As cidades não estão preparadas para tremores, revela geofísico da UFRN

segunda-feira, 28 setembro 2015

Com um barrigão de sete meses de gravidez, deitada numa cama encostada na parede, já acostumada aos movimentos que sentia de dentro da barriga, estranhei o movimento que percebi fora desta. Durou a eternidade de uns quatro segundos, até eu compreender que estava ocorrendo um tremor de terra em Natal. Essa história aconteceu em novembro de 1986. Na época o fato foi bastante noticiado na imprensa local e até nacional. Repórteres de grandes empresas de comunicação vieram fazer matérias na cidade de João Câmara, a 84 quilômetros de Natal, reconhecida por ser o epicentro dos vários tremores que estavam ocorrendo.

Passados quase 30 anos, fomos ao Laboratório Sismológico (LabSis) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para conhecer a história dos tremores a partir da visão dos pesquisadores. A entrevista foi com o físico Joaquim Mendes Ferreira, que é professor do Programa de Pós Graduação em Geodinâmica e Geofísica da UFRN e coordenou o LabSis de 1999 a 2012.

Ele explicou que existe três tipos de tremores de terra: os de colapso, que são de caverna de calcário; os que são originados pelos vulcões; e os tectônicos, que são ligados às forças que existem no centro da terra, que promovem um pequeno deslocamento das rochas. Para o doutor em geofísica, uma das funções da ciência é revelar os fatos à população e prepará-la para as situações de crise. Para revelar os fatos, às vezes é necessário confrontar lendas que são contadas como se fossem verdade. Em João Câmara por exemplo, haviam duas explicações para os abalos ocorriam. A origem seria um dragão acorrentado embaixo do Morro do Torreão ou uma baleia, que teria vindo pelo Rio Ceará-Mirim e se alojado embaixo da mesma formação geológica, que a cada vez que se mexia, provocava os tremores de terra.

Joaquim Ferreira nasceu em Portugal, foi criado em Jundiaí/SP e desde 1976 é professor da UFRN. Em sua opinião, o LabSis tem alcançado êxito tanto científico, quanto em formação de gente e principalmente em trabalhar com as pessoas no campo. “A gente tem que chegar na população de alguma maneira. Para essa parte de divulgação nós fazemos um blog, onde tentamos passar as informações de uma maneira mais ou menos organizada para tirar as lendas. O objetivo dessa publicação é transferir para a população o conhecimento de uma maneira acessível”, defende.

Nossa Ciência – Em 1986, ocorreram alguns abalos muito fortes, que até foram sentidos em Natal. Esses foram os eventos iniciais que criaram o LabSis?

Joaquim Ferreira – Não. Isso (os tremores) vai aparecer posteriormente. Esse ano está completando 40 anos (de estudo) da sismologia na UFRN. Em 1975 a Marinha repassou os equipamentos da Estação do Natal, instalada na época nos Guarapes, onde hoje é a rádio da Marinha, para a UFRN e eles foram instalados em Caicó. Aqueles equipamentos faziam parte de uma rede de monitoramento, instalada pelos americanos na década de 1960, para monitorar testes nucleares e que eram operados pela Marinha do Brasil. Atualmente nós ainda temos uma estação em convênio com a Rede Sismográfica Global (SGS, na sigla em inglês).

NC – Por que a Estação foi instalada em Caicó?

JF – Primeiro porque a Universidade tinha instalações lá em Caicó e depois porque Caicó era muito melhor do que perto do litoral. Você corta parte do ruído proveniente das marés, das ondas aqui próximo do litoral. Então esse efeito do ruído, quanto mais para o interior sobre rocha, melhor.

NC – Qual foi o impacto daqueles tremores para o estudo da sismologia?

JF – O estudo da sismologia vai iniciar já na década de 1980, quando o pessoal – eu, João da Mata e Mario Takeya, que só operávamos a estação, vamos para a USP fazer mestrado. Depois, a gente passou a formar gente e em 1986 acontece o grande tremor de João Câmara. A partir disso que muda efetivamente, que vai consolidar o laboratório, vai tornar o pessoal conhecido, a instituição conhecida. A gente começa a fazer trabalho de campo, a instalar equipamento, a estudar e saber o que realmente está ocorrendo. Até então a gente tinha relato dos tremores, mas ninguém tinha estado numa região onde tinha tremores de terra e mais ainda vivenciado os tremores de terra. Era uma outra situação completamente diferente.

NC – O que aconteceu nesse período para ter ocorrido esses tremores?

JF – Essa época entre 1986 e 1991 teve uma atividade sísmica intensa não aqui no Rio Grande do Norte (RN) mas em todo o nordeste, incluindo Caruaru. No RN teve em Taboleiro Grande, no então município de Augusto Severo, que agora é Campo Grande. No Ceará teve em Palhano, Cascavel, Guaíras. Foi a época em que a gente mais desenvolveu trabalho de campo e pode estudar os tremores de terra no nordeste.

NC – De lá pra cá, a terra aquietou-se?

JF – Não, não se aquietou, mas não teve um fenômeno parecido com esse do final dos anos 1980 e início dos 90. Teve pelo menos 15 tremores de magnitude acima de 4 e esses foram bem sentidos aqui em Natal, mas atualmente tremores na região de João Câmara de magnitude 3.5 já são sentidos aqui em Natal, devido aos edifícios altos.

NC – Nesses quase 30 anos as cidades se preparam para atividade sísmica mais intensa?

JF – Eu acho que não. Nós não vivemos numa região como a Califórnia ou o Japão, que são regiões de bordas de placas onde sempre tem tremores e onde o fenômeno é muito mais intenso e sempre está ocorrendo. O que acontece aqui é que de vez em quando ocorrem surtos, depois para por um tempo, depois volta de novo. Então durante o tempo dos surtos, as autoridades prometem tudo, que vão fazer um novo código de obras; acalmou, esquecem tudo e começa tudo de novo. Então não existe efetivamente uma preparação das cidades para essa eventualidade.

As defesas civis não são permanentes, depende do político do momento por que todos os cargos são nomeados por políticos. O diretor do SGS, com quem a gente mantinha relacionamento, se aposentou outro dia. Há mais de 20 anos ele era diretor em Albuquerque. Mudava de (governo) republicano para democrata, de democrata para republicano (nos Estados Unidos), mas o diretor do laboratório era o mesmo. No Brasil não há essa tradição de manutenção de equipe ou coisa desse tipo. Toda vez que muda de governo, muda tudo, se começa de novo, se esquece tudo, o que foi adquirido nas gestões anteriores é jogado fora e se começa tudo de novo. O processo começa sempre do zero. Então se tiver hoje uma atividade sísmica igual à de João Câmara em João Câmara, vai se começar do zero de novo, infelizmente.

NC – Mesmo em João Câmara, que foi o epicentro dos eventos, não há preparação para abalos?

JF – Joao Câmara tem uma memória um pouco melhor do que as outras cidades, por que, de certa maneira, as pessoas estão sabendo e de vez em quando tem eventos de rememorar o sismo de 1986 com a Prefeitura e com a defesa civil. Lá é um pouco diferente nesse aspecto. Mas mesmo assim as gerações mais novas não vivenciaram, então as pessoas estão despreparadas para agir. Essas coisas vão passando e se esquecem como é que foi.

NC – Os abalos são previsíveis?

JF – Não. Não tem como prever em lugar nenhum do mundo.

NC – Então as ações que minimizem as consequências serão sempre posteriores ao evento?

JF – Se pode ter ações para minimizar os efeitos. Essas ações são, primeiro no nível de educação, que é exatamente não colocar nos livros textos de geografia que no Brasil não tem terremoto. Também é preciso conscientizar as pessoas e treiná-las para agir no caso de haver tremores de terra. O outro nível é a engenharia. Tem que se levar em conta que tem tremores de terra e que os prédios vão ser afetados por isso. Uma coisa importante é que pelo menos os prédios públicos deveriam ser construídos com normas de segurança mais rígidas por que poderia ser um centro de apoio à população no caso de uma emergência. O hospital de João Câmara, por exemplo, estava sendo construído na época, tinha estrutura de concreto e resistiu bem aos efeitos dos tremores. Como contra exemplo, a cadeia de João Câmara, que era nova e não tinha nenhum preso, rachou todas as paredes e depois foi demolida. Se tivesse presos, eles tinham fugido … Na mesma época, duas obras, uma resistiu bem e a outra teve que ser demolida. Obras públicas tem que levar em conta que tem tremores de terra, que existe esse fenômeno, tem que ser resistentes.

NC – O senhor afirmou que os livros de geografia dizem que no Brasil não tem tremores de terra. De onde surgiu essa afirmação para ser reproduzida nos livros pedagógicos?

JF – Não sei como se criou, mas se a gente for olhar as décadas iniciais do Século XIX teve atividades sísmicas intensas na Bahia e outros lugares; Dom Pedro II chegou a escrever sobre terremotos em Petrópolis. No Século XIX e no começo do Século XX era reconhecido que existia tremores de terra no Brasil. Num determinado momento, não sei se no governo de Getúlio Vargas, (começou-se a disseminar que) o Brasil era uma terra abençoada que não tinha terremotos, furacões, não tinha mais nada, era o paraíso. A partir daí, quando tinha tremores, (afirmava-se) que não eram de natureza tectônica e sim queda de caverna de calcário, não se aceitava os tremores. Isso foi uma desafio muito grande (para) os sismólogos brasileiros em geral, e nós aqui em particular, até convencer as pessoas, as autoridades de que tinha tremor tectônico, que não era caverna de calcário.

NC – Nessa época o senhor e outros pesquisadores tinham uma intensa convivência nas cidades onde estavam ocorrendo os epicentros. Como era essa convivência?

JF – Às vezes você enfrentava o misticismo da população. Um exemplo típico foi em Palhano/CE, em que as pessoas começaram a sentir uma série de tremores e nós fomos fazer um primeiro trabalho, começando por um questionário sísmico, eu e o técnico em sismologia – Eduardo Alexandre Santos de Menezes. A explicação corrente é que um foguete teria explodido em Mossoró. Quando a gente dizia que foi um tremor de terra, as pessoas passavam a achar que aquilo era um sinal do fim dos tempos.

Em 1988, no Vale do Jaguaribe teve abalos e também lá era essa a teoria. Nós fizemos uma palestra na igreja, onde estavam prefeito, delegado, padre, enfim, todas as autoridades e a população local. Combinei com o padre: eu explicava a parte científica e quando chegava na parte do fim dos tempos, era com ele. Ele acalmava a população. As pessoas sentiam os tremores quase todos os dias, então não tinha como esconder, não adiantava se dizer que não estava acontecendo nada, tinha que dizer o que é. No começo de outubro, a gente avisou que podia ocorrer e ainda mais forte e 15 dias depois ocorreu um de magnitude 4.2 e a população já estava esperando isso, já sabia que quando começasse a atividade sísmica todos deviam sair de dentro das casas, deviam ficar do lado de fora. Não teve pânico, mas no início foi bem difícil.

NC – A produção acadêmica acompanhou a ocorrência dos abalos?

JF – Nós produzimos artigos. Há vários artigos sobre João Câmara, alguns sobre Palhano. Um outro colega fez o doutorado sobre João Câmara e eu fiz sobre o resto do nordeste. Depois nós tivemos vários artigos que foram publicados e continuam sendo publicados sobre sismicidade no nordeste. Aqui já formamos vários mestres e pelo menos dois doutores nessa área de sismicidade.

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