Efraim Mancilla fala sobre o direito à saúde, o acesso à justiça e como os excluídos podem ser alcançados por meio de políticas universais
Nesta segunda parte do estudo sobre obre vulnerabilidades sociais e suas implicações para o desenvolvimento humano, o pesquisador boliviano Efraim Wilmer Vargas Mancilla aborda o direito à saúde, o acesso à justiça e como os excluídos podem ser alcançados por meio de políticas universais. Aproveitamos esta última publicação para desejar a todas e todos um sereno final de ano e que 2021 seja um ano melhor para a humanidade, com menos negacionismo e irresponsabilidade genocida e mais solidariedade e amor. Evitem aglomerações, usem máscaras, lavem as mãos, fiquem em casa sempre que puderem e continuem lutando contra o capitalismo, o racismo e o patriarcado.
Por Efraín Wilmer Vargas Mancilla
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE AGRAVADA
3.2.Pessoas vivendo com HIV (PVH)[9]. Vulnerabilidade e direito à saúde
A saúde é essencial para o desenvolvimento humano, pois é essencial que a população seja saudável para que a sociedade funcione: todos – independentemente de sua situação social – devem estar emboa saúde como prioridade (Helliwel, Layard , & Sachs ,2012, 26). Por essa razão, o Objetivo 3 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável se propõe a “garantir uma vida saudável e promover o bem-estar de todas as idades” (ONU, 2015, p. 18). Nesse contexto, a agenda global visa acabar com a pandemia de HIV/Aids [10}.
Após mais de 30 anos desde que o primeiro caso de HIV/AIDS foi diagnosticado, em 2016 havia 42 milhões de pessoas vivendo com HIV/AIDS em todo o mundo, das quais 1,7 milhão na América Latina (UNAIDS, 2016, p. 57). A epidemia é masculina; mas há uma tendência crescente para sua feminiização; a cada minuto 11 jovens entre 14 e 25 anos contraem HIV e 20 milhões de crianças perderam pai ou mãe para a doença (UNAIDS, 2016, 90).
Por outro lado, a infecção pelo HIV tornou-se um dos exemplos mais claros de desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. 95% das pessoas que vivem com HIV estão em países em desenvolvimento (UNAIDS, 2012). Isso tem repercussões econômicas e sociais significativas para esses países, entre outros motivos, porque 90% das pessoas que vivem com HIV no mundo são trabalhadores produtivos e reprodutivos (entre 15 e 49 anos) e porque 50% delas estão desempregadas (UNAIDS, 2016, p. 58).
Na Bolívia, segundo o Programa Nacional de IST/HIV-Aids, a partir de fevereiro de 2020 foram identificadas 26.640 pessoas portadoras de HIV. As cidades que concentram o maior número de casos são Santa Cruz (50%), La Paz (19,9%) e Cochabamba (19,7%)[14].
O UNAIDS – programa das Nações Unidas para a prevenção e o combate ao HIV – alega que, por enquanto, não há cura para esta doença e a luta fundamental contra a epidemia continua sendo a prevenção, o apoio político para enfrentá-la e a defesa dos direitos humanos das pessoas portadoras do vírus (UNAIDS, 2002, p. 55).
Muitas pessoas com HIV também se enquadram em alguma condição de vulnerabilidade estrutural, associada ao ciclo de vida ou outras pré-existentes, ou seja, são pobres, com baixos níveis de escolaridade, são mulheres ou possuem identidade ou orientação sexual diferentes, são viciados em drogas, em situações de prostituição, isolamento geográfico, com acesso e educação para a saúde inadequados, entre outros (Vargas, Efrain [ 2014, p. 24) Algumas dessas condições de vulnerabilidade também as tornaram mais suscetíveis ao HIV[15]). Há, então, uma condição de vulnerabilidade agravada e uma espécie de superexcusão, ou seja, de exclusão social daqueles já excluídos.
Segundo estudos realizados tanto por organizações da sociedade civil[16] quanto por instituições públicas, como a Ouvidoria [17,],a exclusão social é a principal causa de vulnerabilidade para as pessoas vivendo com HIV. Segundo o UNAIDS, essa exclusão social pode ser definida como “a ausência, para alguns, do conjunto de oportunidades vitais que outros têm, e a impossibilidade ou dificuldade muito intensa de acesso ao desenvolvimento pessoal e a mecanismos de inserção comunitária e aos sistemas de proteção estabelecidos” (UNAIDS, 2010, p. 13).
Segundo a mesma fonte, as principais características da exclusão social sofrida pelas pessoas com HIV/AIDS são: 1) pobreza no sentido de renda econômica, 2) dificuldade na inserção do trabalho, 3) dificuldade de acesso à educação, 4) falta de saúde, capacidade psicofísica reduzida e falta de acesso a estruturas de saúde, 5) ausência ou inadequação do apoio familiar ou comunitário, 6) áreas de marginalização social, 7) falta de conscientização e mobilização da população em geral diante da exclusão social sofrida por essas pessoas (UNAIDS, 2010, p. 45).
Na Bolívia, as pessoas que vivem com HIV, e particularmente aquelas que também são viciadas em drogas, constituem uma população em vulnerabilidade agravada como produto de problemas sociais complexos. O estigma social gerado pela doença leva à exclusão de PVHs em espaços de trabalho, serviços de saúde e até mesmo dentro de unidades familiares.
3.3.Pessoas privadas de liberdade (PPL). Vulnerabilidade e direito de acesso à justiça
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (Meta 16) visa “garantir o acesso igualitário à justiça para todos” (ONU, 2015, p. 29).
Pessoas privadas de liberdade constituem uma população vulnerável (Cúpula Judicial Ibero-Americana, 2008). Na Bolívia, em dezembro de 2016, havia 16.038 pessoas privadas de liberdade em todo o território nacional, das quais 2645 (80,76%) eram homens e 304 (9,28%) mulheres (DGRP, 2017). Essas pessoas residem em 61 prisões (19 prisões e 42 prisões) localizadas em todo o território nacional (DGRP, 2016b).
As vulnerabilidades estruturais e do ciclo de vida convergem para pessoas privadas de liberdade, bem como vulnerabilidades relacionadas à privação de liberdade nos presídios.
O primeiro conjunto de vulnerabilidades, ou seja, as estruturais e aquelas relacionadas com o ciclo de vida, afetam o plano de vida das pessoas antes mesmo de entrarem no circuito da justiça criminal[ 18]. No entanto, no momento em que essa pessoa entra na prisão esse conjunto de vulnerabilidades adquire maior peso, podendo agravar sua condição de fragilidade dentro das prisões e/ou reduzir suas chances de acesso à justiça.
Por exemplo, uma mulher indígena, pobre, analfabeta que fala apenas uma língua nativa dificilmente poderá contratar um advogado particular e suas possibilidades de exercer seu direito à defesa material serão reduzidas. Outro exemplo, no âmbito do processo penal, é que a imposição ou não de uma medida cautelar depende (entre outros) da avaliação do juiz das “raízes” que a pessoa tem com a sua comunidade (para afastar o perigo de fuga). Neste contexto, as pessoas que não têm emprego ou são autônomas, solteiras e/ou migrantes, terão mais dificuldades em demonstrar raízes sociais. Finalmente, a experiência de privação de liberdade será diferente para uma pessoa com deficiência, uma pessoa com uma orientação sexual diferente ou uma pessoa que com HIV.
A vulnerabilidade agravada das PPLs decorre de um conjunto de riscos aos quais estão expostas devido ao seu status jurídico e à reclusão em centros penitenciários:
Em conjunto, essas situações fazem com que alguns direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, principalmente as nas quais convergem um número maior dessas situações específicas, sejam ainda mais restritos. Ou seja, apesar de as pessoas residirem na mesma penitenciária, as experiências de cada uma delas variam conforme o maior ou menor grau de vulnerabilidade que possuem.
Ilustração 1. Populações em situação de vulnerabilidade agravada
Fonte: Elaboração própria
“A vulnerabilidade ameaça o desenvolvimento humano e, se não for tratada de forma sistemática por meio da transformação das normas sociais e das políticas públicas, o progresso não será igualitário nem sustentável” (PNUD, 2014, p. 11).
O desenvolvimento humano implica em eliminar as barreiras que restringem a liberdade de ação das pessoas (PNUD, 2014, p. 5) e as condições de vulnerabilidade que afetam determinados setores da população constituem obstáculos ao seu desenvolvimento.
Nesse contexto, a agenda 2030 e os Relatórios de Desenvolvimento Humano propõem algumas respostas de políticas públicas para reduzir a vulnerabilidade: alcançar os excluídos por meio de políticas universais, empoderar os marginalizados e produzir informações relevantes sobre a população vulnerável.
4.1. Alcançando os excluídos por meio de políticas universais
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2014, “todas as pessoas devem ter direito à educação, saúde e outros serviços básicos. Colocar em prática este princípio de universalidade exigirá atenção e recursos especificamente dedicados a ele, especialmente para grupos pobres e vulneráveis” (PNUD, 2014, p. 12). “O pleno emprego deve ser um objetivo de política pública para as sociedades de qualquer nível de desenvolvimento ”(PNUD, 2014, p. 12). “O acesso universal aos serviços sociais – educação básica, saúde, abastecimento de água e saneamento e segurança pública – melhora a resiliência” (PNUD, 2014, p. 6) porque fornece às pessoas um conjunto de “ativos” que os ajudam a superar as condições de vulnerabilidade estrutural ou de vulnerabilidade relacionada com o ciclo de vida. “Uma forte proteção social universal não só melhora a resiliência individual, mas também fortalece a resiliência da economia como um todo” (PNUD, 2014, p. 12). O Objetivo 10 da agenda dos ODS não pode ser cumprido se não forem criadas condições favoráveis para potencializar e promover a inclusão social, econômica e política da população em geral e das populações excluídas em particular.
4.2. Capacitar os excluídos por meio de políticas específicas para as populações em situação de vulnerabilidade
A agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável levanta a necessidade de empoderar as pessoas vulneráveis (ONU, 2015, p. 8). Na Bolívia, como em outros países, os direitos de alguns grupos vulneráveis são garantidos nas Constituições e outros instrumentos legais: é o caso das populações em situação de vulnerabilidade que descrevemos neste artigo (povos indígenas altamente vulneráveis, pessoas que vivem com HIV e pessoas privadas de liberdade). Ou seja, este país conta com o marco constitucional e regulatório para desenvolver políticas específicas a favor da população em situação de vulnerabilidade. Os povos indígenas “são frequentemente excluídos da educação, do emprego e dos cargos administrativos e políticos, levando à pobreza” (PNUD, 2016, p. 5). Razões pelas quais o Estado deve promover a participação e consulta às nações e povos indígenas, para que possam participar mais ativamente das decisões do Estado. Na mesma linha, é necessária a adoção de políticas que promovam a participação das pessoas com HIV, juntamente com os respectivos profissionais, lideranças religiosas e comunitárias, para o desenvolvimento e a aplicação de todas as políticas de prevenção, cuidado e tratamento da epidemia, no quadro do gozo e exercício dos seus direitos humanos.
No que diz respeito às pessoas privadas de liberdade em situação de vulnerabilidade, o papel do Estado deve ser mais ativo, definindo políticas que visem reparar e compensar os efeitos produzidos sobre essas pessoas pela soma das vulnerabilidades no contexto das prisões. E deve mesmo encontrar uma forma em que o “evento catastrófico”, ou seja, a “perda da liberdade” seja uma oportunidade de melhorar a vida dessas pessoas, através de formação, políticas de emprego, etc. dentro das prisões ou por meio de políticas de reintegração pós-saída das penitenciárias. Se as políticas não proporcionam bem-estar às pessoas marginalizadas e vulneráveis e as instituições não garantem que as pessoas não sejam excluídas, deve haver instrumentos e mecanismos de reparação para que essas pessoas possam reivindicar seus direitos. Devem ser fortalecidos na defesa dos direitos humanos, garantindo o acesso à justiça, promovendo a inclusão e garantindo a responsabilização (PNUD, 2016, p. 16).
4.3. Produzir informações relevantes sobre as populações em situação de vulnerabilidade
Há muito pouca informação produzida sobre povos indígenas altamente vulneráveis na Bolívia, existem apenas alguns estudos publicados pela Ouvidoria sobre os povos Yuqui e Ayoreo e alguns estudos produzidos por pesquisadores privados sobre outros PIAVs. Isso torna extremamente difícil a adoção de políticas públicas gerais e específicas de PIAV. Em relação às PVHs, também há déficits importantes de informação. É necessário abrir o debate e a análise a partir de cifras oficiais, sobre aspectos como HIV, população e desenvolvimento; a ainda distante possibilidade de cura, tratamento e repercussões econômicas e sociais; o alívio da pobreza, a prestação de serviços de saúde e educação, a necessidade de igualdade de gênero e a satisfação das necessidades humanas, todos aspectos intimamente relacionados ao aumento desta doença. As informações quantitativas e qualitativas de que dispõe o Estado boliviano sobre as pessoas privadas de liberdade são escassas, desatualizadas e, portanto, pouco confiáveis. O que até agora tem dificultado muito a realização de estudos nesta área, por parte do próprio Estado e da sociedade civil. E também tem impedido a adoção de políticas públicas específicas que priorizem e favoreçam as pessoas privadas de liberdade em condições de vulnerabilidade agravada. É preciso “determinar quem são as pessoas que sofrem de déficit de desenvolvimento humano e onde estão. Identificar e localizar pessoas que foram deixadas de fora do progresso do desenvolvimento humano é essencial para a defensa dos direitos humanos e formulação de políticas eficazes. Este trabalho de localização pode ajudar os ativistas a favor do desenvolvimento a exigir ação e orientar os formuladores de políticas na elaboração e implementação de políticas que melhorem o bem-estar das pessoas marginalizadas e vulneráveis (PNUD, 2016, p. 19). Neste contexto, a definição de políticas públicas sobre pessoas em situação de vulnerabilidade deve ser feita com base em informações confiáveis, que permitam ao Estado tornar visíveis os graus de vulnerabilidade e os riscos a que essas pessoas estão expostas, tanto a nível nacional como local.
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Leia a coluna anterior: Vulnerabilidade, desenvolvimento sustentável e direitos humanos (Parte 1)
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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