A coluna encerra o ano com um estudo do pesquisador boliviano, Efraín Mancilla, que aborda as vulnerabilidades sociais e suas implicações para o desenvolvimento humano
Para encerrar o ano de 2020, publicaremos um estudo sobre vulnerabilidades sociais e suas implicações para o desenvolvimento humano em duas partes . Este material nos foi enviado por um pesquisador boliviano de desenvolvimento, nosso parceiro no país vizinho. Com estas publicações, a equipe da coluna Diversidades se despede temporariamente das suas leitoras e seus leitores, em coincidência com o recesso acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Retornaremos no final de janeiro.
Por Efraín Wilmer Vargas Mancilla – Universidad Mayor de San Andrés, Pós-Graduação em Ciências do Desenvolvimento (La Paz, Bolívia). “Estamos determinados a dar os passos ousados e transformadores que são urgentemente necessários para colocar o mundo de volta no caminho da sustentabilidade e a resiliência. Ao embarcarmos nesta jornada juntos, prometemos que ninguém será deixado para trás”.Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2015).
1.1.Vulnerabilidade, desenvolvimento sustentável e direitos humanos.
A importância dos estudos sobre a vulnerabilidade de populações específicas reside no interesse atual da comunidade internacional em evitar que os avanços no desenvolvimento humano conquistados até agora “desacelerem ou mesmo regridam” (PNUD, 2016, p. 11), e em orientar pesquisas sobre a promoção do desenvolvimento humano não apenas para as condições de renda dos pobres (Bussoo , 2001, p. 9), mas também para estudos sobre “a importância das dimensões estruturais da vulnerabilidade sociodemográfica (…) como produto de uma construção social gerada a partir de desigualdades sociais, falta de oportunidades de empoderamento e de acesso à proteção social” (Sanchez-Gonzales & Egea Jimenez [2011], 154).
Em certa medida, todos os indivíduos e grupos são vulneráveis, porém alguns devem enfrentar maiores obstáculos, riscos e inseguranças econômicas, sociais, culturais, demográficas, políticas, legais, etc. (Busso [2001], p. 8). “O denominador comum da vulnerabilidade dos diferentes grupos é a existência de certas formas de exclusão cuja principal causa não está relacionada ou gerada pelo mercado, mas é de ordem social” (ONU, 2003, p. 1). A exclusão limita as oportunidades de participação social de indivíduos, grupos ou comunidades e, portanto, reduz ou nega a possibilidade de exercer seus direitos humanos.
Por essas razões, em setembro de 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, que tem como aspiração “um mundo em que o respeito pelos direitos humanos é universal (…) um mundo justo, equitativo, tolerante, aberto e socialmente inclusivo no enfrentamento das necessidades dos mais vulneráveis” (ONU, 2015, p. 4), ou seja, de “crianças, jovens, pessoas com deficiência (…), pessoas que vivem com HIV/AIDS, idosos, povos indígenas, refugiados e deslocados internos e migrantes, entre outros” (ONU, 2015, p. 8). No mesmo sentido, o Objetivo 10 da agenda acima mencionada visa “potencializar e promover a inclusão social, econômica e política de todas as pessoas, independentemente da idade, sexo, deficiência, raça, etnia, origem, religião ou situação econômica ou outro status” (ONU, 2015, p. 24).
Nesse contexto, podemos dizer que entre os principais objetivos da agenda global de desenvolvimento sustentável estão promover a igualdade e a inclusão de pessoas vulneráveis e o pleno exercício de seus direitos humanos.
1.2. Origem do conceito e dos principais autores
A vulnerabilidade surge como um conceito das ciências ambientais, utilizado principalmente para o estudo da população afetada por riscos naturais e desastres (Sanchez-Gonzales & Egea Jimenez [2011], p. 153)[1] .
Segundo alguns autores, a da vulnerabilidade é o produto de abordagens “que poderiam ser referidas como de médio alcance em questões de desvantagens sociais, como a marginalidade nas décadas de 1960 e 1970 na América Latina e a exclusão nas décadas de 1980 e 1990 na Europa e outros enfoques” (Busso [2001], p. 9).
Segundo Busso, a abordagem da vulnerabilidade também é produto de contribuições de “Amartya Sen e outros autores que orientaram suas pesquisas não só para as condições de renda dos pobres, mas também para as dimensões psicossociais, de autopercepção, gênero, étnico-raciais, educacionais, trabalhistas, familiares e políticas da privação” (Busso [2001], p. 9).
“Esse boom [de pesquisa sobre a noção de vulnerabilidade] parece ter sido desencadeado pelos estudos de Caroline Moser e seu grupo no Banco Mundial, que foram resumidos no chamado asset/vulnerability framework (quadro ativos/vulnerabilidade), e que ressaltou que a maior fraqueza objetiva dos pobres (vulnerabilidade) para lidar com a sobrevivência diária ou, mais ainda, com crises econômicas poderia ser combatida com uma gestão adequada dos ativos que eles têm independentemente de seus rendimentos escassos. (Busso, 2001, 10 citando Jorge Rodríguez V. 2000, p. 14).
1.3. Definição de vulnerabilidade sociodemográfica
“Vulnerabilidade não é o mesmo que pobreza. Não significa que haja deficiências ou necessidades, mas desamparo, insegurança e exposição a riscos, crises e estresse.” (Chambers, 2006)[2]
Do ponto de vista geral, o termo “vulnerabilidade” é identificado com a possibilidade de “ser ferido ou receber lesão, física ou moral” (SAR, 2017), fragilidade e/ou má capacidade de defesa contra riscos iminentes. “Etimologicamente, o termo ‘vulnerável’ expressa a suscetibilidade ou probabilidade de ser ferido, prejudicado ou afetado por qualquer circunstância adversa” (Sanchez-Gonzales & Egea Jimenez [2011], 157).
Em essência, “a vulnerabilidade pode ser definida como um estado de alta exposição a certos riscos e incertezas, combinada com a diminuição da capacidade de se proteger ou se defender deles e de lidar com suas consequências negativas” (ONU [2003], 8).
Na mesma linha, o Relatório de Desenvolvimento Humano (2014) afirma que a condição de vulnerabilidade reduz a resiliência das pessoas, ou seja, “a capacidade de indivíduos ou grupos de garantir que alcancem resultados favoráveis por estarem submetidos a novas circunstâncias e, se necessário, usar novos meios” (PNUD [2014], p. 18)[3.
Neste contexto, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) das Nações Unidas propõe uma equação de vulnerabilidade com os seguintes componentes: vulnerabilidade – exposição aos riscos mais incapacidade de lidar com eles mais incapacidade de adaptação ativa (ECLAC, 2002, p. 3).
Para a CEPAL, os dois principais componentes que definem o conceito de vulnerabilidade são riscos e ativos. “Riscos sociodemográficos, que são eventos, processos ou traços que dificultam a realização de projetos comunitários, domésticos e individuais ou dificultam direitos” (ECLAC, 2002, p. 23). Estes não se referem necessariamente a uma situação inerentemente negativa: são eventos que podem causar danos ou incertezas e cujas consequências concretas podem ser ambíguas ou mistas, combinando adversidades e oportunidades (ECLAC [2002], p. 3).
Por outro lado, os ativos seriam “um conjunto de recursos tanto tangíveis ou materiais como intangíveis ou imateriais cujo uso ou mobilidade permite manter e/ou melhorar a qualidade de vida e enfrentar situações de vulnerabilidade” (Sánchez-González & Egea Jiménez [2011], p. 161, citando Moser, 1998; Attanasio e Székely, 1999; Esping-Andersen, 2000; Katzman, 2000; Filgueira, 2000). Os ativos não são rendimentos, embora permitam, entre outras coisas, que os rendimentos sejam obtidos por diversos meios (Busso [2001], 14).
Os ativos tangíveis incluem ativos físicos, que comprendem bens ou meios que as pessoas usam para sobreviver (habitação, animais, recursos naturais, etc.), produzir e obter renda (ferramentas, máquinas, transporte para uso comercial, etc.); financeiros, que integram poupança e créditos disponíveis; o capital humano, incluindo a força de trabalho doméstica, a educação e a saúde de seus membros. Entre os ativos intangíveis se encontram os ativos sociais ou capital social, incluindo redes e laços de confiança e reciprocidade articulados em redes interpessoais (Busso [2001], p. 13).
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2014), existem pelo menos dois tipos de vulnerabilidades: as estruturais e as relacionadas com o ciclo de vida.
As vulnerabilidades estruturais ocorrem “quando instituições sociais e jurídicas, estruturas de poder, espaços políticos ou tradições e normas socioculturais não servem igualmente aos membros da sociedade – e quando criam obstáculos estruturais ao exercício de direitos e escolhas para algumas pessoas” (PNUD [2014], 78).
As vulnerabilidades estruturais decorrem de fatores como desigualdade de gênero, etnia e intergrupal” (PNUD, 2014, p. 78). Nesse contexto, pessoas pobres, mulheres, membros de povos indígenas, pessoas com problemas de saúde (com desnutrição, deficiência, dependência de drogas, etc.) estão em estado de vulnerabilidade estrutural. No entanto, esta lista também pode incluir migrantes, pessoas analfabetas ou de baixa escolaridade, mulheres com diferentes orientações sexuais, pessoas na prostituição, vítimas de racismo e discriminação, entre outros.
Vulnerabilidades estruturais interagem com a dinâmica do ciclo de vida para colocar certos grupos, como crianças (principalmente os da primeira infância), jovens e idosos em maior risco (PNUD, 2014, p. 78).
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2014 também refere-se às intersecções que podem existir entre vulnerabilidades estruturais e vulnerabilidades relacionadas com o ciclo de vida. É o caso, por exemplo, de uma jovem indígena, pobre, analfabeta, migrante e deficiente. Vulnerabilidades estruturais e aquelas associadas ao ciclo de vida “viajam” com a pessoa como uma “mochila” que a pessoa carrega com ela onde quer que vá.
Alguns grupos ou populações estão em uma condição de vulnerabilidade agravada porque sobre elas conflui um maior número de riscos.
Tabela 1. Relação entre vulnerabilidades e populações
Tabela – VULNERABILIDADE ESTRUTURAL
Neste trabalho, analisaremos três grupos populacionais sobre os quais pesa uma condição de vulnerabilidade agravada. A seguir, descreveremos essas populações e os riscos a que estão expostas.
3.1. Povos Indígenas Altamente Vulneráveis (PIAV). Vulnerabilidade e etnia.
Um dos principais objetivos da agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável é promover a igualdade e a inclusão das pessoas (Meta 10) (ONU, 2015, p. 24), em especial aquelas em situação de vulnerabilidade (ONU, 2015, p. 4). A agenda acima mencionada não contém um objetivo específico sobre os povos indígenas, mas existem inúmeros instrumentos internacionais que reconhecem e protegem seus direitos [4]. .
Os povos indígenas contribuem para a diversidade cultural em todo o mundo, “somam cerca de 370 milhões. Embora componham cerca de 5% da população mundial, os povos indígenas são 15% dos pobres do mundo. Eles também representam um terço dos sem-teto rurais” (ONU, 2010, p. 10). Como observado acima, os povos indígenas são um setor da população em condição de vulnerabilidade estrutural (PNUD, 2014, p. 78)[5] .
De fato, os povos indígenas, como setores específicos da sociedade, ocupam uma posição marginal e têm acesso desigual e menos controle sobre as chamadas “oportunidades vitais”. Embora reconheçamos que o significado e o escopo dessas “oportunidades” podem ser muito diferentes em povos com culturas não ocidentais, entendemos por lacuna o acesso desigual não apenas aos serviços (como educação formal, saúde e outros), mas sobretudo à informação, recursos e poder de decisão que os indivíduos têm como membro de um grupo social (CELADE [2005], 3).
Na Bolívia, apesar de uma ampla base normativa nacional[6] que os protege, ainda sofrem racismo e discriminação, têm uma saúde mais precária, níveis mais baixos de educação, rendas mais baixas e taxas mais altas de analfabetismo do que o resto da população. As causas são diversas, mas talvez a mais importante delas seja a opressão econômica, social e cultural que os povos originais sofreram por muitos séculos e que começou nos tempos coloniais (Ministério das Relações Exteriores da Suécia, 2003 citado em (Ouvidoria, 2010).
No entanto, alguns povos indígenas são considerados “altamente vulneráveis”, pois estão sujeitos a riscos maiores e ainda mais iminentes do que outros. A nível internacional, esses povos indígenas são chamados de “povos indígenas isolados e de contato inicial” (OHCHR, 2012).
Os povos isolados são povos ou segmentos de povos indígenas que não mantêm contatos regulares com a maioria da população e que também muitas vezes fogem de todos os tipos de contato com pessoas fora de seu grupo. Também podem ser grupos pertencentes a vários povos já contatados que, após uma relação intermitente com as sociedades circundantes, decidem voltar a uma situação de isolamento como estratégia de sobrevivência e voluntariamente quebrar todas as relações que podem ter com essas sociedades (OHCHR, 2012, p. 8).
Os povos em contato inicial são povos que mantêm contato recente com a população majoritária; eles também podem ser povos que, apesar de manter contato de muito tempo atrás, nunca exatamente vieram a conhecer os padrões e códigos de relacionamento da maioria da população. Isso pode ser porque esses povos mantêm uma situação de semi-isolamento, ou porque as relações com a maioria da população não são permanentes, mas intermitentes. (OHCHR, 2012, p. 10).
Esses povos compartilham uma série de características que moldam sua situação de “alta vulnerabilidade”, entre as quais estão: sua falta de defesas imunológicas para combater doenças virais exógenas, o estreitamento que seus territórios sofreram diante dos avanços da frente extrativista sobre eles, a redução e poluição dos recursos naturais e ecossistemas explorados para fins de subsistência, o dramático declínio populacional de alguns deles diante dos constantes confrontos e doenças (IWGIA, 2006), sua sobrevivência cultural extremamente ameaçada, seu modo de vida transfronteiriço[7] .
Na Bolívia, essas “nações e povos originários de alta vulnerabilidade”[8] representam menos de 0,2% da população total do país. (Vice-Ministério das Terras, 2006). Segundo Astete, os povos indígenas altamente vulneráveis são: Cayubaba, Chacobo, Baure, Ese Ejja, Canichana, Sirionó, Yaminahua, Machineri, Yuqui, Moré, Araona, Tapiete, Pacahuara, Guarasug’we (Astete, 2015). No país, os povos indígenas altamente vulneráveis estão em posição de “assimetria estrutural com a sociedade nacional, tanto indígenas quanto não indígenas, por falta de recursos, sua população limitada, as agressões que sofrem e sofreram, a perda de seus territórios e seu confinamento em áreas marginais, entre outros fatores” (CEJIS [2010], p. 133).
Como observado acima, uma das razões para a “alta vulnerabilidade” desses povos indígenas se origina em sua condição de povos transfronteiriços. Um exemplo disso é a situação do povo Ese Ejja. A fronteira binacional impõe barreiras a esse povo para o contato e a interação entre os que residem em território boliviano e os que se encontram em território peruano. Essas barreiras ameaçam a identidade linguística e a integridade sociocultural de muitas famílias que vivem atualmente divididas pelas fronteiras supracitadas, uma circunstância que constitui uma fonte constante de ansiedade e tristeza. A divisão fronteiriça e departamental (La Paz, Beni, Pando) dificulta muito o desenvolvimento integral do povo Ese Ejja, limitando suas capacidades de representação organizacional e política (Relatório Sumário do Processo de Vindication Territorial do Povo Indigene Ese Ejja no Baixo Boliviano Heath, 2007).
Por outro lado, o perfil epidemiológico realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para os cinco povos indígenas residentes no departamento de Pando – Machineri, Yaminahua, Esse Ejja, Tacana e Cavineño (dos quais quatro são considerados povos indígenas altamente vulneráveis) – aponta para a existência de altas taxas de mortalidade e natalidade (mais de 61,7% têm menos de 19 anos) e a expectativa de vida da população é baixa, pois a população acima de 65 anos atinge apenas 2% do total (UNFPA & Marie-Stopes, 2015).
Segundo a mesma fonte, a maior proporção dessas populações indígenas (Machineri, Yaminahua, Esse Ejja, Tacana e Cavineño) consome água de poço e 70,4%, não realiza nenhum tratamento de água. 91,4% dos domicílios dos povos indígenas de Pando possui banheiros com descarga de balde e 6,6% sequer tem banheiros.
No que diz respeito à poluição dos recursos naturais e dos ecossistemas explorados para subsistência por esses povos indígenas altamente vulneráveis, deve-se notar que nos principais rios da região amazônica (Beni, Mãe de Deus, Orthon) foram instaladas dragas em busca de ouro. Comunidades indígenas que vivem perto desses rios (Ese Ejja, Pacahuara, entre outros) sofrem os efeitos da poluição, como a deterioração da pesca. Inundações temporárias afetam a produção e seus modos de vida. Os incêndios não só têm efeitos poluentes e de deterioração de suas terras, mas causam o enfraquecimento das comunidades com a migração.
Continua na próxima semana.
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Leia a coluna anterior: O que fazer com o sentimento do mínimo?
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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