Neurocientista da UFRN condena recriação de espécies extintas Entrevistas

sexta-feira, 25 abril 2025
Colossal Biosciences apresentou animais como lobo-terrível, extinto há 10 mil anos (Foto: Colossal Biosciences)

Desextinção ou ficção? Tarciso Velho aponta marketing por trás de projeto científico para recriação do lobo-terrível

“Isso não é ciência, isso é marketing.” Essa foi a resposta de Tarciso André Ferreira Velho à pergunta sobre a notícia da desextinção do lobo-terrível (Aenocyon dirus), recentemente anunciada pela empresa Colossal Biosciences, nos Estados Unidos. Velho é professor adjunto do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e conversou com Nossa Ciência por chamada de vídeo.

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Há duas semanas, uma reportagem da Revista Time indicava a criação do lobo-terrível, animal extinto há 10 mil anos e que viveu nas Américas. Como entender essa notícia? O que ela nos apresenta como presente e futuro? Esse foi o teor da conversa com o professor Velho.

Informação genética de boa qualidade

A referência ao filme Jurassic Park é inescapável. Na história, dinossauros são recriados a partir de material genético — e esse é só o começo dos problemas. Na vida real de 2025, a recriação de espécies extintas é possível? “Depende da espécie”, garantiu o pesquisador. E a resposta para saber se é possível ou não está na qualidade do DNA. Para animais extintos há 50 anos, por exemplo, a informação genética disponível é de boa qualidade, e há até células congeladas. “Não só a gente tem informação genética, como tem material, células congeladas. Então, você sabe que esse núcleo contém todo o material daquela espécie, e você tenta gerar um embrião a partir disso”, explica. Portanto, de acordo com o professor, se há material biológico intacto, é possível recriar espécies extintas.

Pesquisador afirma que material biológico intacto torna possível recriação de espécies extintas (Foto: Cedida)

Quando se trata de uma espécie que foi extinta há 50 mil, 100 mil anos, a realidade é outra. O professor explica que, na maioria dos casos, o DNA de fósseis não fornece as respostas necessárias à recriação de uma espécie extinta. Seria como montar um quebra-cabeça do qual faltam peças. “Você tem um certo nível de informação, mas não tem a informação completa. Lembrando que a gente nunca vai ter a informação completa dessas espécies, porque o material (DNA) vai vir fragmentado. Falta a informação do genoma, de como esse genoma está organizado, de como ele era expresso…”

“Então, como você não tem a informação completa, vai pegar características que você acha que são importantes, que vão fazer com que esse animal se pareça com o original. Mas ele não é. Na melhor das hipóteses, você terá esse material fragmentado e vai ter que usar outros animais para preencher os buracos e montar esse genoma”, esclarece.

Notícias publicadas na imprensa indicam que, no caso do lobo-terrível, após o sequenciamento genético de dois fósseis — um dente de 13 mil anos e fragmentos de um crânio de 72 mil anos —, a equipe de cientistas identificou no lobo-cinzento (Canis lupus) o animal que preserva o parentesco mais próximo com o extinto. Células de lobo-cinzento passaram por 20 modificações em 14 genes para alcançar características mais próximas do lobo-terrível e foram implantadas em uma cadela. Do experimento, nasceram três animais — dois machos e uma fêmea — que foram apresentados pela empresa como espécimes de lobo-terrível.

Propaganda enganosa

Tarciso Velho conversou com Nossa Ciência por chamada de vídeo (Foto: Mônica Costa)

Para o professor Tarciso Velho, trata-se de um grande caso de propaganda enganosa. Ele afirma que, logo ao ver a notícia, teve interesse em entender a metodologia do processo e, menos de duas horas depois, já havia chegado à conclusão expressa no início do texto. “Mais de 99,9% desse animal é um lobo-cinzento. Então, ele é um lobo-cinzento modificado, mas não deixa de ser um lobo-cinzento. Quatorze modificações não são suficientes para você dizer que é uma espécie diferente. Porque o que se está dizendo é que não é mais um lobo-cinzento e agora é um lobo-terrível. Isso, por qualquer definição de espécie que você quiser, não vai se enquadrar”, sustenta.

O problema, entretanto, não está relacionado à idade do fóssil, mas à qualidade do material genético encontrado. Entre os projetos anunciados pela empresa estão a desextinção do mamute-lanoso (Mammuthus primigenius), do dodô (Raphus cucullatus) e do lobo-da-Tasmânia (Thylacinus cynocephalus).

Um mês antes do anúncio sobre o lobo-terrível, a mesma empresa divulgou a criação de camundongos geneticamente modificados com pelos semelhantes aos do mamute-lanoso, espécie extinta há 4 mil anos. Os camundongos apresentam pelos longos e ondulados, semelhantes aos dos mamutes. Teoricamente, a recriação do mamute pode ser possível devido à identificação de um espécime congelado no Ártico. Afirmar a possibilidade teórica, entretanto, não é o mesmo que afirmar a possibilidade prática.

Pouca ciência

Filhote de lobo-terrível, segundo a empresa (Foto: Colossal Biosciences)

De acordo com Velho, já era de conhecimento da ciência quais alterações genéticas em camundongos interferem na conformação do pelo do animal. Em relação ao experimento da Colossal, as informações disponíveis não permitem distinguir “qual é a contribuição das modificações específicas de mamute para a pelagem que eles fizeram. Então, é a construção de uma narrativa que, na verdade, tem pouquíssima substância e muito pouco a ver, de fato, com o mamute.”

Em ambos os casos, a opinião do professor é clara: há pouca ciência e muito marketing. “Uma coisa é você fazer ciência. E eu fiquei supercurioso em tentar entender a ciência por trás disso. O que eles estão fazendo é gerar uma narrativa para o produto que querem vender, seja ele qual for, independente do grande objetivo”, afirma. Para ele, trata-se de uma tentativa de construir a ideia de que a sociedade está empenhada em reconstituir espécies extintas. “Só que, de ciência, eles ofereceram muito pouco para a gente. Porque não existe um artigo científico publicado com base nisso.”

Velho destaca que, no caso dos camundongos, ao menos houve um pré-print, embora ainda em estágio inicial, sem a devida revisão por pares — etapa essencial para a validação do conhecimento científico. “O do lobo é muito pior”, aponta. “Se baseia apenas em duas entrevistas concedidas, com fotos lindas, maravilhosas, de lobos brancos maiores do que o normal. Então, acho que a gente não está discutindo ciência. A gente está discutindo, na verdade, uma estratégia de marketing da empresa em si.”

Biologia e ética

Afinal, há necessidade de se recriar espécies extintas? “Como sociedade, a gente deveria questionar isso”, responde o cientista. Ele classifica como bastante diferentes os casos de recriação de espécies reconhecidamente extintas há 40 ou 50 anos — cuja causa foi a ação humana — dos casos de recriação de espécies extintas há milênios. “Tem alguns exemplos de pássaros, por exemplo, na Austrália e na Nova Zelândia, que foram literalmente extintos pela ação humana. O nicho ecológico delas ainda está aqui, é o mesmo. Então, se a gente conseguir resgatar essas espécies, que estão bem mais próximas de nós, é muito mais justificável do que recriar uma paleoespécie, uma espécie que foi extinta há 50, 100 mil anos”, pondera.

Cientistas usaram células do lobo-cinzento para experimento (Foto: Chris Muiden / Wikipedia)

“A gente tem o direito de trazer de volta espécies extintas há tanto tempo, para um ambiente completamente modificado — não só pela influência antrópica, que é clara, mas também pelo tempo, pelo clima que mudou?” A essa questão, apresentada pelo próprio pesquisador ao ser indagado sobre os aspectos morais que envolvem a recriação de animais extintos, ele propõe razões científicas e éticas para refletir sobre o problema.

Ele aponta que, do ponto de vista científico, os avanços que estão sendo promovidos nos experimentos citados na área de clonagem podem ser superinteressantes, especialmente no campo da ciência básica, pois podem ajudar a entender diversas doenças. Por outro lado, do ponto de vista biológico, argumenta que já se cometeram muitos erros com tentativas de introdução de espécies — erros que foram catastróficos. “A Austrália é um exemplo fantástico disso. Tem todos os exemplos possíveis e imagináveis de espécies que foram introduzidas e que modificaram o ambiente completamente”, exemplifica.

Outro problema destacado pelo neurocientista é a falta de lugar no mundo moderno para abrigar essas espécies. “Hoje a gente tem uma dificuldade enorme para manter as populações de lobos. Os Estados Unidos são um exemplo claro. Lá, os lobos estão protegidos por lei, e a população começou a aumentar — e você tem, invariavelmente, conflito com fazendeiros. Aqui no Brasil, a gente vive esses conflitos relacionados à onça-pintada, onde há um habitat cada vez mais fragmentado e, por isso, ocorrem cada vez mais encontros. Esses fazendeiros provavelmente não vão gostar de ter um lobo gigante predando suas vaquinhas lá no meio do mato”, aposta.

Ciência para o desenvolvimento

Professor defende que é preciso construir pensamento crítico (Foto: Cedida)

Um cientista ciente do seu papel de cidadão. A frase, que parece um trava-língua, aplica-se bem ao professor da disciplina Seminários de Neurociência, que morou por quase 20 anos nos Estados Unidos, onde fez seu doutorado. Em meio a discussões técnicas, ele estimula alunas e alunos de graduação a pensarem criticamente sobre o papel da ciência na sociedade.

Tarciso Velho acredita que, na sociedade contemporânea, quem controla a narrativa controla o que é visto como verdade e o que deixou de ser. Para ele, a ciência precisa estar acima disso — mas reconhece que não está, e talvez nunca tenha estado. Diante desse cenário, uma das grandes preocupações do professor com seus alunos é fazê-los compreender a importância de olhar além do discurso, buscando enxergar os fatos em si. Compreender que, muitas vezes, as narrativas e histórias ganham um tamanho maior do que os dados permitem inferir. É fundamental distinguir o que os dados realmente mostram e o que o texto afirma.

“A gente tem que, cada vez mais, construir pensamento crítico. Porque, com o advento dessa cultura de narrativas, se não desenvolvermos crianças, jovens e adultos capazes de ler e observar criticamente o mundo, o nosso futuro será complicado”, finaliza.

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Mônica Costa

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