Mesmo antes da pandemia, para corpos femininos e racializados em alguns espaços institucionais já estava difícil respirar
Texto e fotos: Andrielle Mendes (Instagram: @dielymendes).
Eu planejava escrever sobre o mês da visibilidade indígena (abril) ou até mesmo sobre o mês das mulheres (março), mas tudo o que consegui fazer, em meio a mais um bloqueio de escrita, foi recuperar um ensaio ainda não publicado sobre como a violência psicológica* praticada dentro das universidades impacta a vida de pesquisadoras racializadas – indígenas, pretas, negras e pardas.
Ele foi escrito há uns dois anos… ainda não atravessávamos uma pandemia, mas em alguns espaços institucionais já estava difícil respirar. As reflexões desse período pré-pandemia eu compartilho a seguir.
A violência praticada contra as mulheres dentro dos muros das universidades está para além da bibliografia predominantemente masculina, branca, heteronormativa. Está presente também em discursos e práticas, que reforçam a subalternização das mulheres enquanto produtoras de conhecimento. Há professores que minam, dia após dia, a autoestima das estudantes. Há aqueles que as isolam de outros pesquisadores e grupos; inferiorizam a sua escrita; menosprezam as suas ideias para depois usurpá-las; que se apropriam indevidamente dos trabalhos escritos por suas orientandas.
Como essas mulheres conseguirão atingir as cotas de publicação científica? Como conseguirão criar? Como se tornarão conhecidas, se outra pessoa é exaltada como o autor principal do artigo, projeto, material que ela elaborou? Quase sempre a vítima suporta o sofrimento provocado pela violência psicológica em silêncio. As que se insurgem contra o violador são rotuladas de raivosas, furiosas, ingratas, injustas, imaturas. Tornam-se alvo de uma campanha difamatória, que só reforça o quão estão envolvidas em um ciclo de violência.
A violência, segundo Alessandra Araujo, “aparece, então, como uma tentativa de impedir a emergência de significados e sentidos que ameacem a hegemonia masculina” (ARAUJO, 2005, p. 74). Quando não se calam, em vez de contribuírem na própria produção como não-sujeitos, estas mulheres podem estar justamente reivindicando o contrário, afinal, “por que, nestas situações, somente as mulheres deveriam se calar? Para se ‘preservarem’? O silêncio nem sempre lhes garante proteção” (ARAUJO, 2005, p. 73-74).
Por trás de casos de violência intelectual, está a ideia de que a mulher só acessou este espaço, porque o professor, em geral homem, mais velho e concursado, abriu as portas; uma ideia que está diretamente atrelada ao patriarcado, ainda presente nas instituições sociais brasileiras. Protetivo e/ou dominador, o comportamento patriarcal discrimina as mulheres, enquanto fomenta a desigualdade de gênero nos espaços de saber espalhados pelo país.
Na universidade, o patriarcado acadêmico manifesta-se nos discursos, posturas e práticas machistas e/ou misóginas (que exprimem desprezo ou aversão às estudantes, técnicas, professoras). A bibliografia dos cursos universitários é apenas uma das faces visíveis da desigualdade de gênero fomentada pelo patriarcado acadêmico. O enfrentamento a este tipo de comportamento na academia passa pela inserção de mais mulheres nas referências bibliográficas das disciplinas, cursos, concursos, mas também, pela problematização de discursos, posturas e práticas machistas, discriminatórias e violentas, que impactam no bem-estar das mulheres e na permanência delas nas instituições de ensino superior.
Não à toa, as mulheres adoecem mais do que os homens em seu ambiente de trabalho, porque sobre os seus ombros pesam não só a discriminação étnico-racial, mas o machismo, que transforma as pesquisadoras em um indivíduo duplamente subalternizado (SPIVAK, 2010). Para Gayatri Spivak (2010), a mulher subalternizada encontra-se em uma posição ainda mais periférica do que o homem subalternizado devido aos problemas relacionados às questões de gênero.
Outra questão a ser problematizada dentro da universidade é o preconceito contra a escrita da mulher, grupo historicamente oprimido (SANTOS, 2003), privado, por séculos, do acesso às letras e a tudo o mais relacionado a elas (PERROT, 2005). Ao apagar as marcas da escrita das mulheres, apaga-se também as marcas das mulheres nos escritos, o que contribui para a invisibilização do protagonismo das pesquisadoras na produção do conhecimento.
A entrada das mulheres na universidade, inicialmente no nível do público, e depois, mais tardiamente, no quadro de professores, de acordo com Michelle Perrot (2005), favoreceu o nascimento de novas expectativas, de questionamentos diferentes, e consequentemente o desenvolvimento de cursos e pesquisas sobre as mulheres.
“Grupos foram constituídos, seminários, cursos, colóquios foram organizados” (PERROT, 2005, p. 17) e temas como a violência contra a mulher conquistaram legitimidade no seio das instituições de ensino superior, trazendo a experiência da violência, um dos temas mais urgentes a serem tratados em relação ao preconceito contra a mulher (AZERÊDO, 2007), para o centro do debate.
A força dessa produção, escreve Sandra, “está no fato de que não estamos estudando e escrevendo simplesmente para publicar qualquer coisa, de modo a satisfazer a exigência da universidade” (AZERÊDO, 2007, p.16); estamos estudando e escrevendo, porque muitas vezes nossa vida depende disso.
Produzir reflexões a respeito da violência intelectual, psicológica, moral, física, sexual sofrida por pesquisadoras dentro das instituições de ensino superior pode ser considerada uma outra maneira de desinvibilizar, denunciar e enfrentar o patriarcado acadêmico, que preza pela manutenção dos privilégios masculinos.
Ler mais autoras, denunciar práticas abusivas, formar redes de apoio são outras formas de fortalecer o corpo das pesquisadoras para enfrentar o patriarcado acadêmico, que investe diretamente no acirramento da competição entre as mulheres, como forma de dominação e controle.
Desafiar-se a ocupar outros espaços é tão importante quanto apoiar outras pessoas que se desafiaram a fazer o mesmo. A universidade, que reproduz violências, pode reproduzir também estratégias de bem-(com)viver, se nos comprometermos a tornar esse ambiente menos hostil para quem já o ocupa e para quem ainda o ocupará.
*A violência psicológica, conforme a Lei Maria da Penha, é qualquer conduta que cause dano emocional e à autoestima da mulher, que prejudique o seu pleno desenvolvimento, que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Manifesta-se através de ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento (proibir de falar com outras pessoas, por exemplo), vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, tirar a liberdade de crença, distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade.
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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