Estudo em documentos antigos, realizado por pesquisadores da UFRN, confirma que educação está ligada ao amadurecimento cognitivo
A educação e o avanço da tecnologia fazem as crianças de hoje parecerem gênios se comparadas a pessoas de séculos atrás. Isso, no entanto, não aconteceu da noite para o dia e nem pode ser considerado um fenômeno recente. Estudo recém publicado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) mostra que, do ponto de vista estrutural, o que leva em média 12 anos para ser aprendido atualmente por crianças típicas, demorou 2,5 mil anos para se consolidar como acúmulo cultural da humanidade.
Utilizando análise de grafos de textos literários de um período que abrange cerca 4.5 mil anos de história, pesquisadores brasileiros e argentinos confirmaram que a educação está intimamente ligada ao amadurecimento cognitivo da formação dos pensamentos dos seres humanos há milhares de anos. Esse trabalho foi possível graças ao apoio do Núcleo de Processamento de Alto Desempenho (NPAD), o supercomputador UFRN.
A pesquisa, publicada na Trends in Neuroscience and Education, é continuação do trabalho do neurocientista Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN, da psiquiatra Natalia Mota, pós-doutoranda do ICe, e Mário Copelli, da UFPE, que utilizam um sistema de grafos para análise da estrutura da fala. Com apoio de pesquisadores da Unicamp e da Argentina, eles observaram que os textos da Idade do Bronze (2.500 a 1.000 a.C.) são estruturalmente semelhantes aos relatos orais de crianças alfabetizadas e de participantes adultos psicóticos da atualidade. Isso fica mais pronunciado quando analisado o discurso ameríndio que está ainda mais distante dessa estrutura da literatura.
Os atributos gráficos dos textos da Idade do Bronze diferem dos atributos gráficos da Poesia e das narrativas pré-letradas de adultos ameríndios ou pré-escolares urbanos
No entanto, Sidarta Ribeiro, coordenador da equipe de pesquisa, esclarece que os dados não apoiam a ideia de que o discurso oral de culturas ameríndias é inferior ao discurso letrado. São trajetórias de amadurecimento estrutural distintas e divergentes. “Se na cidade são necessários vários anos de instrução para aprender a falar com recursividade de longa distância, entre os indígenas são necessários anos de treinamento para aprender a falar com recursividade de curta distância. Isso acontece porque são culturas orais em que as limitações da memória favorecem construções linguísticas repetitivas”, esclarece.
A análise de grafos estuda o discurso como uma trajetória de palavras, construindo uma espécie de modelo matemático da sua estrutura. Em um estudo anterior com análise de grafos, já foi possível encontrar um padrão de transição durante o período de aprendizado da leitura e escrita de crianças. De acordo com Sylvia Pinheiro, que compõe com Natalia Mota a dupla de primeiras autoras do trabalho, algo parecido é encontrado para a história da escrita neste novo estudo. “Enquanto o discurso fica mais conectado e rico em palavras ao longo do tempo, também se torna progressivamente menos repetitivo e aleatório. Então, podemos apontar a passagem da oralidade para a escrita como um importante marco para determinar a forma como nos comunicamos”, confirmou.
O estudo observa também que a mentalidade humana só amadureceu em seu modo atual durante a Era Axial (800 a 200 a.C.), período da história antiga marcado por um boom filosófico, religioso, artístico, político, jurídico, econômico e educacional na Afro-Eurásia.
Segundo Natalia Mota, durante essa Era, o ser humano passou a ter maior contato com seu pensamento e sua consciência, por isso, é possível perceber tantas mudanças na estrutura do discurso a partir desse período histórico. “Desde esse momento, a formação cognitiva do pensamento foi se tornando mais conectada e esse fato teve em consequência uma literatura com histórias mais complexas. No estudo, vimos que essa dinâmica é milenar e separa justamente esse período de grandes civilizações, onde houve movimento de misturas de culturas. Isso permite observar que a forma de viver em sociedade influencia a cognição humana, em como nos comunicamos, expressamos e entendemos o mundo”, explica.
A análise dos textos
Os pesquisadores analisaram 734 textos literários representativos abrangendo 4,5 milênios. São publicações antigas, como o Livro dos Mortos do Antigo Egito e os primeiros livros da civilização suméria, passando pelos clássicos da cultura greco-romana, judaico-cristã, asiática, hindu, persa, medieval, até chegar na Idade Moderna e Contemporânea. Observaram, inclusive, a literatura produzida hoje em dia em blogs.
O estudo mostrou que, por mais infantil ou psicótico que seja, os registros textuais antigos só atingiram um platô estrutural por volta de 800 antes de Cristo. Esta transição empírica acentuada, bem como os tempos característicos, concorda bem com o colapso cultural entre os fim da Idade do Bronze e o início da Idade Axial, como mencionado antes, quando fenômenos climáticos levaram à desorganização social, perturbação educacional e redução da alfabetização.
Segundo a pesquisa, todos os discursos observados nos livros achados apresentam uma visão abrangente da linha do tempo, com o objetivo de entender a cultura compartilhada nos dias atuais pelos seres humanos. De forma semelhante a como a alfabetização estimula a estruturação da fala, ela também parece ter contribuído para a evolução cultural do nosso discurso. De acordo com Sylvia, a pesquisa ainda sugere que alguns grupos apresentaram características distintas em sua estrutura de discurso, como, por exemplo, adultos pré-alfabetizados ou sociedades que não usam sistemas de escrita formais. “Outro exemplo é o que ocorre no desenvolvimento atípico, como em indivíduos com psicoses, em que o efeito da educação formal não se mostra tão evidente devido aos sintomas que acometem o discurso”, afirma.
Gráficos mostram que o amadurecimento da estrutura literária reflete o tempo histórico
A partir da seleção dos textos, foi feito um resgate histórico do funcionamento da mentalidade dos povos buscando compreender como e onde se deu os fatores ligados a todo esse processo. “Isso nos ajuda, assim como todos os setores da ciência básica, a compreender melhor como se dão esses fenômenos para traçar melhores estratégias para orientar as pessoas de como se devem desenvolver essas questões todas. A gente consegue olhar para a humanidade e como ela desenvolveu uma maneira de se relacionar com o passado e o futuro. A literatura traz essa possibilidade de viajar no tempo, a gente consegue ouvir a voz dos nossos ancestrais e entender não apenas como eles falavam, mas também o conteúdo do que eles estavam falando”, afirma Natalia Mota.
“Um sistema que se retroalimenta”
Sylvia Pinheiro observa que pesquisa com mapeamento do discurso através de grafos vem se expandindo nos últimos anos e se mostrando promissora para auxiliar diagnósticos na área clínica, além de contribuir para pesquisa aplicada e básica na educação e neurociência. “O presente estudo nos ajuda a entender um pouco mais sobre a evolução da linguagem da nossa espécie e a reforçar a importância da educação formal nos primeiros anos escolares. Discutimos se algumas habilidades cognitivas que são estimuladas pelo letramento podem também ter se consolidado na nossa espécie com o estabelecimento dos sistemas de escrita. Por exemplo, com a hipótese de que a liberação da memória de trabalho proporcionada pelo novo método de registro da realidade, permitiria o desenvolvimento de discursos mais complexos”, acrescenta.
Análise não-semântica de grafos de palavras de textos de literatura
O papel da educação no desenvolvimento da estrutura da fala é, nas palavras de Natalia Mota, “um sistema que se retroalimenta”. Isso porque o desenvolvimento cognitivo permite que haja um bom desenvolvimento infantil, contribuindo para a melhora de aspectos relacionados à capacidade de se comunicar e para a qualidade das relações sociais.
A pesquisadora diz que a literatura e os livros são produtos de um acúmulo cultural datado por milênios. Neste novo estudo, o sistema de grafos da fala mostra bem esse processo, no qual a medida que a estrutura do discurso ganha com
plexidade ao longo do tempo, pois detalhes mais profundos são acrescentados na contação de uma história. No fim, o resultado é uma longa teia bem conectada de assuntos.
Quando uma criança lê um livro, por exemplo, ela não absorve somente o conteúdo, mas aprende a se comunicar a partir de como as histórias são contadas. “Essa maneira de contar as histórias nos livros permite que a criança, que está entrando em contato com esse instrumento, aprenda essa maneira de se comunicar, comece a contar suas próprias histórias para os outros e organize sua mentalidade interna”, conclui Natalia.
Fonte: Agecom UFRN
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