É preciso desenvolver propostas de valor bem pensadas e simular minimamente o Mercado para compreendê-lo
“Professor, desenvolvemos uma solução – um infoproduto na área de saúde com modelo de recorrência -, que já testamos, validamos e verificamos com vários players, e vamos lançar em um Mercado gigantesco. Estimo que nossa startup conseguirá alcançar cerca de 1 milhão de pessoas insatisfeitas com as soluções pré-existentes num período de um ano. Projetamos um ticket médio de R$ 50,00 por cabeça que, puxando uma curva ascendente, fará perto de R$ 50 milhões/ano. Estimamos um custo total perto de R$ 20 milhões/ano entre tração, RH e infraestrutura, de modo que nosso lucro ficará em torno de R$ 30 milhões/ano. A única dúvida que ainda paira é se compro uma Ferrari ou uma Lamborghini?”.
Já ouvi este startup-papo uma centena de vezes. E o chato é ter que ser eu a dizer para adiar um pouco o passeio – em um ou outro bólido – e se contentar com um Fusquinha; pelo menos por enquanto!
Por mais validado que seu P2S2 esteja, se você não criou um oceano azul – uma solução única, atratente e contagiosa -, estará disputando seu espaço com mais gente. Gente, inclusive, que chegou primeiro e sabe onde “as cobras dormem”, onde estão aqueles 2,5% primordiais necessários para saltar o abismo e, de fato, ganhar o Mercado! Assim, não é só o tamanho que está superestimado. O público correto que vai promover a ascendência da curva precisa ser encontrado. Vamos então explicar o que o trio oriental TAM-SAM-SOM dirá para esse incauto piloto de Fusca!
TAM-SAM-SOM e o que até a velhinha de Taubaté já sabe
Adptemos alguns conceitos da enciclopédia mais rapidamente corrigida do Mundo, a Wikipedia:
O TAM, Total addressable market, mercado total endereçável ou ainda mercado total disponível, é a demanda total do mercado por um produto ou serviço, calculada em receita anual ou vendas unitárias, caso 100% do mercado disponível fosse alcançado.
O SAM, Serviceable Available Market, algo que poderia ser traduzido como mercado disponível a ser servido, é a parte do TAM direcionada e atendida pelos produtos ou serviços de uma dada empresa.
O SOM, Serviceable Obtainable Market, mercado obtenível de serviço, ou participação de mercado, é a porcentagem de SAM que é alcançada de forma realista por um player entrante: a sua empresa.
Por exemplo, o gasto total do consumidor do Reino Unido em alimentos em 2014, que é o mercado total de alimentos endereçável, foi de £ 198 bilhões (incluindo refeições, bebidas alcoólicas, bebidas não alcoólicas e outros alimentos). O mercado disponível útil para bebidas alcoólicas, que os produtores de bebidas alcoólicas visam e servem, é de £ 49 bilhões. Como o mercado de bebidas alcoólicas não é um monopólio, a participação de mercado de uma empresa produtora de bebidas alcoólicas nunca pode chegar a 100% do SAM. A figura com o TAM-SAM-SOM dá o tamanho do trio.
Em suma, a velhinha de Taubaté já sabia que tinha mais gente disputando o seu Mercado, e que essa galera feroz sabia quem estimular e a quem servir.
Voltando ao infoproduto…
Vamos supor que o tal infoproduto da Healthtech (startup da área de saúde) tratava-se de um plano de saúde (isso foi real, gente; mudei algumas coisas pra não ser cancelado virtualmente). “7 em cada 10 brasileiros não têm plano de saúde”, segundo dados do Senado Federal. As opções que estes 70% possuem recaem no SUS (um sistema magnífico mas que, dada a abrangência-Brasil, está sobrecarregado), em clínicas populares e plataformas que intermediam quem precisa com quem atende. Os 30% (perto de 63 milhões de brasileiros) respondem pelo TAM-Brasil; ou seja, o Mercado total de potenciais pagantes. Mantendo-se a proporção, o RN, com seus 3,5 milhões de habitantes, forneceria um TAM-RN de aproximadamente 1 milhão de habitantes. Natal, com 896 mil habitantes, nos daria um TAM-NAT de 270 mil potenciais pagantes de planos de saúde, admitindo que a startup fosse atuar apenas aqui. Segundo dados da Prefeitura do Natal, a rede municipal de saúde possuía, em 2007, 94 unidades, sendo 80 municipais, 10 estaduais e 4 federais. Não deve ter aumentado muito. Admita um igual número de unidades privadas; melhor, dobre! 200 unidades privadas seriam, portanto, o SAM-NAT, mercado de pagantes alcançáveis pela referida Healthtech. Mas aí tem um detalhe: dezenas de planos de saúde disputam este espaço. Peguemos 9 concorrentes apenas; com a Healthtech, 10. Literalmente, 1/10 seria o SOM que nossa querida solucionadora de problemas de saúde “escutaria”, pelo menos inicialmente, o que corresponde ao público que faz uso dos serviços de 20 unidades de saúde privada. Como Natal tem 36 bairros, a Healthtech teria o potencial para atuar num bairro sim e noutro não. Passamos então de um sonhado 1 milhão de habitantes a R$ 50,00 (R$ 50 milhões/ano), para 27 mil pagantes gerando um montante de R$ 1,35 milhões; por mês, R$ 112.000,00, admitindo que a Healthtech acertasse os adotantes iniciais (aqueles 2.5% de inovadores que promoveriam a ascendência, lembra?) e fosse aceita pelo Mercado. Dá para manter um time de desenvolvedores, marketing, pessoal de vendas, aluguel do espaço etc., com esse valor? Bom: o IPVA da Ferrari iria atrasar.
Como sempre, 🎶para descarregar a memória RAM de seu “cabeção” e diminuir a textual confusão, fiz até um desenhão! 🎶. Cordel bonito, sô! Veja como sua Ferrari encolheu – na mesma proporção que o seu sonhado Mercado – e virou um Fusquinha!
Encolhendo…
Pois é, moçada! Já mencionei várias vezes como o fato de empreender cada vez mais se aproxima de uma Ciência Empreendedora, principalmente se entendemos viver na era da informação. Até descrevi as startups como eventos científicos necessários, tanto para o Mercado quanto para a Academia. Quem já sacou isso, sabe que precisa desenvolver propostas de valor bem pensadas e simular minimamente o Mercado para compreendê-lo, nem que seja utilizando planilhas eletrônicas ou por meio de dados secundários encontrados facilmente na Internet, as chamadas “pesquisas desk”, o que não é difícil, pois acabamos de fazê-lo. Ou se age cientificamente, ou a startup errará o tamanho, o alvo de seu Mercado e “vai se Ferrari”. Nem de Fusquinha vai andar!
Referências:
TAM – Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Total_addressable_market)
Senado Federal (https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/materias/pesquisas/7-em-cada-10-brasileiros-nao-tem-plano-de-saude)
Prefeitura do Natal (https://natal.rn.gov.br/storage/app/media/sms/desenho_de_rede_sms.pdf)
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Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Gláucio Brandão
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