Os dois risquinhos que formaram o Brasil moderno

sexta-feira, 2 junho 2017

Continuação 

Lattes volta à cena. Vai ao Departamento de Geografia da Universidade de Bristol, ‘descobre’ o monte Chacaltaya, na Bolívia, a mais de 5 mil metros de altitude. Consegue algum dinheiro com a universidade e segue para os Andes com caixas de emulsões nucleares. Deixa as chapas expostas lá por cerca de um mês e volta para recolhê-las.

Ao revelá-las, em Bristol, a equipe do H. H. Wills encontra centenas de eventos, sendo cerca de 30 deles decaimentos completos – ou seja, as duas trajetórias nos limites da emulsão – do píon em múon. Com base nesses achados, Lattes, Occhialini e Powell publicam dois artigos no final daquele 1947, com a relação das massas dessas duas partículas, por exemplo. Outro desdobramento da viagem de Lattes à Bolívia: a ‘descoberta’ de Chacaltaya para a comunidade científica de físicos. E isso teve desdobramentos importantes para a física no Brasil e na América Latina – mas é história para outra oportunidade.

A esta altura, o leitor deve estar se perguntando qual a relação desse mosaico abstrato com a modernização do Brasil.

À resposta, então.

No final de 1948, depois de palestras e uma visita ao físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), em Copenhague, por conta da repercussão da descoberta do píon, Lattes pôs seu plano em ação: ver se o então maior acelerador do mundo, no Laboratório de Radiação, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, poderia produzir píons.

O brasileiro chegou a Berkeley no início de 1948. Cerca de 10 dias depois, trabalhando com o norte-americano Eugene Gardner (1913-1950), indicou a presença de trajetórias características de píons nas emulsões nucleares.

A produção por máquina (ou artificial) do píon teve enorme repercussão nos EUA. Razão principal: foi a solução de uma situação que já começava a ficar constrangedora para o idealizador daquele equipamento, Ernest Lawrence (1901-1958), Nobel de Física de 1939, que havia enterrado no chamado sincrociclótron uma pequena fortuna para época (US$ 1,7 milhão), dinheiro obtido junto ao governo e à iniciativa privada dos EUA. O acelerador, afinal, havia sido construído para produzir… píons. Mas, em quase um ano e meio de funcionamento, aquela lasca específica de matéria, objeto do desejo de teóricos e experimentais, teimava em não dar as caras por lá.

Lattes personificava, naquele momento, nas palavras do historiador da ciência Peter Galison, a transferência de uma técnica da Europa – onde ela havia nascido e se desenvolvido nas últimas quatro décadas – para os EUA, onde ela ainda engatinhava.

A confirmação de que o homem podia produzir píons mostrava – e isso é importante – que a tecnologia empregada no sincrociclótron (estabilização de fases, no vocabulário da física) funcionava. E, com ela, seria possível construir máquinas maiores – está aí, a meu ver, a raiz das dezenas de aceleradores de partículas que inundaram os EUA a partir da década de 1950.

Com a desculpa de que havia produzido o píon, mas não sabia bem por quê, Lawrence arrancou milhões da poderosa (e rica) Comissão de Energia Atômica dos EUA. E o gigantesco Bévatron, muito mais potente que o sincrociclótron, entrou em funcionamento em 1954, para produzir antimatéria.

Lawrence sempre ‘vendeu’ o píon com um tipo de salvador da humanidade, prometendo que a partícula não só combateria o câncer, mas também daria origem a novas fontes de energia (intra)nuclear e tecnologias inovadoras para bombas nucleares (a dita bomba mesônica). A imprensa norte-americana reagiu a isso, cobrindo amplamente a produção do píon, comparando (sem modéstia) o feito a uma nova descoberta da América. ONew York Times foi taxativo: resultado mais importante da física daquele 1948. Os astros da vez eram Lattes e Gardner – este morreria cerca de dois anos depois. Capa de revistas semanais, ensaios de fotos para a prestigiosa Time-Life, reportagens do NYT, coletivas de imprensa, palestras…

A gratidão de Lawrence pode ser medida por seu gesto: ofereceu gratuitamente ao Brasil um acelerador de partículas ou a possibilidade de o país enviar técnicos para os EUA para aprenderem a construir esses equipamentos – que já eram vistos, devido ao início da Guerra Fria, como tecnologias sensíveis. Para o Brasil, porém, nenhum desses dois cenários se concretizou. Em um entusiasmo sem fundamentos – capitaneado pelo almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976) –, resolveu-se, anos mais tarde, construir um acelerador ainda mais potente que o sincrociclótron. Falhamos fragorosamente. Faltava dinheiro, equipamentos adequados e recursos humanos especializados.

Há indícios históricos (e não mais do que isso) de que Álvaro Alberto, ao se contrapor aos planos de doação e/ou construção de Lawrence, tenha criado uma rusga com Lattes. Reforça essa hipótese o fato de a imagem que abre este ensaio ter sido feita pelo físico brasileiro – que pediu a assinatura nela de Powell e Occhialini – para presentear o almirante. No entanto, virou presente de Lattes a seu grande amigo Alfredo Marques.

No Brasil, os feitos científicos de Lattes foram propagandeados pelo físico José Leite Lopes (1918-2006), que viu no fato de termos “nosso herói da Era Nuclear” a chance de levar adiante os anseios da comunidade de físicos e de outros cientistas da época: pesquisa, ensino e dedicação integral nas universidades.

Leite, sempre articulado, reuniu em torno dele, além de cientistas, militares, artistas, intelectuais, empresários e jornalistas. Desse movimento, nasceu o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ), tendo Lattes, aos 24 anos de idade, como seu primeiro diretor científico. A reboque do CBPF, veio o então Conselho Nacional de Pesquisas (hoje, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e várias instituições ligadas à estrutura político-administrativa da ciência no Brasil, bem como centros de pesquisa e universidades.

Ciência era parte de nosso projeto de nação.

Aqueles dois risquinhos alavancaram a modernidade (científica, pelo menos) do Brasil. Aquela fotografia, a meu ver, merece, portanto, lugar em nosso (improvável) museu da cultura material do povo brasileiro.

Referência

Revista Pitacos – (https://revistapittacosdotorg.wordpress.com)

Cássio Leite Vieira é jornalista do Instituto Ciência Hoje (ICH),editor da área de internacional e também de forma e linguagem da revista Ciência Hoje. É autor de vários artigos e cerca de 10 livros sobre jornalismo científico, divulgação científica e história da Física, entre eles o Pequeno manual de divulgação científica; Einstein (O reformulador do Universo) e a coletânea História da Física.

As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade dos seus autores, não expressando necessariamente a opinião 

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