer natural um certo relaxamento quanto ao tema. No entanto, além de não negligenciar a infecção com o vírus chikungunya e prezar pela sua prevenção, é necessário à sociedade estar atenta a quaisquer sinais relacionados a sequelas. Em relação aos dados apresentados pelo estudo, perda de memórias, desatenção, impulsividade e velocidade de processamento lentificada são algumas manifestações possíveis de perda cognitiva.
“Esses dados, até onde sabemos, são inéditos e trazem a reflexão de que precisamos difundir a informação para alertar a população a se precaver do vírus e, ao ser positivado, procurar ajuda para prevenir infortúnios maiores com estimulação cognitiva ou até mesmo com a reabilitação neuropsicológica. Nossa preocupação é intervir precocemente para evitar uma conversão para quadros demenciais”, afirma a cientista.
Envelhecimento da população e aumento de demências
Com expectativa de vida de 76,8 anos, o Brasil tem cada vez mais idosos. Atualmente gira em torno de 28 milhões o número de brasileiros nessa faixa etária, fato que exige o investimento no cuidado dessa parcela da população, em especial quanto a questões de saúde. Ainda mais especificamente, doenças mentais têm experimentado um crescimento importante.
Segundo Katie Almondes, 8,5% — ou 2.380.000 idosos — já tinham diagnóstico de demência em 2018, com a previsão de que em 2028 serão 3.272.500, o que significa um alarmante aumento de 1 milhão de pessoas nessa condição em apenas 10 anos. Por isso, na avaliação da pesquisadora, são urgentes o debate e o planejamento estratégico para a melhor utilização das informações obtidas pelo estudo.
“Envolve, sem hesitações, discutirmos esses dados com os gestores em saúde em todos os níveis de atuação: município, estado e governo federal, para planejarmos ações e políticas públicas em formato de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, pois a população brasileira está envelhecendo e os dados de pesquisas epidemiológicas nacionais e internacionais visualizam uma prevalência global elevadíssima de demências”, alerta a pesquisadora.
Além de Katie Almondes, participaram do desenvolvimento do estudo o infectologista e pesquisador Kleber Luz, do Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN), a doutoranda do Psicobio e médica geriatra Vanessa Giffoni Peixoto, primeira autora do artigo, e Juliana Azevedo, do Departamento de Psicologia (Depsi/UFRN).
Fonte: Agecom/UFRN
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