Por meio da Alegoria da Caverna, de Sócrates, colunista explica que a filosofia transversal e atemporal pode ser utilizada para entender nosso ecossistema de negócios
Ainda da série “aquelas disciplinas que te ensinaram a não gostar” – tipo a nossa última aula de Física – enveredo agora por outra: a Filosofia, a arte de investigar racionalmente acima da religião, da própria ciência e até do seu coach. O porque disto? Precisamos retirar uma névoa opaca que está encobrindo possibilidades, com isto nos frustrando e impedindo nosso desenvolvimento empreendedor.
Assim, por mais que evoluamos, como sugiro em Abstração (des)estruturada, as “artes básicas” – consideradas por mim, claro – serão sempre a Matemática (muitos não a consideram uma ciência, mas uma linguagem: a da natureza; sigo esta linha), a Física, essa sim uma ciência que utiliza a matemática para se expressar, e a Filosofia, a qual abarca o Trivium, matérias ensinadas nas universidades da idade média: gramática, a habilidade de entender e criar símbolos; a retórica, o poder de fazer sua audiência “vos” entender; a lógica, ferramenta que cria premissas e as faz chegar a conclusões por meio da argumentação. Chamo-as de “arte” porque dependem de habilidade, humor, estado de espírito etc. Idiossincrasias humanas. Considero-as básica não no sentido de simplicidade, mas por serem basilares: é inata ao ser humano e de difícil emulação por máquinas, se bem que a nossas “irmãs” de silício estão quase passando no Teste de Turing, a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente a um ser humano, ou indistinguível deste.
Uma das máximas da sociologia está em afirmar que a humanidade não evoluiu, apenas aprimorou tecnologias. Sendo portanto a filosofia transversal e atemporal, temos que utilizá-la always para entender nosso ecossistema de negócios, sob o risco de continuarmos ludibriados e enganando. Garanto a vocês que será uma viagem filosófica-iluminadora. E, como dantes, aposto que muitos irão gostar dessa parábola. Outros muitos odiarão. Fazer o quê?
A Alegoria da Caverna
Em a Alegoria da Caverna, Platão descreve um diálogo entre Glauco, seu irmão (eita, quase eu, faltou só o “i” de inovação!!!) e seu tutor, Sócrates. Vou fazer uma síntese, tentando não decepar a beleza deste ensaio.
A passagem fala sobre pessoas dentro de uma caverna, todas sentadas e amarradas lado a lado, sem poderem se mover, com a visão voltada para seu interior. Atrás delas, existe uma fogueira que as ilumina, de modo a refletir suas sombras em uma das paredes. Em alguns momentos, seres viventes e barulhentos passam por entre a fogueira e essas pessoas, projetando, nesta mesma parede, seus vultos, os de seus animais e de utensílios que carregam. Depois de muito tempo nesta situação, a projeção daqueles seres externos passa a ser compreendida como a realidade. Entretanto, um dos habitantes da caverna consegue se libertar dos grilhões que o impedia. Foge e vai de encontro aos seres externos. Uma vez que seus olhos estão acostumados aquela penumbra cavernal, ao sair, tem a vista saturada pelo excesso de luz. Não vê com nitidez os seres externos, porém os vê diferente daquelas sombras projetadas na parede. Entra em choque “filosófico”, pois o som das pessoas é familiar, mas as imagens não, e, depois de algum tempo, prefere voltar para o “conforto” das visões antigas que tinha em sua amada caverna. De volta aos grilhões daquela pequena sociedade, explica sua experiência, mas não é levado à sério, uma vez que a luz do sol que atingira seus olhos quando lá fora, faz com que não veja bem seus companheiros e a tropeçar no relevo da caverna. Depois de algum tempo, volta a ter sua visão novamente adaptada à penumbra da caverna e a aceitar aquela realidade de vultos refletidos como sua verdade. Claro que nesse meio tempo, teve de ouvir sermões dos companheiros, de modo a acreditar que isto o curou. Por outro lado, seus colegas passam a tê-lo como um louco em potencial.
Bela passagem ocorrida há 2.500 anos, por isto cerne do filme Matrix e do filme passado em Natalino. Para nosso paralelo negocial, faça de conta que a realidade externa é o que acontece, por exemplo, em um Mercado chamado Vale do Silicato. A caverna, uma instituição tradicional do município fictício de Natalino. Seus cidadãos – aprendizes – presos a grilhões invisíveis chamados de empreendedorismo-universitário. Já viram onde isso vai dar, né?
Standup ou Startup?
Até 2019, participei de várias bancas de startups e alguns hackathons. Vi, neste meio tempo, a formação de missões ao Vale do Silicato. Participei de nenhuma, pois, como tais passeios não me apresentam propósito, nunca me foram atrativos. Sobre as bancas, uma mesma conclusão: como avaliador, tive que apontar os melhores projetos, mesmo não os achando bons. Avaliações relativas, já que alguém tinha que ganhar! Estou pensando como recusar as próximas educadamente, pois não quero parecer hipócrita, participando de processos em que não mais acredito. Empreendedores sendo levados a crerem que suas propostas são como aqueles foguetinhos, tão utilizados como metáforas de sucesso estrondoso. Lembro que foguete sobe rápido, não dá ré (by Leonardo Galvão), cai e algumas vezes explode!
Por várias vezes, encontro as mesmas startups em outras bancas. Brincando pergunto: “Meu chapa: teu negócio é startup ou stand up?”. A pergunta subjacente que fica é “quantas vezes mais essa moçada vai se apresentar com a mesma ideia, para um público que não vai levar seus respectivos negócios à diante”. Na verdade, acho que as bancas são o negócio.
Nos corredores, vejo a agitação, seguida de ansiedade, transformar-se em frustração ao final do pitch. E não adianta dizer a essa galera de Natalino que a realidade de Silicato é outra, pois os grilhões do empreendedorismo-universitário são fortes, e aqueles que voltam pra caverna não conseguem convencer os outros que a realidade de Natalino está longe da de Silicato – ou de outro Mercado. Parecem estar surdos ou seguindo ondas, sem pensarem em novos caminhos.
Todos convencidos pelos sermões dos que nunca saíram da caverna de Natalino. Aqueles que se arriscarem falar diferente, pois tiveram outras visões, escutarão que seus olhos estão turvos e serão convencidos a voltarem ao discurso antigo, se não quiserem tropeçar e cair no descrédito. Não adiantará dizer que os grilhões estão segurando a sociedade de Natalino em um passado insustentável, cujo PIBículo (0,89% do PIB nacional) reflete a média de todas as instâncias de sua caverna – Educação, Saúde, Segurança, Emprego, Mercado – e que a forma de mudar isto reside numa política de governo que torne o empreendedorismo um de seus pilares. Chega de stand up por parte dos empreendedores, das universidades e dos políticos.
Palestra de Turing “Arte da Imitação”: (V)erdadeiro ou (F)also?
Levando Turing para palestrar em Natalino, poderíamos montar o seguinte experimento: palestrante profissional, ele traz mensagens do outro lado do atlântico, cantando feitos lá ocorridos. Como a coisa lá é muito avançada e, em contrapartida, o habitantes de Natalino continuam (mas não sabem) despreparados, já que estão olhando para os vultos na sombra há muito tempo, além de estarem presos às correntes do empreendedorismo-universitário, resta-lhes acreditar que tudo que Turing diz é a plena verdade, pois ele usa o Prezi.
Dada à fraqueza de nossa filosofia empreendedora e visão turva, o que leva à credulidade infantil, qual seria um possível resultado? Responderei com três exemplos extraídos dos slides de Turing: os cases Theranos, Hamburgueria e Amazon.
Para parte da audiência, tudo muito bonito. Entretanto, como nosso amigo fugitivo já sabia se desvencilhar dos grilhões universitários, desconfiou e foi sondar: Elizabeth Holmes, CEO da Theranos, a empreendedora (e sociopata) que enganou o Vale do Silício. A “Menina do Vale”, Bel Pesce, seu projeto malassombrado da hamburgueria e venda de empresa por US$ 50 milhões. Por fim, o recente caso de “mineração predatória” envolvendo a gigante Amazon é ainda pior: uma empresa que utiliza sua força de “startup exemplo” para surrupiar os noviços. Ou seja: ele descobriu que esses enrolations são nossos exemplos.
Unicornicidade
O ponto comum nesses três casos, que não são únicos, reside na pressão dos pares e do Mercado, o que eu chamo de “Unicornicidade” (inventei essa palavra, hehe): necessidade de escalar velozmente, comendo a maior quantidade de dinheiro possível, com lastro ancorado em potencial futuro, tendo que entregar nada no presente. Aí eu pergunto: não há outra forma de fazer o valuation? O valor das startups não deveria ser lastreado por seu histórico de execução? Vejam a A última coca-cola do deserto . Temos que inovar no aspecto de valoração de ativos, pois, aparentemente, os unicórnios estão gerando bolhas econômica e de frustração, produzindo dúvidas e dívidas, já que parte do iceberg que está submersa não vai dar para ser usada no whisky da moçada. Vejam o unicórnio UBER.
Finalizando… Filosofando…
Paremos para filosofar um pouco sobre nosso entorno. Excesso de confiança, fanatismo e culto aos grandes, “almoços grátis” com sobremesa included, estão turvando nossas mentes. Empreendedorismo não é crença e não nasce em palco. É fruto de estudo e efetivação. Não tem por origem exclusiva o meio acadêmico, dado que a universidade brasileira ainda está perdida sobre o que é inovação . Se você seguir uma metodologia simples, por exemplo a científica – observação, desconfiança, conjecturas, experimentação – diminuirá sua chance de fracasso. A galera de Silicato Valley também erra, engana e é enganada. Assim, se vocês não quiserem sair da caverna, admitam pelo menos a existência de outras realidades. Aproveitemos que a visibilidade está fragilizando os grilhões do empreendedorismo universitário e vamos por fim aos simulacros. Trabalhemos nossa própria realidade. A Inovação raiz está lá fora, no Mercado.
A coluna Empreendedorismo Inovador é atualizada às quartas-feiras. Gostou da coluna? Do assunto? Quer sugerir algum tema? Queremos saber sua opinião. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br). Use a hashtag #EmpreendedorismoInovador.
Leia a edição anterior: A Física por trás dos negócios
Gláucio Brandão é gerente executivo da inPACTA, incubadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Gláucio Brandão
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