Histórias em quadrinhos, artigos científicos e muita especulação são os ingredientes dessa edição da coluna de Eduardo Sequerra
Caros, hoje vou me permitir um bocado de especulação. Mas a história é legal e vale uma boa ficção científica. No mínimo uma história pra contar na mesa de bar com os amigos. E ela chegou para mim graças a uma história em quadrinhos. Meu amigo Leo Morita uma vez me chamou a atenção para uma história do Monstro do Pântano. A história original descrevia um cientista que após um acidente em seu laboratório, cai dentro do pântano junto com diversas substâncias químicas e se torna o Monstro. Tal história recebeu uma nova interpretação, mais psicodélica, por um dos maiores autores de quadrinhos, o Alan Moore. Nesta, o cientista e as substâncias químicas caem no pântano. Mas ele morre e o pântano absorve sua mente. Sua mente dentro do pântano se torna o Monstro do Pântano!
Até aí tudo bem, é só uma história. Mas no episódio em que o Moore está descrevendo a transferência da mente do cientista para o pântano, chamado “Lição de Anatomia”, ele se refere a um artigo de verdade. Nesse artigo publicado em 1962 no Journal of Neuropsychiatry, McConnell condicionou planárias (um verme de corpo mole pertencente ao filo dos Platelmintos) a associarem um estímulo luminoso com um choque. Após alguns treinamentos, a planária passava então a responder com maior intensidade ao estímulo luminoso sozinho, esperando o choque. Só que aí então ele cortou essa planárias em pedacinhos e deu para outras planárias comerem (daí o canibalismo, entre planárias). As planárias canibais então foram também treinadas a associar a luz ao choque. No entanto, as planárias canibais aprenderam esta associação em menos treinamentos! Alguma coisa dentro de seus companheiros canibalizados havia sido transferida para seus neurônios e os ajudaram a aprender.
Mas o que diabos estava acontecendo nesses neurônios? Será que esta história é possível? Bom, me adianto dizendo que não tenho certeza de nada. Mas dá pra especular um bocado. No final dos anos 90 foi descrita uma nova classe de pequenos RNAs que não codificam proteínas, os microRNAs. Estes RNAs ativam a degradação de RNAs mensageiros, inibindo assim a tradução de genes. Por terem sequências específicas, cada microRNA regula um ou poucos genes específicos. Eles estão presentes em todos os animais, como nós. Acontece que no animal em que esta classe de moléculas foi descoberta, o nematódeo C elegans, uma das formas de expressar esses RNAs é dá-los para o animal comer. Isso quer dizer que estes RNAs aguentam o ambiente do trato digestivo e são absorvidos pelas células. Assim, seria possível dar a ele microRNAs produzidos por um neurônio fazendo memória. E então, de alguma forma, que ninguém sabe qual, essa molécula vai parar no neurônio de quem a comeu. Pra fechar nosso raciocínio especulativo então, a planária treinada pode ter produzido um microRNA em seus neurônios que depois foi absorvido pelo organismo da planária canibal. E esses neurônios tiveram alguns genes silenciados como se estivessem aprendendo alguma coisa.
Em 1964, Hartry e colaboradores replicaram os achados de McConnell e adicionaram outras planárias que foram somente expostas ao estímulo luminoso ou manipuladas pelos experimentadores também foram dadas como comida para planárias canibais. E a conclusão destes autores foi que os três grupos facilitaram o aprendizado da associação da luz ao choque. Assim, não é bem um efeito de transferência de memória e sim um aumento da plasticidade em relação àquelas que canibalizaram planárias sem experiência. Mas a memória pode ser qualquer uma para ajudar a canibal a aprender.
Essa história foi então ressuscitada este ano por Bédécarrats e colaboradores. Neste trabalho, ele treinaram uma lesma do mar, a Aplysia, a associar o choque em sua cauda a um estímulo de toque em seu sifão, o que causa uma contração mais vigorosa do sifão. Estes autores então, extraíram o RNA do sistema nervoso das Aplysias treinadas e injetaram na circulação de outras Aplysias nunca treinadas. O RNA dos animais treinados, e não o de animais sem treino, foi capaz de induzir o aumento na contração do sifão. Mas ainda, eles mostraram que se ao mesmo tempo que recebem este RNA estas Aplysias tiverem a metilação do DNA inibida, um mecanismo essencial para a regulação da expressão gênica pela informação ambiental, o efeito some. Assim, de alguma maneira os RNAs produzidos no sistema nervoso durante o treino leva a uma maior sensibilidade ao estímulo, mesmo quando transportados para um animal não treinado.
Bom, é muito importante dizer aqui que isto está longe de ser uma transferência de memórias. Acho que seria mais correto falar que os RNAs estão facilitando a vida dos neurônios para serem ativados da próxima vez que o estímulo vier. Mas o fato dessa facilitação poder ser transferida entre indivíduos é incrível.
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Eduardo Sequerra
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