Selma Jerônimo fala sobre o enfrentamento de doenças infecciosas no Brasil
Essa é a segunda vez que entrevisto a professora Selma Maria Bezerra Jerônimo pessoalmente, e novamente me surpreendo com a rapidez com que ela conduz o que está ao seu redor. Ela veio me buscar no estacionamento. Na volta, parou em uma espécie de berçário de plantas do Instituto de Medicina Tropical (IMT), no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conversou com o jardineiro, perguntando detalhes sobre as plantas e orientou sobre o plantio de mudas de ipê. Essas plantas deverão ter plaquinhas indicativas de sua origem e data de plantio.
Para continuar entregando conteúdo de qualidade, Nossa Ciência precisa do apoio de seus leitores. Faça um pix para contato@nossaciencia.com
Ainda no estacionamento, ao encontrar um casal de pesquisadores, discutiu questões técnicas sobre suas pesquisas. Enquanto a mulher foi embora de carro, o homem entrou no IMT e a conversa seguiu. Falaram sobre animais que chegariam e seriam utilizados nas pesquisas desenvolvidas ali. Jerônimo afirmou que iria solicitar que fossem animais destinados ao sacrifício por terem câncer ou fraturas – uma preocupação ética que pode poupar outros animais.
Subimos um lance de escadas. Ela fala rápido. Antes do início da entrevista, atendeu o telefone e deu orientações à pessoa do outro lado. Ainda enviou um áudio em inglês por um aplicativo de mensagens.
Foi informada de que a entrevista seria gravada e a publicação seria em texto. Quando solicitada a falar sobre um determinado tema e informada de que a resposta seria gravada em vídeo, perguntou sobre o tempo de resposta. A jornalista disse que ela não se preocupasse, pois, se ficasse longo, poderia ser editado. Jerônimo retrucou rapidamente: “Não. É na edição que pode estar o problema. Você diz o tempo e eu dou a resposta no tempo que você quiser.”
No seu currículo na plataforma Lattes, diferencia o uso dos verbos “ser” e “estar”. Com “é” define sua condição de sócia honorária da American Society of Tropical Medicine and Hygiene, de membro da Academia de Ciências da América Latina e de membro da Academia Brasileira de Ciências-ABC. Mas é com “está” que se define como diretora do Instituto de Medicina Tropical do Rio Grande do Norte, embora já exerça essa função há 10 anos, desde a criação da unidade na UFRN. A atuação do Instituto durante a pandemia de Covid-19 foi preponderante. Antes da disponibilização dos testes rápidos para detecção do vírus, o IMT realizou 170 mil exames de diagnóstico molecular.
Durante 18 meses, o Instituto de Medicina Tropical realizava diariamente exames para 18 municípios do Rio Grande do Norte. Natal e Mossoró eram os principais centros, mas cidades de diversas regiões do estado também foram atendidas. Professores, alunos e servidores da UFRN trabalharam sob a coordenação do IMT. Jerônimo cita o Metrópole Digital, os Centros de Biociências e de Ciências Exatas e da Terra, o Departamento de Química e a Faculdade de Farmácia como alguns dos integrantes da força-tarefa criada para enfrentar aquele triste episódio.
Foi nesse período, em 2020, que a unidade clínica começou a funcionar de forma emergencial durante a pandemia. Localizada no bairro das Quintas, em Natal (RN), atualmente oferece 12 mil atendimentos clínicos por ano. Contudo, esse número poderia ser maior se o IMT operasse com sua capacidade total, mas funciona com 30%. De acordo com a gestora, para atingir os 100%, são necessárias adequações na infraestrutura e a contratação de pessoal, como médicos, biomédicos, enfermeiros e biólogos.
A professora entende que a UFRN, como outras instituições federais, passa por um período crítico. Lembra que o gasto com a pandemia foi enorme e que a sociedade pagará essa conta por algum tempo. Como não existem recursos ilimitados, aguarda os resultados dos esforços da Reitoria. “Mas temos esperança de que as coisas melhorem. A contratação de pessoal e a melhoria da infraestrutura deverão ocorrer nos próximos quatro anos”, confia.
O IMT atua em duas frentes nas doenças infectocontagiosas: pesquisa básica e aplicada. “Temos pesquisas conduzidas por vários professores da UFRN, voltadas para entender doenças que ocorrem no estado do Rio Grande do Norte, mas com repercussão nacional e internacional”, explica.
Jerônimo informa que os pesquisadores da unidade básica identificaram diversos fatores de risco e ainda conseguiram desenvolveram estratégias de diagnóstico molecular e imunológico. Outro serviço prestado está relacionado à vigilância de vírus em transplantes, realizado no Laboratório de Biologia Molecular, órgão do IMT.
Quando perguntada sobre a produção científica durante a pandemia, Jerônimo diz: “Como cientistas, somos sempre interessados em produção científica, mas não tínhamos pessoal suficiente para tudo. Precisávamos atender, diagnosticar. Trabalhamos de domingo a domingo”, relembra. Esse esforço gerou um banco de dados expressivo, que poderá resultar em mais pesquisas. Entre as produções científicas, cita duas teses de doutorado e publicações em revistas indexadas. “Fizemos sequenciamentos importantes para entender quais variantes estavam circulando no Rio Grande do Norte.”
O trabalho do IMT excede a Covid-19. Projetos sobre hanseníase, leishmaniose e outras doenças continuaram, embora em menor escala. Em breve, novos resultados serão publicados.
Perguntada sobre quais são as doenças infecciosas que mais preocupam em 2024, Jerônimo discorre sobre o problema e apresenta as soluções. Ou pelo menos o que a ciência já encontrou como possível.
Para a pesquisadora, o problema é multifatorial. Ela explica que a globalização aumentou substancialmente a movimentação de pessoas por locais que antes eram restritos às comunidades locais. E é esse por esse trânsito que ocorre a transferência de vetores, ou seja, dos agentes causadores das doenças. No Brasil, por exemplo, as caraterísticas ecológicas da quase totalidade do país favorecem à proliferação desses agentes. Por outro lado, eles têm uma excelente capacidade adaptativa/evolutiva em seu sistema genético e por último, é difícil a instalação e manutenção de barreiras sanitárias, mesmo sabendo-se da gigantesca malha rodoviária, por onde trafegam pessoas, plantas, terra, micro-organismos, vetores de doenças…
Alguns aspectos são ressaltados pela pesquisadora. “Pensando em doença vetorial, os vetores – os artrópadas, que são os principais vetores no Brasil – têm uma capacidade de adaptação imensa. Eles desenvolvem resistência contra pesticidas em uma velocidade muito grande, por que eles têm um sistema genético, um genoma que é extremamente evolutivo. Então, as preocupações principais são esses vírus emergentes. A gente tem uma movimentação muito grande em áreas que previamente não circulavam pessoas, tinha os povos originários que moram nessas áreas, mas agora nós temos as pessoas que moram em outras localidades do Brasil adentrando por essas áreas. Então, a gente tem um risco de micro-organismos ainda não conhecidos que tenham um poder importante. E no nosso país, essa área tropical e subtropical, com umidade e a temperatura adequada, eles se reproduzem basicamente durante o ano inteiro.”
Ao listar as dificuldades para o enfrentamento das doenças infecciosas, a professora reconhece o esforço das autoridades. “No Brasil, é extremamente difícil, por todas as condições geográficas e a falta mesmo de infraestrutura. Mas, eu acho que os gestores municipais, estaduais e federais fazem o que é possível dentro da capacidade que se tem hoje.”
Quando se refere à infraestrutura, a pesquisadora aponta a solução. Ela lembra que no nosso país, é altíssimo o número de residências com reservatórios de água, as chamadas “caixas d’água” ou cisternas, que via de regra não são completamente fechadas. Esse tipo de armazenamento pode se tornar criadouros de mosquitos. “Se você perguntar a uma criança, ela sabe desenhar como evitar a proliferação do Aedes aegypti. Mas como é que você faz isso se você precisa de água?, pergunta.”
Em sua opinião, a solução é que todos tenham acesso à água de modo contínuo, sem necessidade de reservatórios e ao saneamento. A outra solução apontada passa pela educação. “Nós temos um sistema brasileiro que é o único no mundo, que é a estratégia de saúde da família. Nós temos um número muito grande de agentes que podem, treinados, auxiliar grandemente na condução de surtos. Eu acho que o Brasil é um dos poucos países que tem essa infraestrutura, que é um pequeno exército. Um exército que vai trazer o melhor para a sociedade.”
Ciência para a promoção da cidadania
Infraestrutura deficiente, indisponibilidade de reagentes e poucos recursos
Texto e fotos: Mônica Costa