Silvio Meira: “A gente mudaria esse país em 30 anos” Entrevistas

segunda-feira, 19 outubro 2015

O professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, Silvio Meira, recebeu o Nossa Ciência no Centro de Informática, em Recife/PE. Nesta segunda parte da entrevista, ele fala da (falta de) importância da ciência produzida no Brasil e sobre a capacidade da ciência oferecer soluções para os problemas brasileiros. Rápido nas respostas, o cientista da computação hesitou uma única vez durante toda a entrevista, quando foi perguntado sobre o que faria diferente na sua vida se tivesse uma segunda chance.

Para ler a primeira parte da entrevista, acesse aqui .

Nossa Ciência: O que o senhor faria diferente na sua vida?

Silvio Meira: Eu vou botar uma precondição na resposta. Sabendo o que você sabe a posteriori, depois de 40, 50 anos de experiência, é muito fácil você dar respostas. Mas com o grau de ignorância que eu tinha sobre as coisas e sobre a vida, eu não faria nada diferente. À época que eu comecei, se eu fosse uma pessoa mais cordata, que ouvisse mais as outras pessoas, talvez tivéssemos demorado muito mais tempo para fazer o que fizemos, mas talvez tivéssemos perdido muito menos gente no processo. Não chega a ser arrependimento, mas tem uma coisa que eu acho que nós perdemos. Perdemos muita gente porque fomos muito depressa. Mas nós tínhamos um medo muito grande de que se não fizéssemos com a velocidade e com a pressão que fizemos, jamais conseguiríamos fazer porque nossa energia iria se exaurir no processo.

O que eu faria diferente? Eu sempre tive uma crença ingênua de que as instituições brasileiras iam se resolver até o fim da minha vida. Desde que eu tinha 11 anos de idade, eu já conseguia entender o que era um golpe de estado até quando eu me formei no doutorado dentro de uma ditadura – 20 anos, de 1965 a 1985 –, eu tinha certeza de que quando a gente resolvesse a ditadura, a gente ia resolver o país, mas eu fui muito ingênuo ao acreditar nisso. O Brasil em muitas coisas continua tão ruim, quanto em 1967, 1968, 1970. E obviamente tirando o funcionamento das instituições democráticas – ainda bem que elas estão funcionando – num número muito grande de coisas, o país está muito pior. Para mim isso é uma espécie de derrota pessoal, pois eu acho que eu não fiz a minha parte e a minha geração não fez a parte dela tão intensa e competentemente como poderia ter feito.

NC: O que lhe faz chorar?

SM: O que me faz chorar são os problemas que são tão fáceis de resolver e a gente não se articula para resolver.

NC: Qual é a importância mundial da ciência produzida do Brasil?

SM: O Brasil vai continuar sendo irrelevante. Vez por outra no Brasil, a gente tem um surto de otimismo. O que são esse surtos de otimismo? Você derruba o regime militar, (você diz) o Brasil agora vai dar certo, vem Sarney e companhia limitada, assumem o país e você desiste; depois vem o Collor e você derruba ele, (você diz) agora vai dar certo; depois Fernando Henrique ajeita a economia e você diz agora vai e depois cai tudo; Lula entra e você diz agora vai mesmo e a gente tem o maior caso de corrupção da história da humanidade de todos os tempos e um desacerto nunca visto na história do Brasil.

Temos que passar no Brasil pela reflexão séria enquanto país. O Brasil deixou de ser um aspirante a ser um país de primeira classe. Ser primeira classe não significa nem o tamanho, nem o poder, nem a renda per capta. São esses países onde as coisas funcionam, que tem projetos de longo prazo. Quem está lá? Os suspeitos usuais, Dinamarca, Alemanha, Noruega, França, Inglaterra e até países como a Polônia. O Brasil também não é um país de terceira classe, como o Zimbábue, como o nosso ministro de Ciência e Tecnologia (Aldo Rebelo) compara o sistema de saúde daqui com o de lá. O problema do Brasil é a gente se localizar entre os países de segunda classe e ver o que é que dá pra fazer.

NC: Quais são os outros países de segunda classe?

SM: A Malásia, Indonésia, Tailândia, Argentina, Nigéria, México. Nós e uma galera que é desorganizada o suficiente para não ir para a primeira classe, mas que não é desorganizada o suficiente para ir para a terceira classe, como a Venezuela foi. A gente tem que lutar para não virar uma Venezuela.

NC: Há mudanças previsíveis no horizonte?

SM: O Brasil não investe nas coisas tempo suficiente para resolver problemas de longo prazo como a educação, o problema do ensino superior, o problema da articulação dos centros de pesquisa. Enquanto a gente não pensar no Brasil com o horizonte largo de cinco, de vinte, de trinta mandatos ninguém vai fazer nada. Por que o Centro de Informática fez o que fez? Porque a gente independia totalmente de quem era o reitor, o ministro da Educação, o presidente da República. O conjunto de professores do Centro de Informática, que no começo eram três, mas depois eram muito mais, resolveu que ia transformá-lo num centro de excelência e referência de ensino e pesquisa e desenvolvimento de informática no Brasil e trabalhou durante 20 anos para fazer isso. Cinco mandatos típicos de um governante brasileiro. E a gente sempre se relacionou com todos eles. Não queria saber qual era o seu viés político, a sua orientação partidária. Eu acho que o que a gente fez no Centro de Informática serve como exemplo de que se um conjunto dedicado de pessoas se comprometer com um certo conjunto de objetivos e resolver trabalhar incessantemente para tentar chegar nesse objetivo durante décadas, elas chegam lá, mesmo no Brasil.

NC: Mas o que é preciso para se fazer ciência?

SM: Precisamos ter problemas para serem resolvidos.  Um país como o Brasil não tem muitos problemas para resolver, nós temos poucos. Se você não partir para resolver só poucos, você não resolve nenhum porque nenhum país tem dinheiro para resolver tantos.

NC: Há exemplos bem sucedidos no Brasil?

SM: 1968. Um conjunto de epidemiologistas e sanitaristas brasileiros se reúne na Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro e começa a desenhar o programa nacional de extinção da poliomielite no Brasil. Lá tinha comunistas, militares, estrangeiros… Em 30 anos, o Brasil domina a pólio. O problema foi tornado relevante e isso puxou todo o desenvolvimento científico e tecnológico e mesmo quando o Brasil não tinha um real para coisa nenhuma, tinha dinheiro para a pólio, porque pólio era um problema nacional e foi resolvido como tal.

NC: Que outros problemas poderiam ser tratados como “problema nacional”?

SM: Se quisermos sair desse negócio de ser de segunda classe, vamos escolher alguns problemas. O Brasil tem a região semiárida de maior densidade populacional e maior população do mundo. Por que é que na região seca mais povoada do mundo, dessalinização nunca foi um problema que está alto na agenda de governo do estado, da prefeitura? Quando existia esse caos chamada Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) por que não era uma estratégia lá? Por que esse problema não foi tornado relevante? Esse é um problema que tinha que ter sido resolvido no nordeste. Israel resolveu porque passou 40 anos trabalhando nele.

Se você juntar toda a expertise, se eu ou qualquer outro cientista fizer uma pesquisa na internet sobre o estado da arte de dessalinização da água no mundo e propuser o mesmo problema do estado da arte no Brasil para geração de conhecimento brasileiro, você pode propor: nós vamos instalar um sistema de um milhão de litros d’água por dia em Caruaru e nós só queremos pagar tanto por litro d’água, então o problema se multiplica por mil, porque não é só resolver o problema aqui no nordeste. A gente resolveu aqui, mas o custo do litro d’água aqui é 20 vezes maior que o de Israel. Tem que ser competitivo internacionalmente. Isso tem ciência e tecnologia para “torar”, tem pouquíssima gente que sabe fazer no mundo.

Mas se decidirmos que isso não é um problema, a gente podia botar na constituição: os estados das regiões onde tenha uma predominância do semiárido ficam desobrigados a prestar qualquer assistência à população que morar por lá, ou seja, se morar aqui e aqui (aponta um mapa imaginário), o problema é seu, nós só vamos em caso de crime de morte. Agora, depois de 200 anos de seca, se estar com caminhão pipa para lá e para cá?! Isso é completamente inaceitável!

NC: Então se houvesse uma concorrência internacional para resolver…

SM: Israel vende todinho aqui. A gente tem que vender para Israel, a gente tem que vender para a China, que tem problema de salinização também, mas a gente vai comprar deles. Pela mesma razão que não tem software brasileiro no seu celular. Como a gente não usou os megaproblemas que a gente tem para desenvolver essas competências, no fim, aquela câmera ali não tem um pedaço que seja brasileiro, no teclado, nessa chave, em nada que você está vendo aqui. Ainda somos um país de economia agrícola, de criação e mineração. Então nós estamos no negócio de pedrinhas, proteína e grãos, por isso que é de segunda classe!

NC: O senhor afirmou que os problemas brasileiros são tão fáceis de resolver. Cite um.

SM: É tão fácil resolver o problema da educação básica no Brasil ou em qualquer outro país. Se a gente fizesse qualquer plano de 30 anos, se o Brasil botasse isso na agenda nacional, a gente resolvia. Trinta anos com pessoas dedicadas e até menos dinheiro do que se tem hoje. Se a gente tivesse os planos, as estratégias, podia tirar da Constituição que tinha que botar 10% do PIB (Produto Interno Bruto) em educação. Em vez de 10% do PIB, se botasse que ao acabar o ensino fundamental, 70% de todos os brasileiros deverão estar no ensino médio; se efetivamente resolvesse o problema de formação do professor, de funcionamento das escolas, de alocação de recursos para a educação, de direção escolar, de performance de professor em sala de aula, de presença do aluno na escola, de movimento dos pais, de transformação de todas as escolas em escolas de tempo integral, todas no Brasil inteiro, não precisaria ter ar condicionado em todas as salas, mas teria que ter professor o dia todo; a gente resolveria, a gente mudaria esse país em 30 anos. Cada dia que a gente passa, faltam 30 anos para gente resolver esse problema.

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