Eveline Milan, pesquisadora da UFRN, fala na mudança da vacina para poliomielite no Brasil
Neste ano, o Ministério da Saúde finaliza a mudança no esquema vacinal contra a poliomielite, que teve início em 2016. As crianças de todo o país passarão a receber a vacina inativada poliomielite (VIP). A modalidade, que é injetável vai substituir as duas doses de reforço da VOPb, conhecida como gotinha. A partir de agora, o esquema vacinal contra a doença será exclusivo com VIP.
O MS implementou a mudança do esquema vacinal contra a poliomielite em etapas e teve início com o esquema combinado. Em 2016, o Brasil, adotou a VIP nas primeiras doses do calendário vacinal infantil, garantindo a imunização inicial com a vacina inativada. O país seguiu a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). As doses de reforço passaram a ser feitas com a VOPb, preservando o efeito de imunidade de rebanho ou imunidade intestinal, proporcionado pela vacina oral.
Para entender os critérios da mudança e como as vacinas atuam no sistema imunológico das crianças, Nossa Ciência conversou com Eveline Pipolo Milan. Ela é professora associada do Departamento de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Microbiologia, com ênfase em Micologia. Desde 2010 atua em Pesquisa Clínica, com participação em projetos relacionados à dengue, Clostridium difficile, RSV, HPV e COVID, em vigilância epidemiológica e estudos clínicos de fase III para avaliação da eficácia de fármacos e vacinas.
Milan defende que as pessoas devem tomar as vacinas necessárias. Ela explica que as vacinas são essenciais para a prevenção de doenças, estimulando o sistema imunológico de maneira controlada para que o corpo seja capaz de combater infecções futuras. “A queda nas coberturas vacinais, causada em parte pelo negacionismo científico, pode resultar na reintrodução de doenças que estavam controladas ou erradicadas, como a poliomielite, que o Brasil não registra há 34 anos”, lamenta.
Apesar da vacina inativada ter um custo superior à gotinha, a cientista reitera a importância da mudança. Ela relata os benefícios de segurança, que é a eliminação de riscos de poliomielite associada à vacina oral e a necessidade de adequação às recomendações internacionais para erradicação da poliomielite. O problema exige mais atenção em regiões onde o poliovírus selvagem foi erradicado, que é o caso do Brasil.
Nossa Ciência: Quais foram os critérios epidemiológicos e evidências científicas para a mudança no esquema vacinal de crianças contra a poliomielite?
Eveline Pipolo Milan: A substituição da vacina oral poliomielite bivalente pela vacina inativada poliomielite, no Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde, foi baseada em critérios de segurança, eficácia e diretrizes internacionais para a erradicação da poliomielite. A mudança foi orientada pela OMS e evidências científicas, com o objetivo de eliminar os raros casos de poliomielite associada à VOP.
A vacina inativada poliomielite induz uma forte resposta imune sistêmica ao vírus da pólio
Os principais critérios e evidências são o risco de poliomielite associada à vacina oral, visto que essa vacina contém o vírus vivo atenuado. Em casos raros, é possível uma reversão à sua forma virulenta e ocorra a poliomielite associada à vacina (VOP). Esse risco existe, principalmente em regiões onde a transmissão do vírus selvagem já foi interrompida, como é o caso das Américas.
Outro ponto é a segurança. A VIP não contém o vírus vivo. Ela é composta de vírus inativado, o que a torna mais segura, sem o risco de causar poliomielite, mesmo em indivíduos imunocomprometidos. Além disso, a VIP também induz uma forte resposta imune individual.
NC: Quais são as alterações no sistema imunológico das crianças com essa substituição?
EPM: A vacina inativada poliomielite induz uma forte resposta imune sistêmica ao vírus da pólio. Como o vírus inativado não se replica no corpo, essa vacina gera anticorpos no sangue que protegem contra o vírus, evitando que ele se espalhe pelo sistema nervoso e cause a poliomielite. No entanto, como a VIP é administrada por injeção e o vírus está inativado, ela não induz uma imunidade intestinal robusta. Este tipo de imunidade é importante para bloquear a transmissão do vírus pelas fezes e, consequentemente, para o controle da circulação do vírus na comunidade.
Diferentemente da vacina inativada, a vacina oral poliomielite contém o vírus vivo atenuado. Desse modo, estimula tanto a resposta imune sistêmica quanto a imunidade intestinal. Ao replicar-se no trato gastrointestinal, a VOP desencadeia a produção de anticorpos no intestino, o que bloqueia a replicação do vírus da pólio e sua excreção nas fezes. É este processo que ajuda a interromper a transmissão do poliovírus na comunidade. A imunidade de rebanho proporcionada pela VOP é significativa, pois, ao ser excretado nas fezes, o vírus vacinal pode imunizar indiretamente pessoas não vacinadas. Esse tipo de imunização é importante em áreas onde o vírus selvagem ainda circula, que não é o caso brasileiro.
NC: O negacionismo científico causou um abalo nas coberturas vacinais no país. Como as vacinas atuam no corpo humano na prevenção de doenças?
As vacinas exercem um papel essencial na prevenção de doenças, controlando a estimulação do sistema imunológico para que o corpo combata infecções futuras. A queda nas coberturas vacinais, influenciada em parte pelo negacionismo científico, pode reintroduzir doenças que estavam controladas ou erradicadas, como a poliomielite, que o Brasil não registra há 34 anos.
O mecanismo de funcionamento das vacinas na prevenção de doenças tem quatro eixos: estimulação do sistema imunológico, memória imunológica, imunidade de rebanho e prevenção de mutações e cepas variantes.
A estimulação do sistema imunológico: quando uma vacina é administrada, ela contém antígenos (substâncias que provocam uma resposta imune) que imitam o agente causador da doença, mas sem causar a doença em si. Esses antígenos estimulam o sistema imunológico a produzir anticorpos e ativar células imunológicas, como linfócitos T, que podem combater a infecção. Eles podem ser vírus ou bactérias mortos ou inativados; formas atenuadas (enfraquecidas) do patógeno; fragmentos do patógeno (proteínas ou partes do vírus ou bactéria); material genético (como nas vacinas de mRNA).
O principal objetivo das vacinas é criar uma memória imunológica. Após a vacinação, o sistema imunológico “lembra” do patógeno por meio da produção de células de memória. Se o organismo for exposto ao agente infeccioso real no futuro, essas células de memória rapidamente ativam a produção de anticorpos e uma resposta imunológica eficiente, neutralizando o patógeno antes que ele cause a doença.
Quando uma alta porcentagem da população é vacinada, cria-se a chamada imunidade de rebanho. Isso significa que mesmo aqueles que não podem ser vacinados ficam protegidos porque a disseminação da doença é dificultada. Estão nesta categoria os bebês muito novos, pessoas com doenças que comprometem o sistema imunológico ou alérgicos a componentes das vacinas. O patógeno tem menos chances de circular em uma população em que a maioria das pessoas está imunizada.
Se a cobertura vacinal cai abaixo de um certo nível, o patógeno encontra mais hospedeiros suscetíveis e pode se espalhar novamente, resultando em surtos.
As vacinas também desempenham um papel na redução da propagação de vírus e bactérias, ajudando a evitar o surgimento de novas variantes ou cepas mais resistentes. Quando a vacinação interrompe a transmissão de um patógeno, reduz-se a chance de o agente sofrer mutações que possam torná-lo mais perigoso.
NC: Há alteração nos custos entre as duas vacinas (VOPb e a VIP)?
EPM: Sim, há uma diferença significativa nos custos entre a Vacina Oral Poliomielite Bivalente (VOPb) e a Vacina Inativada Poliomielite (VIP). A VIP é consideravelmente mais cara do que a VOPb devido a vários fatores relacionados ao processo de produção, armazenamento, administração e logística.
A adoção da VIP e eliminação da VOPb do calendário vacinal trará um aumento nos custos para o Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente devido ao valor mais elevado por dose e à logística mais complexa de administração. No entanto, esse aumento é justificado pelos benefícios de segurança, com a eliminação do risco de poliomielite associada à vacina e pela necessidade de adequação às recomendações internacionais para erradicação da poliomielite, particularmente em regiões onde o poliovírus selvagem foi erradicado, que é o caso do Brasil.
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