O direito à moradia é a questão fundamental na discussão do Plano Diretor, defende urbanista Amiria Brasil
Dando prosseguimento à cobertura sobre o Plano Diretor de Natal, que deverá ser votado pela Câmara Municipal, Nossa Ciência entrevistou Amíria Bezerra Brasil, que é doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, é Professora Adjunta do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Sua experiência em projeto e planejamento urbano e habitacional tem lhe credenciado para a participação em diversos fóruns para discussão do Plano Diretor de Natal.
Nessa entrevista concedida em sua sala na UFRN, reiterou as posições que tem adotado nas discussões públicas. Ela defende que o Plano Diretor tem que garantir o direito à moradia para todos e não só àqueles que podem acessar o mercado imobiliário formal. Rebatendo a acusação de que impedir a verticalização da orla é manter as comunidades tradicionais em situação de miséria, a professora afirma que a Prefeitura tem que desenvolver ações para essas populações. E a principal é a regulamentação fundiária, para que essas populações comecem a ter as condições para exercer a cidadania plena.
Nossa Ciência: Entre as questões fundamentais no Plano Diretor, se você pudesse eleger um ponto que a população de Natal tinha que saber e tinha que lutar por isso, o que você escolheria?
Amíria Brasil: Se fosse para eleger um ponto só, seria a garantia do direito à moradia. A principal questão de todos os planos diretores no Brasil é a função social da cidade e da propriedade. O Plano Diretor tem que garantir que os interesses coletivos estejam acima dos interesses individuais, que a cidade tenha um lugar para todos. De acordo com a Constituição Federal e com o Estatuto da Cidade, o plano diretor tem a obrigação de estabelecer territórios para moradia da população que não consegue acessar a cidade mercado imobiliário formal. Quando se fala de poder ou não construir mais ou construir menos, isso interfere diretamente no direito à moradia daqueles que não conseguem acessar essas construções. Mas tem outras questões que são de direitos coletivos como as questões ambientais e dentro destas, desde a década de 1970, se incorpora também o direito à paisagem. Natal tem uma especificidade, que é muito importante na discussão neste momento, que é a garantia dos espaços de proteção ambiental e o direito à paisagem. Natal é uma cidade turística e ela é turística por que ela tem uma relação muito interessante entre os elementos naturais e os elementos construídos. Grande parte das cidades do Nordeste, por exemplo, já não tem mais essa relação preservada.
NC: Natal deveria, por questões econômicas, ter cuidado com suas paisagens, que teve importância em fazer dela uma cidade turística. Não garantir o direito à paisagem pode ser configurado como uma espécie de “matar a galinha dos ovos de ouro”?
AB: Essa é uma pergunta muito interessante. Na verdade, eu acho que são visões diferentes. A gente não é contra a verticalização, a gente é contra a verticalização de uma maneira descontrolada, de uma maneira bastante intensificada. Quem olha especificamente o turista pode imaginar que verticalizar a orla, como outras cidades como Fortaleza ou Recife, que têm um paredão de prédios de frente para a orla, vai garantir a esse turista que pode pagar ou aquele morador que pode pagar e que vai estar lá dentro desse prédio, essa visualização privilegiada. Mas, primeiro, se interfere na relação dos elementos naturais em determinados momentos se esconde essas visuais, que são garantidas para uma democratização e muitas vezes pode destruir, como você mesma falou, o que se vende. Natal tem um turismo que é baseado no sol, mas a verticalização da orla mata esse sol. Nem precisa ir longe, em Areia Preta, a partir das 15h30 não tem mais sol na praia. Além da questão paisagística, da visual do Morro do Careca, da visual da Ponta do Morcego, das falésias na via costeira, do Parque das Dunas, a orla de Natal tem uma questão ambiental que é muito séria, que é a curta faixa de praia, e tem sofrido constante processo de erosão e a intensificação da construção nessa região também impacta ainda mais na eliminação da faixa de praia.
NC: Quais são as grandes questões em discussão no Plano Diretor?
AB: Natal tem uma característica muito específica, que é uma separação muito clara da população de alta renda e a população de baixa renda. O que o Plano Diretor estabeleceu como mancha de interesse social, se vê uma linha divisória muito clara no eixo que vem de leste e sudeste e a parte oeste e norte que são bastante baixa renda. Mas ainda tem garantido pelas Áreas Especial de Interesse Social (AEIS) uma população tradicional que mora na orla, que vive dessa orla. Quando o prefeito fala que é preciso levar gente pra morar na orla, que precisa adensar a orla, na verdade, o que isso significa é uma substituição da população que já mora lá. Tem comunidades tradicionais que moram na orla, como o pessoal da Vila de Ponta Negra, como o pessoal da Rua do Motor, Brasília Teimosa, Santos Reis, que são pessoas que vivem da relação com a praia. São pescadores, artesãos, marisqueiras, vendedores ambulantes… Tem uma economia pulsante nessa orla, que obviamente precisaria de investimentos para melhorar essa economia. Quando se fala de trocar essa população por uma população de alta renda, ou seja, trocar essas construções por verticalizações, essa população não teria condição de acessar essas moradias e naturalmente ela seriam expulsas para áreas mais distantes. Natal tem o preço da terra muito alto, então provavelmente, eles não conseguiriam se fixar perto da orla, se não tivesse políticas públicas que garantissem isso. Então, essa população iria migrar para áreas mais longe, possivelmente na região metropolitana.
NC: Ou seja, os pobres vão sendo expulsos para cada vez mais longe. A discussão sobre região metropolitana é pertinente nesse momento?
AB: Com certeza, mas esse tema não tem chegado na discussão do Plano Diretor. Existem dois processos de saída de população para municípios vizinhos. Um é da população de alta renda, porque quer espaços que não se encontra mais em Natal, como aqueles condomínios enormes, tipo Alphavile. É uma saída escolhida, digamos assim. E tem essa população que não tem mais condição de morar em Natal, porque o preço da terra é muito alto. Quanto mais se valoriza esse preço da terra, menos acesso essa população tem. E qual é o problema disso? O problema é, principalmente, o que a gente chama de movimento pendular: as pessoas vão dormir em casa, no outro município, e vêm para Natal trabalhar. Para o trabalhador de baixa renda, esse custo de transporte é muito alto, tanto financeiro, quanto de tempo. A questão metropolitana deveria sim estar sendo pensada nesse momento de discussão do Plano Diretor. Pelo menos em relação aos municípios de Natal, São Gonçalo, Extremoz e Parnamirim, que o Observatório das Metrópoles, no Departamento de Políticas Públicas, parceiro nosso do Fórum, chama de metrópole funcional. Esses municípios funcionam como um organismo único. A única coisa que se fala são dados que não estão sendo analisados profundamente que diz por exemplo que Nova Parnamirim ganhou população, Natal teve pequeno decréscimo, então, se diz que isso significa que tem um processo migratório de Natal para Parnamirim. Isso não é uma relação direta.
NC: Há áreas que o PD atual já permite a construção de prédios e onde ela ainda não está sendo utilizada completamente. Que áreas são essas onde o setor imobiliário ainda pode construir prédios?
AB: Quando a gente fala de infraestrutura, está falando de saneamento, de abastecimento d’água e também de transporte. Então, atualmente, a zona adensável, onde se pode construir mais e que coincide com a zona que tem infraestrutura instalada. São os bairros mais centrais geograficamente, como Barro Vermelho, Lagoa Seca, Lagoa Nova, Petrópolis, Tirol. Por serem bairros históricos, Ribeira, Cidade Alta e Alecrim têm especificidades e uma legislação para as áreas de proteção patrimonial que se sobrepõe à legislação fundiária adensável. Outro fato é que eles têm uma estrutura fundiária, o tamanho dos terrenos que não permite um adensamento tão grande. Mesmo fazendo parte da zona adensável, a orla tem a proteção do controle de gabarito, que limita a verticalização e também é permeada por população de baixa renda, que é protegida por essas áreas especiais. Mas, mesmo com um adensamento de construção alto, essa área não tem tido um adensamento populacional maior, por que adensamento de construção não significa adensamento populacional.
NC: O que é a diferença?
AB: No adensamento populacional tem muita gente por espaço, por área de terra e o adensamento construtivo é quando tem muita construção por área de terra. Petrópolis é onde tem um dos maiores adensamentos de construção, porque tem aqueles edifícios verticalizados mas tem pouca gente morando em apartamentos muito grandes. Enquanto em Igapó é um dos bairros que tem um maior adensamento populacional, ou seja, tem muita gente morando em casas muito pequenas. Então tem muita gente por metro quadrado em Igapó e tem pouca gente por metro quadrado, mas muita construção por metro quadrado em Petrópolis e nesse PD só se tem discutido adensamento construtivo. Não há uma discussão de como transformar esse adensamento construtivo que já tem hoje em adensamento populacional.
NC: Que consequências a cidade vai ter se a Câmara Municipal aprovar um plano diretor no modelo proposto pelo mercado imobiliário?
AB: Os setores imobiliários, dentro dos seus direitos, querem maiores condições de construção. O que vai ser construído precisa ser refletido a partir da infraestrutura que tem. E falar em infraestrutura não é só do esgotamento, mas também do sistema viário. Natal aguenta se eu jogar, ao longo das suas vias já congestionadas, vários prédios com 2, 3 carros por apartamento, que a realidade? Ou sem investimento transporte público? Além disso, quais são os impactos que essa verticalização vai ter no clima da cidade? Qual é o impacto da troca de uma casa, que muitas vezes tem área arborizada dentro do terreno, por um prédio vertical, tanto no sombreamento de algumas áreas, quanto na mudança dos ventos? Vai ter um impacto também no nosso abastecimento de água por que Natal foi construída em cima de dunas e o abastecimento de água vem em grande parte pelo nosso lençol freático. Então quanto mais a gente impermeabiliza, menos absorção dessa água. Se esse sistema de infraestrutura de esgoto não suporta essa densidade de população, a gente vai ter um contaminação também nesse lençol freático? São vários impactos que precisam ser previstos e calculados pela prefeitura antes dela autorizar a quantidade de construção.
NC: Isso significa que a classe média e quem tem poder aquisitivo alto também pode ser prejudicado por um PD que não leve em consideração estas questões?
AB: Com certeza. Natal hoje em dia tem grande parte que ainda funciona no sistema de fossas, enquanto está sendo implantado o sistema de esgotamento. Tem se falado muito ultimamente em contaminação e aumento de nitrato na água e essa água é a água que a gente bebe, a ventilação também afeta todo mundo, o adensamento de construção traz uma diminuição das áreas verdes e isso tudo causa mudanças no clima que é uma coisa que é bastante democrática, o clima é pra todo mundo, então os impactos são pra todos sim se não for planejado corretamente.
NC: A Zona Norte é muito grande, nem é um bloco homogêneo, a própria definição zona norte diz pouco, só diz que você passou da ponte, mas naquela região o que é permitido e o que não deve ser feito em termos de urbanismo?
AB: As regiões Norte e Oeste estão totalmente dentro da mancha de interesse social. E o que é que isso significa? Que são duas áreas socialmente frágeis por que têm população de baixa renda concentrada, com muita ocupação informal e que tem ainda insuficiência de infraestrutura, ela ainda está em processo de implementação. A Região Norte é uma zona de adensamento básico, que são os mesmos tipos de índice de Capim Macio ou Ponta Negra. Na Região Norte tem algumas áreas especiais. Ela tem uma área de fragilidade ambiental muito grande, que é a ZPA 8 e a ZPA 9. Dentro dessas ZPAs, tem as Áreas de Proteção Permanente, onde tem a margem do rio Potengi e um conjunto formado pelo rio Doce, algumas lagoas que estão ligadas e a APA de Jenipabu, que é dividida com o município de Extremoz, onde não se pode construir nada, segundo o Código Florestal, que é legislação federal. Mas dentro dessas ZPAs há áreas que se pode construir, mas com sustentabilidade para garantir a preservação. Fora dessas duas ZPAs, a Região Norte é toda zona adensável, dá para construir. Desde o semestre passado, no 6º período, aqui na universidade, que eu e o professor Renato Medeiros, temos feito exercícios de simulação e os alunos têm feito projetos arquitetônicos para a Região Norte e eles mostram que dá sim pra verticalizar o suficiente, para se ter, inclusive, outros tipos de atividade, como ter prédios de uso misto entre moradia e comércio no térreo. Mas a gente tem trabalhado essa verticalização com responsabilidade, por exemplo, no eixo na Rua João Medeiros, que é onde tem transporte público e tem que ter um cuidado por que ela ainda não tem o saneamento instalado. A estação de tratamento está em construção, ela vai ficar pronta num prazo de um a dois anos. Além disso, tem algumas áreas especiais, que são ocupadas pela população de baixa renda e outras que são os conjuntos habitacionais construídos na década de 1970 e tem algumas ocupações informais por essa população que não tinha condição de acessar formalmente a cidade. Essas áreas são protegidas como AEIS, onde não pode adensar muito. Uma coisa muito importante a ser dita sobre essa AEIS: tem se dito que quando a gente defende as AEIS, a gente está defendendo que essa população continue numa situação precária pelo resto da vida e é o contrário.
NC: Qual é a solução? O que pode ser feito para se contribuir para que essas populações saiam da condição que estão? Esse é um papel da prefeitura?
AB: É sim. Quando se delimita uma área como área especial, seja de proteção ambiental, histórica ou social significa que ali tem uma área da cidade que precisa de atenção especial. É como se eu estivesse acendendo uma luz para aquela área. Então, eu estou dizendo que aqui dentro da AEIS eu tenho uma área especial de interesse social, ou seja, eu tenho uma condição em que a maior parte das famílias ganha até 3 salários mínimos, eu tenho precariedade de infraestrutura, eu não tenho a propriedade da terra, na maior parte das vezes, por essas comunidades, e eu tenho precariedade das habitações. Ou seja, a prefeitura precisa regulamentar essa AEIS para que aquelas pessoas tenham condição de cidadania. Isso significa que na hora que eu vou estabelecer políticas públicas, é preciso priorizar essas áreas. Priorizar com o que? Com infraestrutura, com melhoria das habitações, com programas de geração de emprego e renda e, principalmente, com regularização fundiária. Se a pessoa não é proprietária do lugar que ela mora ou se ela não tem um contrato oficial de aluguel, ela não acessa nenhuma linha de crédito, por exemplo. Então ela não abre um comércio oficialmente, por que ela não consegue um empréstimo, ela não melhora a casa dela porque ela não consegue uma linha de crédito de construção, ela não abre uma conta no banco, ela não tem várias coisas que a gente garantia com a cidadania.
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Texto e fotos: Mônica Costa