A aplicação de novas tecnologias por vezes sofre com a regulamentação (ou a falta dela) sobre os experimentos
A ciência é uma atividade que se depara muitas vezes com experimentos que não deveriam ser feitos. No entanto, não podemos contar que milhões de cientistas tenham a mesma opinião sobre se tal experimento deve ser feito ou não. E nessa distância, entre o momento em que o cientista se depara com o experimento e o momento em que a regra é criada, mora um grande problema.
A distância entre a aplicação e sua regulamentação pode ser desmembrada em problemas de duas diferentes naturezas. O primeiro é temporal. Novidades científicas aparecem muito mais rápido do que o tempo que nossos legisladores levam para entender suas implicações. Essa característica gera sempre um limbo temporal em que novas tecnologias atuam desreguladas ou pouco. O segundo é espacial. Apesar da comunidade científica se comportar como um grupo planetário, as regras que a regem são feitas por países. Assim, a comunidade científica não possui ferramentas para evitar a realização de experimentos que não deveriam ser feitos pela opinião da maioria. Basta um cientista com vontade, um pouco de dinheiro e em um local onde não hajam regras para fazê-lo. Vou aqui então falar de um exemplo destes dois tipos de problema, a falta de regras para o transplante de fezes.
Eu falei aqui (Tratando o condomínio, uma nova medicina) de como a medicina está tratando pacientes como ecossistemas ao manipular as espécies de microrganismos que vivem em nossa barriga. Isso por que diversas patologias estão associadas com certas espécies de bactérias intestinais que alteram nosso metabolismo. Assim, não basta saber tudo sobre o Homo sapiens para entender a resposta de um paciente a um tratamento. Temos que entender todo o condomínio de espécies que vivem nesse corpo. Essa é uma revolução na forma em que olhamos para nós mesmos. Mas este procedimento, o transplante fecal, é muito novo e não possuí regulamentação. É considerado experimental em todos os países em que está sendo aplicado. No Brasil já temos pacientes que receberam esse tratamento, com diferentes resultados.
Mas como uma ducha de água fria sobre as promessas que traz esta nova tecnologia, na quinta feira da semana passada, o FDA (Food and Drug Administration, equivalente à nossa ANVISA nos EUA) publicou um relatório em que dois pacientes receberam transplantes fecais que causaram a sua infecção com microrganismos resistentes a múltiplas drogas. Isso é, pacientes imunossuprimidos foram infectados com bactérias que não morrem com antibióticos. E estas vieram de transplantes inoculados por médicos em seus intestinos. Estes microrganismos se espalharam pelo corpo dos pacientes e um deles morreu.
Existem maneiras de testar, antes do transplante, se uma amostra de fezes possuí ou não bactérias que não morrem com antibióticos. Mas pelo visto, estes testes não estavam sendo feitos. Assim, apesar de o transplante fecal ser uma nova tecnologia com potencial para tratar pacientes com infecções que não respondem à técnicas tradicionais, as regras para os cuidados que as equipes médicas devem tomar antes do tratamento ainda estão frouxas. A reação do FDA parece que será a suspensão de testes clínicos cadastrados, segundo matéria do NY Times. No Brasil, é necessário obter autorização da ANVISA para realizar o procedimento. Mas a última ainda não se manifestou a respeito.
Este é um bom exemplo de uma tecnologia bastante promissora que vai sofrer um revés por conta da realização de experimentos que não deveriam ter sido feitos. Era óbvio que as amostras deveriam ser testadas para bactérias resistentes a drogas. Mas apesar de provavelmente a grande maioria dos cientistas concordarem comigo, nós não temos uma ferramenta boa para impedir os experimentos antes que dê tudo errado.
Mesmo que ANVISA e FDA criem regras mais duras em seus respectivos territórios, fatalmente cairemos no segundo problema, onde territórios com regras frouxas se tornam “paraísos” para charlatões e seus pacientes mal informados ou até desesperados por esperança. Essa já é a realidade para outras tecnologias como transplantes de células tronco.
Referências
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Eduardo Sequerra
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