Uma conversa com o sociólogo Manuel Carlos Silva
E se, às vésperas do Carnaval, você recebesse um convite para participar de uma conversa com um intelectual europeu sobre os acontecimentos mundiais recentes e, de quebra, assistir a um debate entre ele e alguns intelectuais locais, você aceitaria? Eu aceitei. Ainda bem.
O intelectual europeu em questão é Manuel Carlos Silva, ganhador do Prêmio Sedas Nunes pela obra Resistir e Adaptar-se: Constrangimentos e Estratégias Camponesas no Noroeste de Portugal (Porto, Afrontamento, 1998). Professor catedrático aposentado de Sociologia na Universidade do Minho, onde dirigiu o Centro de Pesquisa em Ciências Sociais, publicou, como autor ou coautor, 34 livros e 220 capítulos e artigos, principalmente sobre temas como a relação rural-urbano, desenvolvimento e desigualdades sociais (de classe, étnicas e de gênero). Além disso, atuou como professor visitante por três anos na Universidade de Brasília, e também em Angola, na Espanha e na Colômbia.
Ao final da conferência, realizada no salão de festas de um prédio no bairro de Petrópolis, em Natal (RN), solicitei uma entrevista exclusiva ao professor Carlos — como prefere ser chamado — e ele aceitou. Retornei ao prédio no sábado de Carnaval. Desta vez, a conversa aconteceu na sala do anfitrião do professor. Em outras ocasiões, Silva já esteve em Natal a trabalho, mas agora a visita é por motivo de férias.
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O foco da entrevista foi o Brasil, país que Carlos Silva conhece profundamente. Ele reconhece e lamenta que, na Europa, haja poucos estudos sobre o Brasil e ainda menos sobre a América Latina.
Acompanhe as reflexões do professor:
“Estou a par de algumas situações, acompanho com certa curiosidade e interesse a situação do Brasil, não apenas do ponto de vista político, mas também em seus traços culturais, no modo de vida, no jeito de ser dos brasileiros.
O Brasil reflete, em parte, o legado daquilo que eu poderia chamar de herança colonial, que, à época, afetou o Brasil, inclusive em sua composição de classes. Lembro-me dos “Donos do Poder”, de Raimundo Faoro, quando ele fala sobre patrimonialismo e patriarcado, e sobre a sociedade patriarcal. De fato, o Brasil também é uma sociedade – ou melhor, uma economia – patrimonialista, rentista e, atualmente, financeira, na qual as classes mais voltadas para a produção, como a burguesia industrial, tiveram certo impacto, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, até os anos 1960 e 1970, mas perderam força, passando por um processo de desindustrialização. Portanto, as classes dominantes no Brasil são muito similares às de Portugal.
Portugal, por sua vez, teve uma característica muito marcante: apesar de ser um país colonizador, foi um país que, no final do século XIX e início do século XX, até a Segunda Guerra Mundial e mesmo depois, se manteve como um país semiperiférico, profundamente agrícola, agrário, pouco industrializado ou com um setor industrial muito restrito. A segunda onda de industrialização ocorreu nos anos 1960 e 1970, mas, com o 25 de Abril, essa burguesia industrial perdeu força devido às nacionalizações.
Com isso, houve uma continuidade do fortalecimento da burguesia importadora, que vivia do comércio exterior, mantendo um certo rentismo e uma grande concentração de poder na propriedade rural. Hoje, a classe operária em Portugal perdeu bastante força, assim como no Brasil, não apenas em número, mas também em representatividade. Ao mesmo tempo, cresce uma classe que trabalha no setor terciário ou na informalidade e que, tanto em um país quanto no outro, já não possui a mesma consciência de classe. Isso dificulta os movimentos sindicais e outras mobilizações sociais.
A esquerda não está presente para fortalecer, organizar e mobilizar as pessoas
Creio que essa é, de fato, uma questão que se coloca não apenas em Portugal, mas também em outros países europeus e no próprio Brasil. Além disso, acredito que essa problemática é ainda mais evidente nos Estados Unidos, onde há uma grande falta de organização e um bloqueio às propostas e medidas que enfrentam o grande capital – sobretudo o grande capital financeiro, nesta fase de seu desenvolvimento.”
“Não gosto dessa expressão, pois ela funciona como um grande saco no qual todos são colocados, independentemente de sua real posição econômica. Mesmo aqueles que recebem um salário acima do mínimo acreditam ser classe média apenas por possuírem um carro ou até uma casa. No entanto, não é a posse de uma casa ou de um carro que define alguém como parte da classe média.
Além disso, a noção de classe média incluiria todos: desde a pequena burguesia até diversos setores intelectuais, como professores, médicos e engenheiros. Até mesmo os servidores públicos, os funcionários do Estado, seriam considerados classe média. Essa é a grande generalização: todos seriam classe média.
Existe uma discrepância entre aquilo que uma pessoa é economicamente – do ponto de vista das Ciências Sociais – e o que ela sente ou pensa que é. Pode haver um descompasso entre a realidade econômica do indivíduo e sua autopercepção. Alguém pode não pertencer nem mesmo à pequena burguesia ou à classe média, mas ser, na verdade, um simples trabalhador, ainda que qualificado.
Portanto, enquadrar todas as pessoas na categoria de classe média é uma ideia amplamente difundida pela teoria da estratificação americana, ou funcionalista, mas que não corresponde à terminologia marxista e crítica – nem mesmo à concepção de Weber, embora ele utilize esse termo. De fato, o conceito de classe média, tal como é empregado hoje, não reflete sua definição teórica original.
Se fosse necessário adotar um conceito mais preciso, eu diria que a melhor definição seria ‘classe intermediária’. Essa classe estaria situada entre as diversas frações da classe trabalhadora, por um lado, e, por outro, as frações do capital agrário, industrial e financeiro. Assim, algumas categorias ou camadas sociais poderiam ser incluídas na classe intermediária, pois estão entre o capital – já que possuem mais recursos que os trabalhadores e desfrutam de uma posição mais vantajosa economicamente, culturalmente e em termos de estilo de vida – e a burguesia, pois não detêm meios de produção nem acumulam capital através da exploração de trabalhadores, como um industrial que emprega dezenas de operários.”
“Existe uma grande discrepância entre o ser e a consciência do ser, ou da sua posição. E o problema não está apenas nas classes chamadas intermediárias ou na classe média, que adotam, de maneira geral, o pensamento dominante, os estilos de vida e os modos de comportamento predominantes na sociedade. A própria classe operária – ou parte dela – também reproduz esse comportamento, muitas vezes induzida por narrativas externas. Não gosto de utilizar o termo ‘alienação’ de forma tão forte, mas, em muitos casos, essa indução se traduz em alienação. Essas narrativas podem vir das igrejas neopentecostais ou até da própria Igreja Católica, que no passado teve um papel dominante nesse sentido.
Isso acontece porque essas instituições controlam consciências, não apenas no pensamento e no comportamento eleitoral, mas também na vida cotidiana. Muitas vezes, a religião é instrumentalizada por pastores e líderes comunitários que exercem influência sobre favelas e outros territórios, dominando mentalidades e direcionando decisões. Esse domínio também ocorre por meio das mídias. As redes sociais, por exemplo, exercem uma influência enorme, pois estamos sob o controle dos algoritmos das big techs, que impactam diretamente as classes trabalhadoras.
A burguesia brasileira não tem interesse em dialogar com os trabalhadores e os movimentos sociais, busca apenas o lucro imediato.
Hoje, não há grandes movimentos sociais e sindicais organizados e massivos porque as pessoas não estão dispostas a se engajar. Falta uma visão que eu chamaria de ‘utopia realista’ – ou seja, um ideal que possa trazer benefícios concretos e conquistas a curto e médio prazo. Como resultado, a mobilização não ocorre. No nível individual e familiar, as pessoas estão isoladas. Há um forte individualismo e um isolamento social que impedem a ação coletiva necessária para provocar mudanças.
Seja no ambiente de trabalho, seja na vida social, as pessoas não ousam desafiar figuras de autoridade, como pastores ou patrões, por medo das consequências. Diante da insegurança, tendem a proteger as poucas conquistas que possuem, como um salário mínimo, uma aposentadoria, um benefício social, como o Bolsa Família, e assim por diante. Sentem-se compelidas a se retrair, sem se opor à lógica do poder que as cerca e domina.”
“Há uma individualização, uma atomização das pessoas, que têm um contato direto com essas mídias, esses meios, essas redes, mas não possuem a capacidade de dialogar, discutir, debater e até organizar a ação coletiva de maneira mais ampla. Como a própria sociedade, em geral, tem ideias fabricadas ou pré-fabricadas ideologicamente, há a crença de que quem tem capacidades e mérito será vencedor, será bem-sucedido, e quem não as tiver não será.
Aqueles que estão desempregados, em empregos precários ou são pobres, acreditam que o problema está na sua personalidade, que não conseguiram se adaptar. Essa é, digamos, a narrativa ideológica dominante, que penetra profundamente na mentalidade das pessoas, fazendo com que elas pensem de maneira isolada, esquecendo que são a maioria. Se tivessem consciência e força organizacional, poderiam reverter o sistema e melhorar suas condições de vida, mas lhes falta essa percepção.
As pessoas assumem uma postura defensiva, buscando preservar o pouco que possuem. O que o pesquisador James Scott chamava de safety first, ou seja, a segurança mínima em primeiro lugar, pois é isso que lhes permite sobreviver e evitar problemas maiores, como fome ou vulnerabilidade extrema.
Essa é uma questão que a maior parte da esquerda não consegue enxergar. Porque não conhece essa realidade de perto. Muitos podem falar sobre as favelas ou sobre as fábricas, mas não estão inseridos nesses ambientes. A esquerda não está presente para fortalecer, organizar e mobilizar essas pessoas.”
“Quando indivíduos que, por desinformação ou influência externa, acabam votando na direita ou até na extrema-direita, são rotulados de forma negativa. Passam a ser estigmatizados como ‘gado’, como pessoas que ‘não pensam’, como ‘plebe ignorante’. Muitos intelectuais e setores urbanos progressistas olham com desprezo para aqueles que votam em líderes como Bolsonaro ou Trump, considerando-os inferiores, sem capacidade crítica.
De fato, muitas dessas pessoas não tiveram acesso a uma formação cognitiva e intelectual adequada. Mas isso não significa que devam ser desconsideradas ou tratadas com desprezo. Pelo contrário, merecem ser compreendidas e, sobretudo, envolvidas em um diálogo pedagógico. A mudança de consciência é um processo longo, que leva anos. No entanto, muitos não têm paciência para esse trabalho.
Creio que é fundamental desenvolver essa capacidade de entender por que essas pessoas pensam e votam como votam, ao invés de simplesmente estigmatizá-las e rotulá-las de forma negativa. Somente assim será possível avançar no sentido de uma maior conscientização da própria condição social e, consequentemente, de uma ação política mais alinhada com os interesses das classes trabalhadoras.”
“As tecnologias não são neutras. E, portanto, quem tem mais poder econômico — as big techs do Elon Musk, do Zuckerberg e outros — evidentemente têm um poder extraordinário. Para começar, diga-se de passagem, pelo fato de saberem e conseguirem comprar eleições por meio de vários modos, investem nessas mídias, nessas redes sociais e, de certo modo, obtêm vantagem. Se vencem, como no caso do Trump, por exemplo, suas ações sobem e eles ganham milhões, milhões e milhões.
Portanto, esse é um poder inegável, no sentido de que não podemos ignorá-lo. Precisamos ter consciência de que, hoje, além da manifestação ou da ação coletiva na fábrica e fora dela, é necessário encontrar também meios e modos para equilibrar esse jogo. No Brasil, por exemplo, seria fundamental que houvesse uma televisão plural, crítica, que não dependesse apenas da (Rede) Globo. Sabemos que a Globo, nos últimos tempos, devido à hostilidade do bolsonarismo, acabou se opondo a ele, mas, em última instância, e até pelo seu passado — na origem, na defesa da própria ditadura —, sabemos que sua linha editorial favorece certos interesses. Embora tenha um papel mais progressista do ponto de vista dos costumes, permitindo diferentes padrões de comportamento sem estigmatização, do ponto de vista político, econômico e ideológico, evidentemente não auxilia na conscientização de classe dos trabalhadores.
Ainda pior são as igrejas evangélicas que controlam canais como o SBT e a Record, entre outros, que manipulam e intoxicam as consciências. O Brasil, teoricamente, tem uma televisão pública, mas sem força nem capacidade de alcançar as grandes massas.
Ainda há uma base forte de apoio às forças conservadoras no Brasil, independentemente de Bolsonaro.
Um primeiro passo seria fortalecer uma televisão pública com real influência, como ocorre formalmente em Portugal. Lá, diferentes vozes, da direita à esquerda, podem se manifestar. No entanto, além disso, é necessário um trabalho minucioso e contínuo, com pequenos passos, reunindo pessoas em rodas de conversa, incentivando o diálogo e a mobilização sempre que necessário. Não podemos nos acomodar apenas porque há um governo progressista ou reformista. Se há temas a discutir, há necessidade de mobilização, pois, do contrário, as pessoas ficam inibidas de tomar posições mais firmes.
Mas, de fato, concordo: é extremamente difícil superar todos esses obstáculos, principalmente os impostos pelos algoritmos, pelas mídias e pelas big techs, que detêm um poder imenso. Isso porque, antigamente, as grandes fábricas proporcionavam encontros e geravam capacidade de reivindicação salarial. Nos anos 1980 e 1990, mesmo o modelo fordista ainda possibilitava uma mobilização massiva dos trabalhadores. Hoje, há uma retração, uma desindicalização generalizada. Trabalhadores que antes se sindicalizavam em 60%, 50% ou 40% hoje estão reduzidos a 5%, 10%. Agora, no entanto, a grande arma das big techs é o contato direto com cada indivíduo, influenciando-o através das mídias e redes sociais.
Além disso, há um agravante: dentro da própria classe operária e da classe trabalhadora em geral, muitos ainda acreditam na superioridade dos brancos sobre os negros, por exemplo, ou dos homens sobre as mulheres. Muitos homens defendem sua masculinidade diante do fato de que as mulheres não permanecem apenas em casa, mas também ocupam o espaço de trabalho e produção.
No passado, os homens tinham salários que permitiam sustentar suas famílias sozinhos e manter as mulheres no lar, consideradas ‘em seu devido lugar’. Aliás, teóricos como Talcott Parsons, em 1956, argumentavam que o homem teria o papel instrumental de provedor da família, enquanto a mulher assumiria o papel expressivo, cuidando dos filhos, do marido e dos ascendentes.
Essa ideologia, profundamente enraizada nas sociedades ocidentais democráticas – e não apenas nos Estados Unidos –, ainda deixa marcas. Hoje, quando as relações hetero ou homossexuais se tornam mais horizontais, ao menos em certa medida, muitos homens, acostumados ao modelo patriarcal, sentem que estão sendo ameaçados. E, assim, líderes autoritários e demagogos como Donald Trump encontram espaço, atendendo aos desejos e impulsos desse público.
Essa ideia de ‘ter o seu lugar’ e impedir que outros o tomem – seja no trabalho, na moradia ou na família – está profundamente enraizada na mente de muitas pessoas. Trata-se de um pensamento alienado e manipulado, mas extremamente poderoso.
O fato é que Trump e outras forças de extrema direita não são eleitos apenas pela burguesia e pelas classes dominantes, mas também por parte dos próprios dominados. E isso é um dos fenômenos mais intrigantes para quem busca compreender a dinâmica social e política. Esses mecanismos são muito sutis, mas influenciam fortemente o comportamento e as escolhas das pessoas.”
“Eu penso que, talvez, a dificuldade que o Brasil tem, neste momento, seja sair da situação em que se encontra. O que mais me intriga, para já, é como, apesar da política necropolítica do bolsonarismo, da postura de Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19 — que, para mim, foi o mais grave —, e do abandono em que deixou a população, resultando na morte de 700 ou 800 mil pessoas, muitas das quais poderiam ter sido salvas se as vacinas tivessem sido adquiridas a tempo, como no caso do contrato com a Pfizer, que poderia ter sido firmado, mas não foi, porque ele insistiu na cloroquina, promovendo-a como se fosse um caixeiro-viajante, ainda não houve um despertar maior dos brasileiros para uma atitude mais crítica.
Essa é a interrogação que coloco e que me intriga. Afinal, depois de tudo isso, depois de sabermos do abandono da população, das dificuldades salariais, das privatizações, dos mecanismos obscurantistas dos ministros e do próprio governo, como não há uma resposta mais contundente da sociedade? Embora saibamos que, no passado, a Igreja Católica exerceu grande domínio, tanto em Portugal quanto no Brasil, mantendo-se como uma força conservadora e apoiadora das elites, hoje o crescimento dos neopentecostais evangélicos — influenciados pelos Estados Unidos desde os anos 1940, 1960, 1980 — tem tido um impacto extraordinário, potencializado pelos meios de comunicação e pelas redes sociais.
Ainda assim, o que me surpreende é que não haja um maior movimento de contestação, uma maior capacidade de mobilização. Certamente, todos esses fatores alienantes têm seu peso, mas também há uma deficiência das esquerdas na organização de um projeto claro de desenvolvimento, de soberania nacional e de melhoria das condições de vida da população. No momento, ainda não vejo um apoio massivo a esse tipo de proposta, o que considero um problema que deveria ser mais estudado e investigado.
Talvez a esquerda esteja excessivamente institucionalizada, girando em torno do poder e das instituições, reproduzindo certos comportamentos que a afastam de suas bases. Seria necessário resgatar as origens dos movimentos populares dos anos 1980, que surgiram a partir das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação — que hoje perdeu força. Sem esses movimentos, não há forças capazes de provocar mudanças. Claro que as instituições como a Câmara e o Senado estão dominadas pela direita e pela extrema-direita, o que dificulta qualquer transformação, mas, ainda assim, acredito que seria possível fazer mais para romper com esse círculo vicioso.
Além disso, as recentes investigações da Polícia Federal e a aceitação, pelo Procurador-Geral (da República, Paulo Gonet), da responsabilidade do governo Bolsonaro não apenas na questão da pandemia, das vacinas e da falsificação de cartões de vacinação, mas também na tentativa frustrada de golpe de Estado, demonstram a gravidade do momento. Ainda assim, mesmo com essas evidências, apenas pouco mais de 50% da população repudia essa tentativa de golpe, o que mostra que ainda há uma base forte de apoio às forças conservadoras no Brasil, independentemente de Bolsonaro.
Diante disso, acredito que alguns projetos essenciais deveriam ser priorizados. No entanto, um dos maiores entraves do Brasil continua sendo sua burguesia. Diferentemente das elites do norte e centro da Europa, que, mesmo concedendo benefícios sociais e direitos trabalhistas, continuaram lucrando, a burguesia brasileira não tem interesse em dialogar com os trabalhadores, os sindicatos e os movimentos sociais. Está completamente fechada em si mesma e busca apenas o lucro imediato, sem fazer qualquer concessão. Nem mesmo propostas básicas, como uma reforma tributária que alivie os impostos para quem ganha até 5 mil reais e aumente a tributação sobre os mais ricos, conseguem avançar.”
“Creio que os brasileiros, antes da ascensão do bolsonarismo e da chegada de Bolsonaro ao poder, em grande parte eram trabalhadores que iam para Portugal por razões econômicas. Outros iam por motivos de estudo. Conheci vários estudantes brasileiros na Universidade do Minho. Isso se deve, em parte, ao prestígio da universidade, que está entre as três ou quatro melhores do país.
Brasileiros bolsonaristas deixam o Brasil por medo da violência, mas, em Portugal, usufruem dos benefícios do Estado Social português. Isso é um paradoxo.
Com a chegada de Bolsonaro ao poder, curiosamente, muitos bolsonaristas também foram para Portugal. Nas eleições de 2022, os votos dos brasileiros em Portugal indicaram uma maioria bolsonarista, ou seja, o resultado mostrou mais votos para Bolsonaro do que para seus opositores. Isso levanta a questão: por que esses brasileiros emigraram?
A justificativa que mais mencionam é a violência no Brasil, que de fato é muito alta. No entanto, há uma contradição: saem do Brasil por medo da violência, mas, em Portugal, votam na extrema direita e, ao mesmo tempo, usufruem dos benefícios do Estado Social português. Isso é um paradoxo.
No geral, minha impressão é positiva, e creio que, de modo geral, os brasileiros não despertavam animosidade. Pelo contrário, havia a sensação de que, nos serviços – em restaurantes, por exemplo –, os brasileiros atendiam melhor do que os portugueses, pois possuem uma maneira de ser mais empática, colaborativa e sorridente. Essa boa impressão sobre os trabalhadores brasileiros em Portugal, creio eu, ainda persiste em parte.”
“Nos últimos dois anos, entretanto, percebo um crescimento da hostilidade contra brasileiros. Antes, essa hostilidade era mais voltada para africanos, negros e asiáticos, frequentemente alvo de racismo. Minhas pesquisas mostram que uma parte considerável dos portugueses tem posturas racistas, seja de forma bruta e explícita, seja de maneira sutil.
Esse preconceito contra brasileiros já existia antes, especialmente contra mulheres brasileiras. Nos anos 1990, participei de um estudo sobre prostituição, junto com colegas da Universidade da Beira Interior e de Trás-os-Montes. Descobrimos que muitas mulheres brasileiras trabalhavam em casas de alterne, o que levou a Igreja e grupos de extrema direita a criarem um movimento de mães contra a ‘corrupção dos maridos’. Esse movimento não teve grande repercussão na época, mas demonstra como certos estereótipos já existiam.
Agora, nos últimos dois anos, ainda não temos números exatos, mas, no cotidiano, nas expressões populares e nos discursos de rua, fica evidente que o preconceito contra brasileiros está aumentando. O discurso de que os imigrantes ‘roubam empregos’ ou ‘tomam o lugar dos portugueses’ tem ganhado força.”
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Mônica Costa