Usando uma analogia humano-startup, colunista analisa a superficialidade que tomou conta de nosso modo de agir, fruto da quantidade e velocidade de ações que temos de efetuar, por conta da sobrecarga de informações que recebemos
Dia desses, observando o comportamento de uma senhora em uma livraria de nossa cidade (peço desculpas pela indiscrição, mas não dava para não ouvi-la, mesmo estando em outro corredor), achei curioso sua eloquência, diversidade de pautas e velocidade com que mudava de assunto, de modo que comecei a estudá-la. Sinceramente, não cheguei a vê-la. Entretanto, em menos de dois minutos, ela deu-me o insight para este artigo. Senão vejamos: “Fulana, estou vendo aqui o livro tal. Já olhei em outro site e o preço aqui tá razoável. É bom mesmo… por quanto você comprou?”. Recebeu as informações que queria, agradeceu e partiu para outra ligação: “Filha, não perca tempo. Tem um macarrão que sobrou de ontem. É só esquentar”. Depois, não entendi se falava com o marido ou filho, e disparou: “Não se preocupe. Vai ficar ruim para você. Vou chamar um Uber”. Então distanciou-se e eu fui para outra seção no lado oposto, pois acho que não ficaria bem nem ela entenderia se eu a seguisse… Confesso que daria um bom estudo. Finalizei a pesquisa de campo, porém fiquei com esse quadro na cabeça.
Voltando ao fronte, quando trabalhava os cinco principais domínios da Transformação Digital (TD) – Clientes, Valor, Dados, Inovação e Competitividade -, como acontece naqueles momentos “eureka”, o cérebro encaixou o episódio da livraria a estes conceitos e pude perceber, naquele pequeno espaço temporal do ocorrido, a similaridade entre o indivíduo de hoje e uma empresa. Ou, de uma forma mais atualizada, uma startup.
Na aula condensada de hoje, pretendo trabalhar a analogia humano-startup e ver se conseguimos compreender a superficialidade que tomou conta de nosso modo de agir, fruto da quantidade e velocidade de ações que temos de efetuar – dada à sobrecarga de informações que recebemos – e entender porque estamos migrando do mundo VUCA – volátil (Volatility), incerto (Uncertainty), complexo (Complexity) e ambigüo (Ambiguity) -, para o mundo BANI – frágil (Brittle), ansioso (Anxious), não-linear (Nonlinear) e incrompreensível (Incomprehensible). Tenho por princípio que a solução de um problema é diretamente proporcional à qualidade do modelo desenvolvido. Para modelar esse novo mundo e achar uma saída, precisamos explorar alguns conceitos.
Metabolismo social
No livro “Scale: The Universal Laws of Life, Growth, and Death in Organisms, Cities, and Companies”, o físico Geoffrey West trás um conceito muito interessante: Metabolismo Social.
Ele começa pelo conceito de metabolismo, “quantidade de energia consumida por segundo, necessária para manter-nos vivos”, e estipula que precisamos em média de 2.000 calorias/dia. Em termos palpáveis, West compara esse consumo ao de uma lâmpada incandescente padrão de 90 watts/dia. Seguindo este raciocínio, faz uma constatação alucinante: como animal social, vivendo em cidades, consumimos, além das calorias basais, a energia de nossos lares (aquecimento, resfriamento, luz, dados etc.), iluminação de vias, transportes (automóveis, avião, trem, barco), computadores e por aí vai, o que dá em média, para um habitante americano, o consumo diário de 11.000 watts/dia, metabolismo equivalente ao de 12 elefantes. Sim, uma dúzia de paquidermes. Se multiplicarmos isto por 30, chegamos a um consumo de 330 kW/mês. Para você ter ideia do que é isto, em nossa residência (uma casa média com todos os eletrodomésticos para contemplar 05 pessoas), consumimos via COSERN, em média, 660 kW/mês. Ou, se quisermos trazer para o patamar de uma pequena empresa, 330 kW é mais do que uma startup de 04 pessoas, baseada em TI, consome por mês. Assim, em termos de consumo energético, você pode ou não ser comparado(a) a uma startup? Precisamos repensar nosso consumo, pois, nesta “pegada”, vai faltar planeta. Temos que nos modelar como empresa.
Outro conceito: Startup!
Eric Ries, o “cabra” que mergulhou fundo no modelo de produção enxuto da Toyota, bolou a seguinte definição e colocou seu livro Lean Startup: “Uma startup é uma instituição humana desenhada para criar um novo produto ou serviço em condições de extrema incerteza”. E, no mesmo livro, descreve o porquê das startups falharem: “A maioria dos produtos não fracassam por causa da execução insatisfatória, mas sim porque a empresa está desenvolvendo algo que ninguém quer”. Guardem estes conceitos.
Voltando ao encontro na livraria
A senhora da livraria apresentou sintomas interessantes dos domínios da TD. Ao “chavear” a mente rapidamente entre assuntos tão diversos (esquentar macarrão, Uber, consulta do preço e conteúdo de um livro, dispensa do marido/filho), apresentou o conceito de multitarefa; ao decidir e emitir ordens, “esquente, não venha”, que são imperativos, implementou; ou seja, inovou. Ao mesmo tempo, validou o novo conceito de cliente: atuação em rede. Observe que antes de comprar buscou por recomendação. Ao dispensar a pessoa que queria buscá-la, optou pela solução que lhe mostrou-se mais viável: o Uber. Acionou o modo competitividade, já que os serviços agora apresentam uma característica de perecibilidade extrema. Em outros tempos, ficaria aguardando sua carona por vários minutos. Talvez até uma hora. “Tempo é vida; trabalho é dinheiro”, diria GBB-San. Utilizando a Internet para consultar outros valores do livro, percebeu que o que estava bem ali à sua frente mostrava-se mais viável do que, por exemplo, comprar e pagar um frete ou ter de deslocar-se para outra loja. A proposta de valor “livro em minhas mãos agora”, encaixou perfeitamente. Essa ação também configurou uso estratégico dos dados. Varremos então os cinco domínios da TD: Clientes, Valor, Dados, Inovação e Competitividade.
Tendo apresentado os conceitos e exemplificado a TD, acho que agora já não estou parecendo tão maluco assim. Vamos juntar TD, metabolismo paquidérmico, conceito de startup, colar tudo ao encontro na livraria e tentar explicar nossa entrada na era BANI e buscar uma saída.
Nosso próprio Lean Canvas
Em Modelo de Negócio versus Modelo de Ideia, contraponho Canvas (C) e Lean Canvas (LC) para mostrar quando devemos aplicar um ou outro. A situação vigente exige o LC, uma vez que é uma proposta de valor única, manter-se útil e feliz, para um cliente bem específico: você! O maior problema, foi exemplificado pela senhora na livraria. Observem a densidade de decisões e ações que ela exerceu em um par de minutos? Isso é impensável para tempos de 20 anos atrás, quando esta senhora já era adulta. Vou chamar essa bronca de sobrecarga informacional (SI). A SI tem um ótimo indicador: o estresse. A solução: mudar o mindset, pois algo está muito errado. Em tempos “normais”, 25% do consumo de nossa energia diária era demandada pelo cérebro, mas parece estar aumentando. Ele merece um alívio. O estresse também indicará o nível de seu metabolismo social, uma vez que o consumo de energia está diretamente associado à quantidade de atividades que você realiza, já que é um indicador de custo operacional (luz, combustível, celular, PC etc.). O equilíbrio de todas estas seções do LC, que eu entendo como ganho, só será alcançado por uma capacitação contínua e útil, em um formato sugerido em O futuro das profissões…, onde defendo que se estimule a criatividade, a capacidade de criar problemas, a resiliência lean, contruir, medir e aprender os conceitos em ciclos cada vez mais curtos, tudo isso associada à redução drástica do tempo inútil dedicado à telinha. Os KPIs (key performance indicator) resultantes destas ações vão guiar você em direção ao principal OKR (Objective and Key Result), buscado por toda startup, também traduzida como vantagem injusta, aquela que pouquíssimos concorrentes conseguirão imitar, que é otimização de seu próprio consumo metabólico. Este estágio de felicidade só será percebido pelo canal que conecta sua proposta de valor a você mesmo: um bom espelho. Seu sorriso indicará o alcance da meta. O resultado desse modelo de negócio: paz consigo mesmo.
Você Startup e o mundo BANI
Com o LC proposto, o porquê de nos compararmos a empresas começa a fazer sentido. A fragilidade exacerbada pela COVID-19, mostra que nossa finitude virá não apenas pela imposição do tempo, mas também por catástrofes que sempre acontecerão. Qual organismo é mais suscetível à variações de Mercado do que uma empresa? O Mercado de trabalho apresentou um dos maiores índices de desemprego, elevando a ansiedade de todos ao nível dos índices da grande depressão econômica de 1929 e das 1ª e 2ª Grandes Guerras. A desconexão entre as lógicas epidemiológica e política, evidenciada em Vírus versus quebra da Economia: qual morte escolher?, mostrou-se não-linear, apontando como o medo, o vírus e os políticos são entes irracionais com comportamentos totalmente incompreensíveis.
Observe que os efeitos ocasionados nos CNPJ podem ser atribuídos também aos CPF, e versa-vice! As organizações apresentaram características humanas. Pessoas, ante o medo de perder seus empregos e bens, assim como conexões em rede, comportaram-se como empresas.
Saída do mundo BANI
Analisando aquela senhora na livraria com aquele grau de gerenciamento tão intenso, comecei a me perguntar o quanto meu quadro diferiria do dela. Se ela, que pareceu-me aposentada (suspeição apenas, dada à voz de idosa e por não tê-la ouvido falar em trabalho) está nesse nível de sobrecarga, imagino os da ativa. Comecei um embate filosófico sobre o quanto estamos nos transformando digitalmente ou, de certa forma, perdendo nossa natureza! Olhando para a principal causa de falha de uma startup, vem a pergunta óbvia: será que, como uma startup humana, estamos desenvolvendo uma proposta de valor que o cliente (nós mesmos) quer ou precisa? Suspeito que todo nosso desequilíbrio emocional e a consequente superficialidade estejam associados ao nível de metabolismo social que nos impomos. Se minha suposição tiver coerência, ajustar a proposta de valor será o primeiro passo em direção à saída do mundo BANI.
Referências:
Demandada pelo cérebro – casadaciencia.com.br
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Leia a edição anterior: Instrução como um serviço (Parte II)
Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Gláucio Brandão
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