Sociólogo trava importantes batalhas para derrubar o mito criador do Brasil e do complexo do brasileiro vira-latas
Um dos mais importantes teóricos da Sociologia Brasileira na atualidade, Jessé Souza, é potiguar e mantém laços profissionais e pessoais com o nordeste. Ele recebeu Nossa Ciência para uma entrevista numa das salas de aula da Escola do Tribunal de Contas de São Paulo, de onde é presidente. Nas entrevistas que dá e até no programa semanal que apresenta no Youtube, o pesquisador fala como cientista social, coloca premissas, não estende conceitos a outras realidades e tenta sair da superfície das análises, numa atuação que pode ser classificada como divulgação científica e também ativismo social.
A vida na origem do trabalho
Ainda adolescente, com 16 ou 17 anos, Jessé José Freire de Souza decidiu que assinaria seu nome como Jessé Souza: “Eu sou filho do meu pai, eu escolho de onde eu sou, de onde eu venho”. Aquele ato de afirmação identitária, quando ainda estudava no Colégio Marista, em Natal (RN), tem a mesma origem do que seria mais tarde a sua teoria, e que pode ser considerada como uma nova tradição na Sociologia Brasileira.
Oriundo da classe média, Jessé define a própria família como os primos pobres de uma família rica e que ascendeu politicamente. O seu tio Jessé Freire foi senador e outros parentes ocuparam vários cargos públicos, inclusive o de governador do Rio Grande do Norte. “Essa relação foi muito importante para mim e isso tem a ver com você não saber direito qual é o seu lugar, tem a ver com humilhação daquelas que você sente calado e ouve calado, as humilhações que meu pai sofreu e porque é meu pai, eu me identifico com elas, eram minhas.”
Eu acho que tenho uma função a desempenhar não só no conhecimento específico que estou trazendo, mas da atitude. A atitude científica não é admiração basbaque, ciência é crítica, você pode ter uma crítica positiva, como no meu caso com Florestan Fernandes, de uma incorporação, em grande medida positiva.
O ponto de partida para o seu trabalho foi a compreensão de como a sociedade funciona; do porquê haver injustiça e humilhação; de como as emoções, o afeto e a irracionalidade, que influenciam a vida das pessoas em geral, agem na sociedade. Ele afirma que nunca perdeu a consciência de sua origem e nem a percepção dos elementos simbólicos que ferem e não deixam marcas de sangue e sim no espírito, na alma, elementos que podem comprometer a capacidade de reflexão. “E a coisa também de um povo já sofrido e humilhado, você vem todo de uma tradição, onde você tem que lutar com todos esses elementos que são simbólicos, foi sempre o que me atraiu, e então o meu material inteiro vem do Nordeste. Tudo o que eu tenho e trago e trouxe como reflexão tem a ver com a minha experiência como nordestino”, reforça.
Para Jessé, o estudo e a interpretação permitem ao pesquisador transformar a raiva da humilhação em arma política. “Você tem que transformar a raiva da humilhação em indignação. Foi isso que eu procurei fazer por que a indignação politiza a raiva, transforma a raiva numa arma política, ela pode tocar as outras pessoas.”
Quando questionado se sua grande produção literária e exposição na mídia, especialmente a que é conhecida como mídia alternativa, não cria algum mal-estar na academia, o pesquisador não hesita em reconhecer que seu trabalho tem despertado inveja daqueles que gostariam de estar em seu lugar. Mas confessa sua grande alegria de ter conseguido desenvolver as questões extremamente complexas da sua teoria social em um nível compreensível para qualquer pessoa. O penúltimo livro lançado por Jessé Souza – A elite do atraso. Da escravidão à lava-jato – foi uma das obras referenciadas pela escola de samba Paraíso do Tuiuti, no Rio de Janeiro (RJ), no carnaval de 2018. Semanalmente, o professor apresenta o programa Batalha das Ideias, na TV 247, no Youtube.
Disciplina e paixão
Para chegar nesse lugar, o potiguar tem se dedicado por mais de 40 anos a uma vida de estudos acerca da obra e do pensamento dos grandes autores. “Eu sei que isso precisa de muita disciplina, muita paixão pelo que você está fazendo, para que depois você possa pensar as coisas que lhe interessa, do seu país, de um modo novo, como eu acho que estou fazendo”, assume sem falsa modéstia.
Em mais de um momento, o pesquisador ressaltou sua origem potiguar e os laços que mantém com o Rio Grande do Norte, inclusive, pelo apreço à gastronomia natalense, notadamente o casquinho de caranguejo. Esse fato, porém, não interfere na sua avaliação de que o rumo e a importância que sua carreira alcançou se deve à saída para centros maiores. Ele credita ainda mais a sua estadia em São Paulo: “Se eu não tivesse vindo para São Paulo, se tivesse ficado no Rio de Janeiro, Brasília ou outra cidade que eu morei antes, dificilmente teria o impacto que eu estou tendo. São Paulo é a cidade mais importante, é onde todas as lutas políticas, econômicas, culturais são decididas.”
A percepção dos aspectos positivos de São Paulo vem lado a lado com a feroz crítica ao conservadorismo das elites, especialmente relacionadas à Universidade de São Paulo (USP). “É claro que a USP tem pessoas respeitáveis e admiráveis, mas ela é um instrumento de poder, para construir e dar legitimidade a essas ideias todas. A USP manda nos jornais, no campo cultural. As escolas de elite aqui são muito mais conservadoras e elitistas do que em todos os outros lugares”, afirma.
Teoria sem veneração
Com uma imensa produção bibliográfica (30 livros), Jessé Souza trava importantes batalhas para derrubar o que ele chama de mito criador do Brasil e que nos legou o complexo de vira-latas, que está na origem de quase todos os problemas que pesam sobre as costas dos brasileiros. Para começo de conversa, ele defende que o “brasileiro” não é mais corrupto, desonesto ou cordial do que qualquer outro povo, assim como garante que o “jeitinho brasileiro” não existe.
Para o autor, as características, em geral negativas, atribuídas ao brasileiro como um todo, são, na verdade, atribuíveis a apenas uma parte da população, aquela cujos privilégios da classe foram sempre reconhecidos como sendo mérito próprio e que corresponde a 1% dos brasileiros: a elite financeira. Essa, a elite do saque e da rapina, é proprietária das elites a política e a cultural, que são as outras elites que compõem o quadro social. E qual seria a origem desse mito do brasileiro vira-lata e corrupto por natureza, no qual acreditam igualmente as correntes políticas alinhadas à Esquerda e à Direita, pobres, classes médias e ricos? Jessé garante que foi e ainda é uma leitura errada da História do Brasil, engendrada na década de 1930 na então recém criada USP e difundida como verdadeira, com a chancela científica de representantes da mais importante tradição sociológica brasileira, como Sérgio Buarque, Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso, entre outros.
A minha percepção sobre o Brasil e sobre como o capitalismo em geral se apresenta entre nós é de ruptura com um autor como Florestan Fernandes, que era um investigador sério, competente, sabia o que estava fazendo em grande medida. Por esses outros (Sérgio Buarque e Raymundo Faoro) eu não tenho ‘respeito’ e a ‘veneração’, primeiro por que a ciência não é o espaço de veneração, (para) a veneração, você vai para a igreja.
Enfático e longe da veneração que critica na ciência, Jessé chega a dizer que essa tradição é um flato e cheira mal: “O que me interessa numa ideia é a sua eficácia social. Ela liberta ou ela humilha? Ela empodera ou oprime? As ideias que esses caras inventaram marginalizam, desempregam, humilham e rebaixam 200 milhões porque a elite, que é a única que ganha com isso, são 100 mil famílias. Não quero fazer compromisso nenhum com essa tradição, eu quero rompê-la, eu quero destruí-la, eu acho que ela não vale nada, ela é um flato, cheira mal, ela mente e serve para interesses inconfessáveis, para invisibilizar o poder de uma elite do saque e da rapina. Pra mim isso é imperdoável.”
Dessa escola, Jessé exclui o nome de Florestan Fernandes. Ele afirma que esse teórico talvez seja a figura mais crítica na Sociologia e o pesquisador social cuja teoria é a mais sólida da geração dele. “Pelo ponto de partida que ele tem, com a História contada com a perspectiva do oprimido faz com que eu tenha uma admiração incondicional por ele”, declara, mas sem esconder que também tem críticas, especialmente em relação ao grande período da produção de Florestan, que foi nos anos 1950 e 1960.
Rompendo uma tradição
Consciente de que está rompendo com uma tradição e que pode ganhar o ódio daqueles que servem àquela tradição, afirma que “ninguém faz uma ruptura sem ter consequências”. Dois erros que abalam fortemente a explicação sociológica do Brasil, criada na USP na década de 1930 e repetida até hoje, até em mesas de bar, são apontadas pelo pesquisador. O primeiro é o que propõe o Brasil como continuação de Portugal, herdando daquele país o Patrimonialismo, que coloca no estado a origem de todo o mal e no mercado as virtudes da ética, da honestidade e do empreendedorismo. “Não é verdade que a gente vem de Portugal. É uma crença imbecil falar de corrupção no Século XIV em Portugal, quando a noção de soberania popular só entrou em prática, minimamente, no final do Século XVIII e dizer que a elite forte está no Estado”, afirma.
Brasil e Estados Unidos
Outro erro da mesma proporção apontado pelo sociólogo é a crença na existência do cidadão idealizado dos Estados Unidos, como empresário livre, protestante, acético, como produtivo e inteligente. “Isso não existe nos Estados Unidos desde a Guerra Civil americana em 1870. A partir daí nem sequer existe mais esse pequeno empresário, ele é engolido pelos grandes monopólios e a política é cada vez mais corrompida por esses monopólios. O grãozinho de verdade dessa coisa, que tinha antes, não existe mais. Então vem os brasileiros, 80 anos depois da destruição dessa imagem ideal, renová-la. É como se ela existisse no mercado e só não pudesse se desenvolver por causa do Estado corrupto.”
Eu vivo pela ideia da verdade, do que eu acho que é a verdade, do valor pessoal da verdade
Embora também tenha havido escravidão nos Estados Unidos, a marca deixada no Brasil foi muito mais forte. O professor explica que naquele país a parte escravista era menos importante do que a parte não escravista, e também muito menos importante do que a parte escravista no Brasil. Outro dado que mostra como o Brasil foi muito mais impactado é que para cá vieram 5 milhões de escravos, enquanto para os Estados Unidos vieram meio milhão de pessoas. Em comparação com países europeus, “os Estados Unidos são um país com muito mais desigualdade, um país violento, racista, extremamente discriminador, e se você retira as partes mais liberais, que ficam nas duas costas, você tem todo esse terreno que elegem um cara como o Trump. Esse país para mim não é modelo de nada, de coisa nenhuma, em nenhum sentido”.
Política falsamente emancipadoras ou dividir para governar
“Classe média de Oslo” ou “esquerda escandinava” é como Jessé classifica os que defendem as pautas da diversidade separadas das questões de igualdade, sem discussão acerca da divisão de riqueza ou poder. Ele afirma que essa separação foi o truque perfeito do capitalismo financeiro e que para esse sistema, não faz diferença se a exploração é sobre homens ou mulheres, gays ou héteros, brancos ou pretos. E por isso, ele advoga que todas as lutas têm que estar aparelhadas para se defender das armadilhas do capital financeiro.
“A Rede Globo é a boca do capital financeiro entre nós, não tem nenhuma boca melhor”, afirma. Assim, explica, ela pode defender lutas emancipatórias, pode posar de avançada, posar de ser libertadora quando ela é o contrário. Ela defende a fase do capital financeiro tremendamente destrutiva que está posta agora, que não é só uma nova forma de acumulação de capital, não é só uma nova forma de regime de trabalho muito mais opressiva e não é só econômica. Ela tem a ver com a quebra da reação das classes populares e trabalhadoras, por meio de todo tipo de subdivisão para enfraquecer, dividir para mandar, dividir para governar.
O fato de eu ter conseguido agora, com muito esforço, transformar essas questões complexas num nível em qualquer pessoa possa entender é a grande alegria da minha vida.
Ao afirmar que todas as pautas são importantes e que elas não são secundárias em relação a nada, Jessé ressalta que no Brasil, onde seres humanos são tratados como lixo, são assassinados, mortos, abandonados, esquecidos, a defesa da agenda escandinava mostra uma completa disrupção, uma grande patologia da nossa sociedade. Nos países escandinavos se pode defender as baleias, porque lá eles resolveram o problema da pobreza, dispara.
Sem negar que uma onda conservadora avança no mundo quando nos aproximamos do fim da década, o pesquisador afirma que esse fenômeno está relacionado a uma articulação consciente, desde a década de 1980, do capital financeiro sediado nos Estados Unidos. O professor explica que os efeitos dessa onda são diferentes em cada país. O capitalismo financeiro internacional está atacando a Alemanha também, mas dificilmente vai conseguir comprar empresas porque lá tem uma elite que pensa o país a longo prazo. No Brasil, ao contrário, a elite é imediatista e ficou contra todos os projetos de desenvolvimento estratégico que se tentou implantar no país. “A nossa elite é burra, ela é só do saque, só do roubo. É uma elite que ficou contra todos os projetos que tiveram como base o desenvolvimento estratégico do Brasil. Toda vez que houve isso, Vargas, Geisel, Lula e Dilma, esse pessoal deu um golpe. Essa é a elite brasileira, escravocrata típica de curto prazo” e segue responsabilizando essa classe: “O efeito no Brasil, que é devastador, poderia ter sido menor se a elite não tivesse montado há 100 anos esse esquema da subserviência estrangeira e de um domínio com a classe média para manter os pobres como subgente, manter a distância social e o ódio aos pobres como a marca verdadeiramente central da nossa sociedade.”
Pensar as categorias do pensamento
Para pontuar sua crítica ao pensamento de Florestan Fernandes, a quem classifica como um investigador sério, competente e que sabia o que estava fazendo, Jessé explica como ocorre a superação do conhecimento.
Ele afirma que o conhecimento científico parte de um certo patamar de questões, que é o que se pode considerar como o pensamento hegemônico daquele período. A perspectiva filosófica, entretanto, dá ao pesquisador a capacidade de questionar os pressupostos do pensamento científico, o que lhe torna capaz de produzir conhecimento novo, além do seu tempo. Em seus estudos, Jessé compreendeu que existe uma estrutura normativa, os sistemas de classificações morais invisíveis e inconscientes no capitalismo que classifica as pessoas como superior e inferior. É a compreensão de que o capitalismo não é uma estrutura neutra em termo de valores morais, que diferencia seu trabalho do de Florestan, para quem a superação da questão econômica poderia acabar com as desigualdades no Brasil. “O desenvolvimento econômico, por si só, não acaba desigualdade em lugar nenhum”, porque “o capitalismo deixa de ser apenas uma realidade econômica, a troca de mercadorias, o fluxo de capitais. Ele ganha uma dimensão moral, política, extremamente importante, tão ou mais importante do que poder e dinheiro, embora a gente só veja poder e dinheiro”, define.
Outra divergência do pensamento de Florestan aparece quando Jessé afirma que aquele autor confunde raça e classe. Podendo ser classificado como o cerne do pensamento jesseniano, a crítica ao conceito de patrimonialismo como categoria central de explicação do Brasil é colocada como estando a serviço da legitimação dos interesses econômicos. Reiteradamente, o sociólogo assume a condição de ativista e afirma que essa ideia estigmatiza o mercado e criminaliza a política, “para que o roubo real, o assalto, que é dos donos do mercado, fique invisível; para que o mercado seja percebido como honesto, trabalhador, quer dizer, é uma capa ideológica ao interesse econômico”.
O conhecimento científico parte de um certo patamar de questões e a partir desse patamar ele não pensa mais, ele trabalha com aquelas categorias, ele pode trabalhar pior ou melhor, mas dentro daquele horizonte. Quando o pesquisador tem uma perspectiva filosófica, ele não pensa só a partir disso, pensa nos pressupostos do pensamento científico e pode ir além do seu tempo, além do que é considerado o pensamento hegemônico mais importante do seu tempo.
Mônica Costa
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