Apesar do resultado inédito publicado na revista Nature Scientific Reports, pesquisa tem futuro incerto por falta de recursos
“As verbas acabam no final deste ano e não há perspectiva de novos recursos”, declara de forma preocupante a a professora Silvia Batistuzzo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), uma das orientadoras do estudo que mostra um detalhamento inédito dos danos na saúde ocasionado pela fumaça das queimadas na floresta Amazônica. Os resultados dessa pesquisa acabam de ser publicados hoje (7/9) na revista Nature Scientific Reports.
Até aqui o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/Nº 471033/2011-1), a Rede Brasileira de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede CLIMA/Nº 550022/2014-7), a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP/Nº 01.13.0353.00) e a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP), através dos projetos: Nº 2014/02297- 3, 2014/15982-6, 2013/05014-0 e 2013/25058-1 já aportaram recursos na pesquisa. Mas, de acordo com a professora, a continuidade do estudo está ameaçado.
Ao lado de Silvia Batistuzzo, do Departamento de Biologia Celular e Genética da UFRN, está Nilmara de Oliveira Alves, doutora em Bioquímica pela UFRN e atual pós-doutora pela Faculdade de Medicina da USP, autora principal do estudo. A pesquisa, que conta ainda com a colaboração de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou como a exposição à fumaça causa danos ao material genético e morte das células pulmonares.
Pela primeira vez, foi possível demonstrar que as partículas de queimadas da Amazônia ao entrarem nos pulmões aumentam a inflamação, o estresse oxidativo e causam danos genéticos nas células de pulmão humano. O dano no DNA pode ser tão grave que a célula perde a capacidade de sobreviver e morre. Ou esta célula perde o controle celular e começa a se reproduzir desordenadamente, evoluindo para câncer de pulmão, diz a pesquisadora Nilmara Alves. Para descobrir estes mecanismos, células de pulmão humano foram expostas a partículas coletadas na Amazônia e analisadas com técnicas bioquímicas avançadas, onde mediu-se o grau de inflamação e de dano no DNA. Estas células podem induzir autofagia (processo que indica estresse celular) e também sofrer lesões no DNA levando a um câncer, acrescenta Alexandre Vessoni, pesquisador do ICB-USP e atualmente na Universidade de Washington em St. Louis, nos EUA. Os mecanismos para isso foram desvendados no estudo. A figura abaixo ilustra o processo.
De acordo com as pesquisadoras da UFRN, o laboratório de Mutagênese Ambiental da UFRN trabalha com poluição do ar desde 2005. “Entretanto, o trabalho com a queima de biomassa da floresta amazônica começou em 2008 quando Nilmara era ainda aluna de mestrado do Programa de Pós-graduação em Bioquímica da UFRN” afirma Silvia Batistuzzo.
Mecanismo proposto para a ação de material particulado PM10 de queimadas da Amazônia. Em sua fase inicial, observamos dano no DNA e produção de compostos reativos e citocinas, com alterações nas mitocôndrias. Neste estágio, a ativação de autofagia (suicídio celular) também foi observada. PM10 também causou um aumento na expressão de proteínas p53 e p21, ligadas ao controle celular. Com o aumento da exposição, a célula fica incapacitada de continuar reagindo contra o invasor externo, e mecanismos de apoptose e necrose são iniciados, o que leva à morte da célula. A fragmentação do DNA induz a formação de γ-H2AX. Se os danos ao DNA persistem, induzem mutações, e podendo levar ao desenvolvimento de câncer de pulmão.
Neste trabalho, foram descobertos os mecanismos de morte celular e identificado um dos compostos responsáveis por isso. Quimicamente o composto químico reteno, um marcador de queimadas, tem um forte efeito na morte celular de células do pulmão.
A Amazônia sofre com o desmatamento e queimadas, consequências de um processo de ocupação desordenado, afirma o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, coautor do estudo.
As pesquisadoras da UFRN apontam que além de contribuir para o esclarecimento do mecanismo molecular que leva a doenças como o câncer de pulmão, os resultados encontrados podem ser usados para desenhar novas estratégias para minimizar alguns dos efeitos à saúde. “No entanto, os resultados servem igualmente, para se compreender a necessidade de diminuir as emissões de material particulado na atmosfera”, afirmam Nilmara e Silvia.
Todo ano, em setembro e outubro, os focos de incêndios disparam, e uma nuvem de fumaça cobre toda a região amazônica, ocasionando sérios problemas respiratórios na população, como relatado em estudos anteriores coordenados pela pesquisadora Sandra Hacon, da Fiocruz-RJ, também co-autora do estudo. Ela analisou dados do SUS e concentração de poluentes e observou uma forte associação entre queimadas e efeitos na saúde, mas não se conhecia os mecanismos pelos quais o dano no pulmão ocorre.
Os pesquisadores coletaram amostras do material emitido na atmosfera pelas queimadas na região próxima à Porto Velho, uma das áreas mais atingidas pelos incêndios na Amazônia. Nessa fumaça, existe o material particulado, que é formado por uma mistura de compostos químicos. O médico patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Instituto de Estudo Avançados da USP, explica que quanto menor a partícula, ela consegue penetrar mais profundamente no sistema respiratório, atingir os alvéolos pulmonares e ter contato com a corrente sanguínea, sendo mais prejudicial para a saúde.
A exposição ao material particulado é considerada uma das principais causas de câncer de pulmão de acordo com a Agência Internacional de Pesquisas sobre o Câncer (IARC), vinculada à Organização Mundial de Saúde. A poluição causada pela queima de biomassa na Amazônia emite compostos químicos que são diferentes dos poluentes emitidos pelos veículos automotores e pelas indústrias nos centros urbanos. Outra novidade deste estudo é que um dos compostos emitido somente pela queima de biomassa (o reteno) é um dos grandes responsáveis pelos danos no DNA que observamos nas células pulmonares, afirma Silvia Batistuzzo.
Nilmara explica como foi feita a exposição do material particulado nas células pulmonares. Segundo ela, primeiro o material foi coletado em filtros de quartzo na cidade de Porto Velho, em seguida o material foi extraído com DMSO para se obter a fração orgânica a qual foi caracterizada e quantificada por cromatografia gasosa e espectrometria de massa, para se conhecer os compostos lá presentes. “Em seguida, diferentes concentrações desta fração foram colocadas em células derivadas de epitélio pulmonar humana, in vitro por 24 h e 72 h para se verificar o efeito sobre as células e para tanto, diversos ensaios foram realizados para se avaliar a toxicidade, geração de espécies reativas de oxigênio, dano ao DNA e morte celular” detalha. A pesquisadora revela que o material utilizado são derivadas de células basais de adenocarcinoma alveolar humano já estabelecidas. “Elas foram gentilmente doadas pelo professor Carlos Menck, mas não foi este professor que estabeleceu a linhagem”, conta.
As pesquisadoras contam como o grupo chegou à conclusão de que o reteno era o grande responsável pelos danos no DNA das células pulmonares observadas. Em 2015, eles publicaram um artigo com a caracterização química deste material particulado. “Dentre os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos que identificamos, o reteno foi o composto encontrado em maior quantidade. Isto nos chamou a atenção e fizemos então estudos paralelos com o reteno exposto nas células de pulmão humano, utilizando as mesmas concentrações deste composto presente no extrato de partículas oriundas das queimadas na Amazônia. Surpreendentemente, o reteno isoladamente causa danos no DNA e morte celular, sendo então um dos grandes responsáveis pelos efeitos que observamos. Mas, claro, não podemos esquecer que outros componentes presentes neste material particulado contribuem para os danos no material genético”, explicam as pesquisadoras.
No Brasil, onde ao longo dos últimos 30 anos observamos altas concentrações de material particulado na atmosfera como decorrência de emissões de queimadas, não há nenhum programa de melhoria da qualidade do ar decorrente da queima de biomassa. Nós esperamos que com estudos como este, incentive o monitoramento destas partículas finas que causa claramente danos à saúde, finaliza Carlos Menck, professor do ICB-USP e também orientador desta pesquisa.
O artigo publicado na revista Nature Scientific Reports “Biomass burning in the Amazon region causes DNA damage and cell death in human lung cells” pode ser acessado aqui.
Edna Ferreira e Mônica Costa
Deixe um comentário