Como um pequeno ser do fundo do oceano pode mudar o que sabemos sobre a origem dos nossos primeiros ancestrais eucariotos
Um dos temas mais interessantes da história da biologia é a origem de células eucariotas, células como as nossas que possuem outros sacos membranosos em seu interior, como o núcleo, mitocôndrias e o complexo de Golgi. A principal teoria sobre esta origem é a simbiogenética. Nela, Lynn Margulis propôs que uma célula pequena foi viver dentro de outra maior e acabou dando origem às células com organelas. O mais bacana é que ela deduziu isso só olhando para características comuns que bactérias e organelas possuem quando observadas com um microscópio eletrônico, que na época, nos anos 60, havia acabado de ser inventado. Esta visão era revolucionaria por que quebrava a ideia de que todas as espécies se originaram de bifurcações na árvore da vida, os eucariotos seriam o produto da fusão de diversos galhos. Mas estes ancestrais eucariotos não deixaram fósseis, e a próxima grande contribuição viria da biologia molecular.
Em 1977 foram publicadas as primeiras técnicas de sequenciamento de DNA. Pela primeira vez, podíamos estudar como se organizam os nossos genomas, o das outras espécies e compará-los. Foi mais ou menos nessa época que Carl Woese e Norm Pace propuseram que ao comparar as sequências de DNA de todas as espécies vivas, poderíamos construir as relações de parentesco entre todas as espécies. Mas para isso, eles precisavam olhar para um gene que estivesse em todos os seres vivos e que acumulasse muito poucas mutações ao longo da árvore da vida, de maneira que ele continuasse reconhecível. O gene escolhido foi a região do DNA que codifica o RNA ribossomal 16s. Essa região acumula muito poucas mutações por que a perda de função desse cara é catastrófica, o organismo para de fazer proteínas. O que eles descobriram foi surpreendente. A primeira coisa foi que tudo o que chamávamos de bactérias eram na verdade dois grandes grupos, bactérias e archaea. E nós, os eucariotos, e archaea possuímos uma ancestral comum mais recente do que o último ancestral comum entre archaea e bactérias! Assim, muito provavelmente os eucariotos são o produto de archaeas que viraram o lar de algumas bactérias que resolveram viver dentro delas. Mas ainda assim, não tínhamos registro de uma linhagem que estivesse minimamente próxima àquele ancestral comum entre archaea e eucariotos.
Foi aí então que, em 2010, um grupo de pesquisadores coletaram sedimentos do fundo do oceano Ártico, próximo de uma fonte hidrotermal chamada castelo de Loki (sim, por conta do mito nórdico). Nestes sedimentos, pesquisadores da universidade sueca de Uppsala encontraram diversas archaea que ganharam um filo só para elas, o Lokiarchaeaota, que foi seguido pela descrição de mais três novos filos com nome de deuses nórdicos, Odinarchaeota, Thorarchaeota e Heimidallarchaeota. A esse superfilo, deu-se o nome de archaea de Asgard. E o mais legal dos archaea de Asgard é que eles possuem em seus genomas proteínas típicas de eucariotos, incluindo genes utilizados em tráfico de membranas e transporte de vesículas, funções típicas de quem possui uma organela. Mas o grande problema é que até agora a única coisa que sabíamos sobre os archaea de Asgard eram as suas sequências de DNA. Será que eles possuem organelas primitivas? Nós nunca havíamos visto uma célula inteira. Para isso precisávamos cultivar uma delas em laboratório.
E é aí que entra o trabalho hercúleo (esse texto está bem mitológico) de um grupo japonês que conseguiu depois de mais de uma década cultivar e observar um archaea de Asgard. Para isso, eles construíram um bioreator alimentado com gás metano para enriquecer a cultura com organismos que estão adaptados a viver perto das fontes termais. Além disso, eles tiveram que ter muita paciência. Em uma cultura de bactérias de laboratório como E coli, você espera apenas algumas horas para que ela cresça o suficiente para tornar o meio de cultura turvo. Já nessa cultura de archaea de Asgard, a primeira amostra a ficar turva levou um ano. Eles estimaram que a população se duplica a cada 14 a 25 dias. Isso é, lá em Asgard a vida passa bem devagarinho. E levou mais uns doze anos até descobrir quais características na associação com bactérias eram importantes para sua sobrevivência até conseguir uma cultura pura. Esta espécie que foi cultivada recebeu o nome de MK-D1. Eles então conseguiram olhar para MK-D1 no microscópio. E foi aí que confirmaram que essa archaea não possuí organelas, mas formam vesículas e formam protrusões de membrana que podem se ramificar (vejam a foto retirada do artigo). Estas protrusões de membrana são especialmente importantes para a formulação de hipóteses de como bactérias podem ter ido viver dentro de uma archaea.
Acontece que archaea são células pequenas, MK-D1 tem entre 300 e 750 nm, e não possuem energia suficiente para fagocitar uma bactéria. Imachi e colaboradores então propuseram que o ancestral archaea, que internalizou uma bactéria aeróbica, provavelmente envolveu esse simbionte com suas protrusões e pôde adicionar membrana ao seu redor por transporte de vesículas.
Em resumo, MK-D1 é agora o organismo mais próximo de eucariotos que conhecemos, nosso grupo irmão. O estudo de outros componentes dos archaea de Asgard vai trazer muitas novidades excitantes sobre estes organismos incríveis, e sobre o nosso próprio passado. Vale lembrar a importância do financiamento contínuo e de longa duração no sucesso do cultivo de MK-D1. Pesquisas como esta, que são um bem da humanidade, não podem ser reféns de diferentes ideologias que chegam ao poder. O artigo de Imachi e colaboradores ainda é um preprint, isso é, ainda não foi revisado por pares. O olhar de outros grupos sobre esses dados tão valiosos irá com certeza engrandecer esse achado espetacular.
Referência:
Imachi, H; Nobu, MK; Nakahara, N; Morono, Y, Ogawara, M; Takaki, Y; Takano, Y; Uematsu, K; Ikuta, T; Ito, M; Matsui, Y; Miyazaki, M; Murata, K; Saito, Y; Sakai, S; Song, C; Tasumi, E; Yamanaka, Y; Yamaguchi, T; Kamagata, Y; Tamaki, H; Takai, K. (2019) Isolation of an archaeon at prokaryote-eukaryote interface. bioRxiv, https://www.biorxiv.org/content/10.1101/726976v1
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Eduardo Sequerra
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