Experiências recentes de mídia independente retratam os povos indígenas do Brasil desde a perspectiva de comunicadores indígenas.
(Luan Matheus Santana)
Quando a sociedade moderna atribui aos territórios indígenas, quilombolas ou periféricos um caráter de atraso, eles tentam dizer que esses são espaços onde o “desenvolvimento” não chegou e o “progresso” não se estabeleceu. Nessa visão (colonial), a elaboração de tecnologias (seja ela qual for) nesses lugares é praticamente impossível. Isso porque, no mundo moderno/colonial, a tecnologia é, por um lado, reduzida aos aparatos técnicos – operacionais e, por outro, colocada como elemento capaz de gerar progresso e soluções para o conjunto dos problemas sociais, muitas vezes ignorando suas implicações sociais, políticas e culturais.
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Feenberg faz uma crítica a essa visão, que ele de tecnocêntrica dominante. Ele argumenta que a tecnologia não é neutra nem inevitável, mas sim uma construção social, com diferentes formas de uso e organização que podem ser escolhidas dependendo das relações de poder e interesses econômicos envolvidos.
Por isso, pensar a tecnologia para além do tecnocentrismo, mais que uma forma de contraposição a essa racionalidade tecnológica que impera nas sociedades modernas, é uma forma de perceber toda a amplitude e potencialidade das tecnologias, sejam elas digitais ou não.
A percepção de Vieira Pinto acerca da tecnologia é central para compreender a complexidade desse processo. Ele aborda três dimensões centrais: a primeira seria a técnica, essencialmente; a segunda seria a função social, o papel que a tecnologia exerce na sociedade; e, por fim, a terceira seria as motivações das grandes transformações.
Costa e Silva, ao destrinchar o conceito de tecnologia trabalhado por Vieira Pinto, aponta quatro significados centrais, onde a tecnologia aparece como lugar da técnica, como sinônimo de técnica, como um conjunto de todas as técnicas e como ideologização. Nos interessa nesse momento pensar a partir da terceira acepção apresentada por Costa e Silva, uma vez que interpretação do conceito tecnologia como o conjunto das técnicas reconhece a diversidade de concepções e projetos tecnológicos na realidade, inclusive nas regiões consideradas menos desenvolvidas. Nesse caso, há uma postura de respeito à multiplicidade de projetos tecnológicos existentes.
Existem, portanto, na perspectiva apresentada por Vieira Pinto uma multiplicidade tecnológica sendo produzida em diversos lugares e de diversas formas. Parte dessas tecnologias, sobretudo as hegemônicas, foram e ainda são utilizadas como objetos de dominação em diversos campos da vida social. Outras, atuam como forma de resistência e re-existência.
No que diz respeito às tecnologias digitais, um fator merece atenção especial: a construção do imaginário social. Esse é um processo que se espraia desde os usos tecnológicos até a contextos mais amplos de construção do poder e hegemonia. Bronislaw Baczko acreditava que, para a conformação das relações de poder, “o domínio do imaginário e do simbólico é um importante lugar estratégico”.
Aqui compreendemos o imaginário social como um “conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade”.
Bronislaw Baczko assinala que é por meio do imaginário que se podem atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades esboçam suas identidades e objetivos, detectam seus inimigos e, ainda, organizam seu passado, presente e futuro. O imaginário social expressa-se por ideologias e utopias, e também por símbolos, alegorias, rituais e mitos.
Tracemos um paralelo: a “história oficial” conta que a primeira imagem sobre os indígenas do Brasil foi feita por Vasco Fernandes, com data estimada de 1505, em destaque no altar maior da catedral de Viseu, Portugal. Um indígena Tupinambá e um dos Reis Magos que prestam homenagem ao menino Jesus. Na época do Renascimento, Europeus eram retratados em um mundo católico-cristão, onde enxergavam os seres que povoavam o “Novo Mundo” a partir das lendas e crenças medievais, das antigas culturas greco-romano e do imaginário renascentista.
Assim, durante o longo processo de colonização dos povos originários de Abya Yala (América do Sul), por exemplo, a perspectiva europeia foi se construindo um imaginário de “sociedades primitivas” a partir de seus próprios conceitos de civilização. Eleva-se uma ideia de bárbaro, que se adaptaria aos interesses dos colonizadores. Legitimaria a “guerra justa”, a escravização do indígena ou conversão.
Essas imagens foram criadas e difundidas de diferentes formas, pela colonização ou pela colonialidade. Um imaginário que se perpetua, colocando ainda os povos indígenas como povos primitivos, povos do atraso. Sua religião vira superstição; a cultura vira folclore; a arte é artesanato; os seres humanos são recursos humanos, parafraseando Galeano.
Assim, como povo primitivo esse é também um povo sem tecnologia. É esse imaginário que, acreditamos ser possível de ser desconstruído pela prática cotidiana dos povos que resistiram ao processo colonial e, ainda hoje, resistem ao processo da colonialidade. Uma desconstrução que perpassa por diferentes estágios mas que, atualmente, tem encontrado no uso e apropriação das tecnologias digitais um outro caminho possível de reescrever suas histórias e imaginários.
Seja na agricultura e manejo do solo, seja no conhecimento de ervas medicinais, seja nas construções de habitações sustentáveis. Os povos originários sempre desenvolveram tecnologias que, no tempo histórico, tiveram uma contribuição social importante em seus territórios e para além deles. Nos dias de hoje, em um contexto social cada vez mais digitalizado, pensar as relações dos povos indígenas com as tecnologias digitais ganhou outros contornos.
Experiências recentes como a Mídia Indígena, veículo de mídia independente que retrata a luta, história e memória dos povos indígenas do Brasil desde a perspectiva de comunicadores indígenas, são expoentes de uma realidade social cada vez mais presente nos territórios originários. Ocupando as telas e redes, os povos indígenas reconstroem o imaginário social retratando a realidade indígena como ela de fato é. Não se trata mais de uma história contada pelas lentes do outro, mas uma história contada pelos próprios indígenas.
Nesse mesmo caminho, além da Mídia Indígena, outras iniciativas como o Portal de Saberes, Laklãnõ/Xokleng, Rádio Yandê e a Rede Wayuri se apropriam das tecnologias digitais e atribuem a elas um novo sentido, que redesenham o papel das redes sociais e atuam para preservar e divulgar a cultura indígena, mantendo viva suas ancestralidade, identidade, história e memória. Assim, somando seus conhecimentos ancestrais aos conhecimentos técnicos das novas tecnologias da comunicação e informação, essas iniciativas ancestralizam seus modos de fazer comunicação e jornalismo na construção de um imaginário social outro.
Leia outro texto do mesmo autor: As três ondas coloniais no Jornalismo Brasileiro
Luan Santana é jornalista e educomunicador popular pela Plataforma Ocorre Diário. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí e doutorando em comunicação pela Universidade Federal do Ceará.
A coluna Diversidades tem a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Luan Matheus Santana
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