Estudo com aldeia indígena em Pernambuco busca esclarecer a epidemiologia da leishmaniose

quarta-feira, 30 setembro 2015

Classificada como doença negligenciada, leishmaniose tegumentar atinge 30 mil pessoas por ano no Brasil.

A leishmaniose tegumentar americana (LTA) constitui um problema de saúde pública em 88 países, distribuídos em quatro continentes (Américas, Europa, África e Ásia), com registro anual de 1 a 1,5 milhões de casos, de acordo com o Ministério da Saúde. No Brasil são detectados 30 mil novos casos a cada ano. É considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como uma das seis mais importantes doenças infecciosas, pelo seu alto coeficiente de detecção e capacidade de produzir deformidades. A doença é caracterizada por lesões cutâneas, cuja principal complicação é a metástase para as mucosas da nasofaringe, com
destruição desses tecidos.

Assim como a doença de chagas, a malária, a febre amarela e a tuberculose, a leishmaniose é causada por agentes infecciosos e parasitários, sendo considerada uma doença negligenciada. Por atingir majoritariamente as populações mais pobres, segundo a Academia Brasileira de Ciências, a “adoção do adjetivo ‘negligenciada’ tomou como base o fato de que tais enfermidades não despertam o interesse das grandes empresas farmacêuticas para a produção de medicamentos e vacinas.”

Além disso, a pesquisa neste setor não conta recursos suficientes, o que gera a escassez dos métodos de profilaxia disponíveis em todo o mundo. Dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável por grande parte das pesquisas brasileiras sobre as doenças negligenciadas, apenas 1,3% dos 1.556 novos medicamentos registrados entre 1975 e 2004 foram desenvolvidos especificamente para essas doenças.

Em Pernambuco, uma nova pesquisa, desenvolvida pela Fiocruz em aldeias da etnia Xucuru, nos municípios de Pesqueira e Poção (distantes 213 e 239 quilômetros de Recife, respectivamente), pretende esclarecer entre outros aspectos, porque os surtos da leishmaniose tegumentar acontecem de forma esporádica, com um aumento significativo de casos em certos anos, enquanto em outros, aparentemente sob condições semelhantes, isso não acontece.

Serão investigados todos os “atores” do ciclo de transmissão: o parasito – vários protozoários do gênero Leishmania; o vetor – o flebotomíneo, popularmente conhecido como mosquito-palha; o cachorro – um possível hospedeiro/reservatório; e o homem. A busca é para isolar o parasito em cada etapa do ciclo de transmissão, identificando suas características e comprovando a ligação entre vetor, reservatório e hospedeiro. Isso porque a LTA apresenta uma grande diversidade de espécies que atuam em cada um desses papéis e o padrão de transmissão varia de acordo com as características de cada área.

Intitulado Eco-epidemiologia da leishmaniose tegumentar em
comunidade indígena no agreste de Pernambuco, o estudo é desenvolvido na Serra do Ororubá, uma região com uma população estimada de oito mil índios – segundo números da Funasa de 2010. O pesquisador Filipe Dantas Torres é o coordenador do projeto, que é composto por várias linhas de pesquisa. O trabalho foi iniciado pela captura dos mosquitos,
utilizando armadilhas luminosas do tipo CDC (Centers for Disease Control). Os flebótomíneos coletados estão sendo identificados e o conteúdo alimentar das fêmeas analisado com técnicas de biologia molecular – testando uma nova ferramenta desenvolvida na Fiocruz PE com essa finalidade. “Isso vai permitir avaliar as espécies que estão mais presentes; se estão mais próximas das casas ou nas áreas de mata; se elas se alimentam de sangue humano ou do sangue de cães, entre outras informações a serem analisadas sob a ótica da
epidemiologia”, explica o pesquisador.


Centro de treinamento do Exército

Já começaram também as coletas de amostras de sangue canino. Até o momento, foi recolhido material em 300 cães. Todo o trabalho é precedido de esclarecimentos aos moradores sobre os objetivos da pesquisa e acontece somente com a permissão dos donos. A pesquisadora, Luciana Aguiar Figueiredo, que integra a equipe do projeto, relata que tem sido boa a receptividade nas aldeias. “A comunidade tem entendido o nosso trabalho e colaborado muito”, afirma.

Também para entender o ciclo da LTA, tentando estabelecer a relação entre os vetores e a transmissão para as pessoas, o grupo realizou uma pesquisa semelhante no Campo de Instrução Marechal Newton Cavalcante (CIMNC), um campo de treinamento do Exército, localizado no município de Paudalho, a 40 quilômetros do Recife, na Zona da Mata norte do estado. Nesta reserva de Mata Atlântica, segundo os pesquisadores, foi detectado que o período de maior pico na população do mosquito são os meses de março, abril e maio, o que acarreta os surtos a partir de junho e durante o segundo semestre do ano. “Lá tem todo o ciclo da leishmaniose tegumentar, tem os vetores, tem os reservatórios e os soldados realizam atividades de treinamento noturnas”, explica Filipe.

Tanto na comunidade indígena quanto no campo de instrução militar, foram os surtos recorrentes a motivação inicial das pesquisas, que consumiram cerca de R$ 200 mil, em recursos exclusivamente públicos, oriundos dos governos federal e estadual. Os resultados das duas pesquisas tem pontos semelhantes e diferentes, porém as conclusões apontam para a necessidade de adoção de práticas comuns para a prevenção da doença. Os soldados são contaminados na floresta, enquanto fazem exercícios militares noturnos. Com os Xucurus a contaminação ocorre dentro ou próximo das casas, geralmente construídas com barro. O coordenador da pesquisa informa que a medida mais eficaz seria a saída definitiva de ambos os grupos dos locais onde são encontrados os mosquitos, mas ele mesmo reconhece a impossibilidade da efetivação da recomendação. A alternativa mais viável é o uso de equipamentos de proteção individual como o repelente e o mosquiteiro ou cortinado de malha fina.

O início da coleta de material humano está previsto para 2016 nas aldeias Afeto, Guarda e Santana. Os pesquisadores tentarão isolar e caracterizar as espécies de Leishmania em circulação entre os moradores, a partir das amostras de sangue, de material das lesões cutâneas e de urina dos pacientes. Para isso será utilizada a tecnologia da PCR (reação em cadeia da polimerase) e serão testadas novas técnicas de diagnóstico, menos invasivas por utilizar a urina como material dos exames. Será possível saber, por exemplo, se a espécie do parasito encontrado nas amostras humanas, é a mesma encontrada no cão. A pesquisa vai tentar esclarecer se o cachorro desempenha o papel de reservatório no ciclo de transmissão – um fato que já foi estabelecido para outra doença, a leishmaniose visceral (conhecida como calazar).


Entrevista

O Nossa Ciência foi ao laboratório no Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (Fiocruz), em Recife/PE, onde o casal Filipe Dantas Torres e Luciana Aguiar Figueredo e outros pesquisadores trabalham. Filipe e Luciana, que são casados e tem a graduação em veterinária em comum, falaram das pesquisas e de alguns resultados.

Nossa Ciência: No CMNIC, os senhores identificaram que a contaminação ocorria durante os exercícios. Alguma orientação foi dada ao comando da corporação?

Filipe Dantas Torres: A orientação nesse caso para controlar é fácil, mas ao mesmo tempo é difícil – e essa á a dificuldade do controle da leishmaniose. É fácil. (A recomendação é) não vão mais para a floresta, não pode mais fazer o treinamento militar (na área) e eles não vão ter leishmaniose. Mas só que eles não podem deixar de fazer o treinamento e essa é a parte difícil. Então a gente recomenda repelente, cortinado menor do que o mosquito, evitar atividades no período noturno …

NC: E funcionou?

FDT: Não. Por que teve surto em 2013. Ao final do nosso trabalho, vamos enfatizar à direção do CMNIC que as recomendações permanecem aquelas. Que o importante é que a todo grupo de soldados que chegar tem que ser repassadas as mesmas recomendações, tem que se tornar uma prática.

NC: O que já foi observado na pesquisa com os Xucurus?

FDT: Dessa parte, a gente já tinha essa ideia, que agora se confirma, que é uma situação totalmente diferente da dos soldados. Eles entram na mata e pegam lá. Já com as aldeias os flebotomíneos estão nas casas, ali a situação seria ainda pior por que eles teriam que se mudar. Nós capturamos (os mosquitos) em galinheiros, estábulos, próximos das casas, dentro das casas. Quando se encontra caso de LTA em criança pequena, quer dizer que a transmissão é ali na casa, próximo do domicílio, a criança não desenvolve atividade à noite na
floresta. O hábito do flebotomíneo é crespucular e noturno, então quando começa a escurecer, começa a atividade.

NC: Pelo andamento dos trabalhos, o que deverá ser proposto nessas comunidades?

FDT: Tem medidas, que por serem simples, as pessoas acham que não vão funcionar. Acham que só funciona passar o carro com o fumacê jogando inseticida pra todo lado, que não funciona, o efeito daquilo é mínino, quase zero. O efeito é transitório, sobretudo em casa de barro, por que o barro suga o inseticida e o efeito residual é mínimo. Numa parede de concreto o veneno permaneceria, dependendo da incidência solar e outros fatores, por dois ou três meses. Numa parede de barro com sol a pino, permanece por pouco tempo. Se tem o efeito imediato nas semanas iniciais naqueles flebotomíneos que vão descansar naquela parede, mas quando outros flebotomíneos migrarem de um galinheiro ou de um estábulo, não vai mais ter inseticida e vai recolonizar aquela área.

Luciana Aguiar Figueredo: Isso é válido como medida emergencial. Depois da aplicação os números dão uma reduzida.


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