Na contramão das cotas raciais Educação

segunda-feira, 29 julho 2019
Quadro "Operários"de Tarsila do Amaral.

Pesquisadora da UFPE atesta que cotas raciais ferem a Constituição, violam o princípio da igualdade e fomentam a discriminação. Mas especialista aponta avanços a partir da Lei de Cotas 

A política de cotas raciais é um recurso válido ou viola o princípio constitucional da igualdade? Na tese “A inconstitucionalidade material do objeto racial da Lei de Cotas nº 12.711/2012: uma violação à ideologia da Constituição Federal do Brasil de 1988”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Gina Gouveia Pires de Castro aponta que a maneira como o procedimento acontece dentro do processo seletivo do concurso público viola o princípio da igualdade, ferindo, assim, a ideologia da Constituição de 1988, devido à forma como ele foi implantado no Brasil.

No estudo, a autora atesta que as cotas raciais despertam um sentimento de discriminação e de segregação da sociedade pelas demais classes ou indivíduos, que se constata, sob o ponto de vista daqueles que não foram contemplados com o incentivo, violando, assim, o princípio da igualdade, além de infringir a proibição de estímulo à discriminação, preceito este previsto na Constituição.  “Muitos se inscreveram nas cotas e se reconhecem como negros, mas a banca, em sua avaliação subjetiva, desconsidera e não tem como comprar objetivamente o seu posicionamento, o que leva o candidato ao sentimento de injustiça e indignação sobre sua classificação enquanto negro”, esclarece a pesquisadora.

Contraponto

Já para Luciana Lima, estudiosa da questão das cotas raciais, doutora em Demografia, professora adjunta do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e vice-coordenadora do programa de pós-graduação em Demografia (PPGDEM/UFRN), como em qualquer discussão há espaço para o contraditório.

“É importante contextualizar a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) em 26 de abril de 2012 pela constitucionalidade da política de cotas com recorte racial no ensino superior em um cenário de amplo debate na sociedade. É preciso reconhecer que essa decisão materializou os esforços de décadas empreendidos pela comunidade negra e suas representações em ampliar o acesso de pretos e pardos ao ensino superior. Como quaisquer outros segmentos da sociedade, esses indivíduos também têm voz e demandas, todas elas legítimas frente ao histórico incontestável de relegação do negro (e indígenas) a piores condições sociais se comparados a outros grupos de raça/cor”, enfatiza. Ainda segundo ela, há vários estudos na literatura com evidências empíricas que corroboram esse quadro de desvantagem social desses indivíduos, e que não deixam dúvidas de que o recorte racial na política de cotas é justificável.

Gina Gouveia: pela igualdade de oportunidades educacionais.

Vontade

A defesa da pesquisadora Gina Gouveia, que foi orientada pelo professor Francisco Ivo Dantas Cavalcanti, vai além: “A inserção no ensino público superior por meio de incentivos a partir de critérios sociais mantém o respeito à vontade da diversificação no meio ambiente das universidades públicas além de trabalhar a diminuição do preconceito e da discriminação, sem desenvolver qualquer sentimento contrário ao de identidade enquanto povo brasileiro”, afirma.

Para melhor explicar sua constatação, a pesquisadora cita a autodeclaração de raça como algo subjetivo e que, em tese, não pode ser contestado. Com esse meio de o indivíduo se identificar como preto, pardo ou indígena e, assim, poder ser contemplado com o incentivo da lei de cotas raciais, segundo Gina Gouveia, firma-se, em contraponto, a posição de que a política pública de cotas sociais, e não raciais, atende melhor à demanda da sociedade incluindo negros, brancos e pardos de baixa renda para realização do ingresso no ensino superior público, sem trazer, indiretamente, o sentimento de discriminação e injustiça apresentado na aplicação das cotas raciais. Em sua avaliação, “nos processos seletivos, há critérios objetivos que podem ser definidos concretamente, e não algo subjetivo questionável”.

A pesquisadora reforça que a igualdade de oportunidades educacionais, que deve ser conferida ao cidadão pelo Estado, teria na política de cota social a melhor forma de efetividade dentro de um determinado prazo para atender a uma demanda lacunosa de atos passados do Poder Público.  “Em sua aplicação, as cotas sociais tomam como parâmetro critérios objetivos, bem definidos, que não deixam margem a qualquer dúvida ou questionamento por parte dos usuários e daqueles que não são contemplados”, observa.

A explicação vem do fato, exposto na tese, de os critérios de caráter socioeconômico serem auferidos levando-se em conta dados concretos, como, por exemplo, a renda familiar e o período de aprendizagem no ensino fundamental e médio da rede pública, como já acontece na Lei de Cotas número 12.711/12, em seu artigo 1º, no capítulo e parágrafo único 329 do dispositivo. “As leituras e pesquisas nos mostraram que não há qualquer comprovação de que a aplicação da ação afirmativa baseada em raça tenha gerado qualquer diminuição nos crimes de preconceito e discriminação existentes no Brasil, o que justificaria a chamada discriminação positiva”, afirma Gina.

A tese foi estruturada sob o método qualitativo, mediante leitura da bibliografia selecionada e análise dos votos do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proferidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Por entender que as cotas raciais ferem diretamente a ideologia prevista na Constituição Federal, a autora defende a necessidade de fazer com que o Supremo Tribunal Federal, o Poder Legislativo e o Poder Executivo repensem o posicionamento acerca do tema. “A utilização do critério racial acaba gerando insegurança jurídica, justamente por não se definir o que vem a ser raça. Além disso, a aplicação das cotas raciais pode desencadear um sentimento de injustiça, sobretudo quando se considerada que a própria sociedade brasileira se vê como um povo mestiço”, pondera.

Luciana Lima: é preciso combater toda e qualquer manifestação de racismo.

Combate ao racismo

Sobre o sentimento de discriminação e de segregação da sociedade que a Lei de Cotas poderia produzir, a professora Luciana Lima ressalta que o que se deve combater não é o instrumento que amplia acesso (no caso a Lei 12.711), mas toda e qualquer manifestação de racismo, que por sua vez, está presente em várias esferas da vida social e não apenas na estrutura das universidades. “O que estimula a discriminação é o mito de que vivemos em uma espécie de “paraíso racial”, que por sua vez, contribui para a naturalização de uma imagem estereotipada do negro em nossa sociedade”, argumenta a docente da UFRN.

Segundo ela, é preciso reconhecer que o racismo permeia as relações étnico-raciais no Brasil, e em vez de manter o status quo de predomínio de indivíduos autodeclarados brancos nos espaços mais privilegiados da sociedade, como as universidades, estimular que eles sejam diversos em termos de grupos de raça/cor e que as rupturas que emergem desse processo sejam acompanhadas e discutidas amplamente no espaço democrático da sociedade como um todo.

Motivação

A reflexão sobre a ideologia constitucional, prevista no texto de 1988, e a forma como o Estado brasileiro lida com a supremacia da Constituição foram o que instigou Gina Gouveia a pesquisar acerca das leis de cotas. A pesquisadora acredita que, em longo prazo, a lei de cotas raciais em vigor pode trabalhar ainda mais o sentimento de segregação e a sensação de que, mesmo com as cotas, a questão da educação no Brasil não se resolverá por ela. Além de estimular a criação de novas cotas, que não resolveriam as questões sociais do Brasil sem uma política educacional de qualidade.

“Enquanto a educação de base não for modificada para uma melhor qualidade e não for o centro de atuação do governo, a situação de melhora na sociedade brasileira será difícil, bem como se terá a ampliação do número de cotas como justificativa para diversas questões que poderiam ser trabalhadas de formas mais diretas”, finaliza Gina Gouveia.

Para a professora Luciana Lima, a Lei de Cotas não pretende e nunca pretendeu ser a panaceia para todas as mazelas educacionais e sociais do país, afinal as nossas desigualdades sociais e raciais têm raízes profundas. Ela afirma, no entanto, que essa realidade não pode privar as novas gerações de pretos e pardos de construírem histórias diferentes da de seus pais ao serem os primeiros a ocuparem os bancos de uma universidade. “E isso só é possível graças a mecanismos como as cotas sociais e raciais no ensino superior, conforme também é possível verificar empiricamente com estudos recentes sobre a trajetória de cotistas negros e indígenas no ensino superior brasileiro”, aponta.

Veja a tese na íntegra.

Edna Ferreira com informações da Ascom da UFPE

Uma resposta para “Na contramão das cotas raciais”

  1. Dario disse:

    A tese da Dra Gina está corretíssima! A segregação social brasileira vem desde a base. No caso da UnB, é bem documentado que o quantitativo de concorrentes as cotas raciais é de 10% do quantitativo geral, ou seja, o negro (se é que podemos chamar assim no nosso Brasil miscigenado) sequer termina o ensino médio.
    Em suma, apartação não é, nem nunca será, ação afirmativa, ainda que com sinal invertido. É uma forma de Estado de Exceção se implantando insidiosamente.

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