Eleonora Menicucci: “Tolerância não é respeito” Entrevistas

terça-feira, 17 abril 2018
Foto: Nossa Ciência

Para professora e pesquisadora focada na questão de gênero e na violência contra as mulheres, a legislação brasileira precisa avançar nos direitos sexuais e reprodutivos

A mineira Eleonora Menicucci de Oliveira tem uma grande ligação com o nordeste e em especial com a Paraíba, onde tem título de cidadania, desde 2015. Na Universidade Federal da Paraíba (UFBP) cursou o Mestrado e foi docente de 1978 até 1990, quando se transferiu para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde é professora titular na Escola Paulista de Medicina. Falando de sua trajetória na docência acadêmica, se orgulha de sua Tese de Titular, defendida em 2006, ter sido a primeira a estudar a temática do aborto numa Faculdade de Medicina no país. “Eu fiz uma reflexão teórica sobre a situação dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência e grávidas em decorrência de estupro no Brasil.”

Antes de assumir ao cargo de Ministra-Chefe da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (SPM), no governo Dilma Roussef, chegou ao nível 1B como pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Toda a sua carreira acadêmica, assim como sua prática política, é focada na questão de gênero, direitos sexuais e direitos reprodutivos e a violência contra as mulheres.

Entre os temas abordados em sua entrevista ao Nossa Ciência, Menicucci falou sobre sua carreira de pesquisadora, relações de gênero no trabalho, aborto, mulheres trans, mulheres negras e a volta da democracia no Brasil, que, em sua opinião, ainda é “um país patriarcal, capitalista, racista e escravocrata”. A professora esteve em Natal participando de um evento realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Nossa Ciência: O que lhe dá mais orgulho na sua carreira de pesquisadora?

Eleonora Menicucci: Ter chegado a professora titular da Escola Paulista de Medicina, na área de saúde coletiva da Unifesp, em 2006. E esse orgulho foi materializado na minha tese de (professora) Titular, que foi sobre Violência de Gênero e eu foquei na violência sexual. Isso me dá muito orgulho por que eu honrei minha história acadêmica, minha história de vida, minha história política nessa área. Tudo por mérito e por determinação. Nós colocamos a linha de pesquisa Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e a questão de gênero na pauta de temas da Capes, do CNPq. Não foi fácil. Foi uma discussão enorme, foi uma disputa política e acadêmica, porque gênero não é tema nobre, não era. Eu tenho mais de 50 orientações entre Doutorado, Livre-Docência e bolsas de Pibic, Mestrado. E essas pessoas hoje são profissionais competentes, são profissionais da área acadêmica e muitas delas na área da saúde e estão dando aula em grandes universidades. Isso é o orgulho de qualquer pesquisador, de qualquer professor.

Eu sou paraibana de coração

NC: A senhora ainda tem laços com a Paraíba?

EM: Tenho laços muito fortes, tenho uma relação não só afetiva, mas uma relação profissional muito grande, de reconhecimento da UFPB por tudo o que eu fiz e tudo o que ela fez por mim. Eu fui homenageada dentro da universidade e foi muito bonito. Existe uma parceria muito grande. E a minha transferência para São Paulo foi por um problema de saúde, que piorava no calor. Eu tenho muito orgulho da Paraíba, do governador Ricardo Coutinho, da atual secretária Estadual da Mulher e da Diversidade Humana, Gilberta (Santos Soares). O governador foi meu aluno e a secretária foi minha aluna (risos). Eu sou paraibana de coração.

NC: Além de apresentar o problema da violência contra a mulher, a academia também está propondo soluções?

EM: São grupos de pesquisa variados. Eu estou lendo uma tese de Doutorado, do Departamento de Medicina Preventiva, da Escola Paulista de Medicina, que faz análise do processo que eu liderei no Governo Federal da implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência. Eu mesma tenho muitas pesquisas multicêntricas, que significa parcerias com outras universidades da Paraíba, de Alagoas, de Santa Catarina, de Pernambuco para ver a situação dos serviços de aborto legal e ver a situação das mulheres que abortam em decorrência de estupro e a qualidade do serviço. Na SPM, nós financiamos pesquisas sobre quem são as mulheres que abortam no país, porque a violência é muito ampla, infelizmente, ela atende vários focos. Tem pesquisas de vários centros.

NC: Como o tema da violência contra a mulher chega à academia?

EM: Na minha prática como professora do quarto ano médico, levava os alunos na Casa Eliana de Grammont, em São Paulo, para eles conversarem com mulheres vítimas de violência doméstica, e com as profissionais que as atendem. No final, vários deles choram. Alunos de quarto ano de Medicina, classe altíssima, e por que choram? Porque é a primeira vez que eles têm oportunidade de dizer que eles próprios vivenciam a violência dentro de casa, com o pai batendo na mãe. Várias pesquisas mostram e vários estudos têm demonstrado ao longo da trajetória, cada um na sua perspectiva, cada um com a sua importância. Recentemente eu li, pesquisas da Universidade do Ceará que reforçam isso, que as crianças, homens ou mulheres, que vivenciam a violência tem uma média de 90% de probabilidade de serem agressores ou de se submeterem à violência, no caso das mulheres. Infelizmente é dramática essa situação e, mesmo dramática, ela se banaliza porque ela se torna cotidiana na vida das pessoas e aquelas crianças não tem compreensão se aquilo é mau ou não. Quando se atende mulheres em serviços, se vê muito isso e tem muitos estudos que mostram essa crueldade.

NC: A senhora faz críticas aos números e afirma que não trabalha com números. Poderia explicar?

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EM: Eu trabalho com números, eu entendo os números, eu sou da pesquisa qualitativa, mas eu também trabalho com a epidemiologia e cruzo a epidemiologia com a fala das mulheres. Eu acho importante os números, mas desde que se mostre que atrás desses números tem uma vida humana e que esta vida humana pertence a uma classe social, pertence a um gênero, é de um sexo masculino ou feminino, pertence a uma raça, é uma trans ou é uma lésbica ou é uma indígena ou é uma deficiente. Infelizmente, os dados ainda não apontam para isso. E a outra questão que eu critico é a subnotificação dos dados da violência. Nós convivemos com uma epidemia e uma pandemia, do ponto de vista da violência, do estupro. Se nós pegarmos o feminicídio, também existe uma subnotificação de assassinato de mulheres. Somente agora, com a Lei do Feminicídio (Lei 13.104, de 9/03/2015), estamos melhorando, porque os dados sobre a violência dependem primeiro do preenchimento correto, quando é no caso de morte, do atestado de óbito, a causa mortis. Se na descrição tem útero alterado e aquela mulher foi assassinada, você pode dizer que é uma morte materna. O tamanho do útero é determinante na descrição do laudo, do atestado de óbito. Tem que melhorar o preenchimento do atestado de óbito, que é lamentável; tem que melhorar e qualificar o preenchimento das notificações compulsórias. Quando uma mulher dá entrada num equipamento de saúde por decorrência de violência doméstica, o profissional de saúde tem que comunicar à vigilância epidemiológica, não é denunciar para a polícia, é para a vigilância para melhorar os dados.

Duas coisas eu não consegui durante os quase seis anos do meu mandato de Ministra: negociar para ampliar os permissivos para o aborto legal e nem regulamentar o que já é previsto na Constituição, que é trabalho igual, salário igual

NC: Os problemas enfrentados pelas mulheres trans devem ser incorporados pelos movimentos de mulheres?

EM: Não só devem, como já estão incorporados. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 07/08/2006) as atende, nós a colocamos. Entre as mulheres, as mulheres trans talvez sejam as mais agredidas e violentadas, talvez mais do que as mulheres negras, porque são escolhas. O Brasil ainda é um país muito preconceituoso e muito discriminador e a questão da diferença ainda não é tratada a partir do respeito, da cidadania, da democracia. O Brasil sempre foi um país muito patriarcal, machista, escravocrata e racista e agregado ao Capitalismo, todas as formas de autodeterminações, de cidadania, de escolhas do exercício da sexualidade ainda estão no cerne do Patriarcado de impor a heterossexualidade compulsiva e fecundante. Quando você dá vazão a sua orientação sexual, que você assume ser lésbica ou ser gay – eu acho que as lésbicas são mais discriminadas do que os gays, por causa da maternidade – as trans são mais do que as lésbicas porque é mais forte a orientação delas e a escolha de sair do armário. Quando uma pessoa humana, seja homem ou mulher, não se aceita, quando ela tão tem condições de assumir leva até ao suicídio e no Brasil já se faz até cirurgia de mudança de sexo! Mas é um problema, culturalmente, muito difícil das pessoas entenderem. Então você tem que abrir cada vez mais para a aceitação e o respeito, porque a tolerância não é respeito. Respeito é você aceitar e incluir aquela pessoa diferente dentro das suas relações como igual a você com os mesmos direitos; a tolerância é que eu sou obrigada a tolerar, a conviver, isso não é sociedade democrática.

NC: A possibilidade de aprovação da PEC 181 é um grande retrocesso nos direitos das mulheres…

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EM: O aborto é a terceira maior causa de mortalidade materna no Brasil, a quinta causa de internação no SUS, e ao mesmo tempo estamos vendo no Brasil uma tentativa de endurecimento num retrocesso absoluto. Vimos numa comissão de 19 pessoas (na Câmara de Deputados), sendo 18 homens e uma mulher, esses 18 homens determinarem sobre a decisão dos nossos corpos, que é o Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 181, uma PEC importante, para aumentar a licença-maternidade e a licença-paternidade em gravidez de crianças prematuras e eles enfiaram o jabuti lá – o direito à vida desde a concepção, que é uma mudança da Constituição. Nós, o movimento de mulheres, o governo (Dilma Roussef), sempre fomos contra a aprovação dessa PEC que vai de encontro à vida e à cidadania das mulheres e vai radicalmente de encontro à Constituição Brasileira. O próprio código penal de 1940 permite o aborto em gravidez decorrente de estupro, a que coloca a mulher em risco de vida e gravidez de fetos anencéfalos e o Estado tem que assumir, tem que garantir a vida das mulheres e a aprovando essa PEC, esses três casos deixam de ser legais. É o maior retrocesso na vida das mulheres, mas isso faz parte da conjuntura que nós estamos vivendo de um golpe desde 2016, o golpe parlamentar que tirou a presidenta Dilma sem nenhum crime de responsabilidade, faz parte desse retrocesso dessa implementação das políticas neo-liberais no país, que as mulheres são as mais prejudicadas porque nós somos 52% da população.

Na década de 1970, metaforicamente, as mulheres vestiram calça comprida e entraram para o mundo do trabalho, mas os homens não entraram para dentro de casa, não vestiram saia, pra dividir conosco.

NC: A senhora afirma que o ônus da pobreza atinge as mulheres de maneira mais perversa. De que maneira isso ocorre?

EM: A pobreza recai sobre as mulheres, não há dúvida nenhuma; e no Brasil, sobre as mulheres negras, porque tem a história da escravidão. Então, enquanto nós não rompermos com o Patriarcado e com a escravidão, essa situação social não muda. Nós somos um país patriarcal, capitalista, racista e escravocrata com uma desigualdade social imensa. Mesmo com a regulamentação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nós só conseguimos equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas aos direitos dos outros trabalhadores e trabalhadoras em 2014, com a PEC das trabalhadoras domésticas (Lei Complementar 150, de 01/06/2015). A aprovação dessa PEC iniciou o processo de ruptura com a escravidão dentro das nossas próprias casas.  Nós, mulheres, somos 52% da população, sempre estivemos nos trabalhos mais precarizados, mais informais, ganhamos menos do que ganham os homens e somos mais escolarizadas, temos capacitação para qualquer profissão, inclusive naquelas consideradas masculinas e nós temos a sobrecarga do trabalho doméstico, da divisão sexual do trabalho. Na década de 1970, metaforicamente, as mulheres vestiram calça comprida e entraram para o mundo do trabalho, mas os homens não entraram para dentro de casa, não vestiram saia, pra dividir conosco. Interessa ao Patriarcado o trabalho não remunerado das mulheres, porque infelizmente agrega mais valia e aumenta o salário masculino. Nós somos mães de família, nós ficamos em casa e vamos para o trabalho, é a dupla jornada. Por isso nosso governo fez programas para contribuir com o lugar de sujeito das mulheres. O cartão do Bolsa-Família vai para a mulher, no Imposto de renda a mulher já é chefe de família, no Minha Casa Minha Vida a chave vai para as mulheres, o Luz para Todos, as cisternas. Isso é política pública.

NC: Como explicar uma campanha tão violenta contra o aborto e ao mesmo tempo aprovar uma reforme trabalhista que permite aos patrões deixarem as mulheres grávidas e lactantes em lugares insalubres?

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EM: Duas coisas eu não consegui durante os quase seis anos do meu mandato de Ministra: negociar para ampliar os permissivos para o aborto legal e nem regulamentar o que já é previsto na Constituição, que é trabalho igual, salário igual. Aparentemente isso pode parecer uma coisa banal, mas não é, por que se na primeira questão é a bancada da bíblia e a mão dos fundamentalistas das religiões, na segunda questão é a bancada do mercado que não permite. Respondendo a sua pergunta, eles vão tentar impedir qualquer avanço na legislação, eles vão tentar impedir o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos, dos permissivos para o aborto legal por causa do fundamentalismo religioso, que é muito forte no nosso país, mas o mercado também está nas igrejas pentecostais, gerindo as igrejas. Colocar as mulheres em lugares insalubres, elas adoecerem e se afastarem, tudo isso faz parte do Capitalismo. Não importa a vida das mulheres, nem no estupro e nem tampouco no mundo do trabalho, como ficou claro. Eu não acho que é contradição, é a mesma linha do neoliberalismo e a academia é um lugar de resistência porque é um lugar de produção, é um lugar de estudos, e como eu não acredito no estudo neutro, na ciência neutra, eu sou radicalmente contra (o projeto) Escola Sem Partido, porque não é sem partido, é uma visão de escola de ideologia nazista, onde não se pode criticar, onde não se pode pensar e a academia não é para isso. A verdadeira educação é aquela que prepara os jovens para a cidadania, homens e mulheres, jovens meninas e jovens meninos. É uma barbaridade a aprovação da Escola Sem Partido, que país é esse? Que educação é essa?

Eu defendo que a primeira questão é governar com um pacto com os movimentos sociais, e não com um pacto com as elites, como sempre foi feito no Brasil, desde o império

NC: Considerando que em 2018 tenha eleição e que o campo das esquerdas ganhe as eleições, o que o governo deve fazer para melhorar a educação, e maneira sistêmica para que a sociedade, as próprias mulheres e os homens enxerguem essa violência tal como ela é?

EM: Eu defendo que a primeira questão é governar com um pacto com os movimentos sociais, e não com um pacto com as elites, como sempre foi feito no Brasil, desde o império. A segunda questão a ser feita, se houver eleições e se nós ganharmos, é que tem que ter um plebiscito revogatório de todas essas tragédias que foram feitas em menos de dois anos, reverter tudo.

Mônica Costa

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