Tecnohumano: o confisco da potência humana Ciência no Debate das Ideias

quarta-feira, 11 junho 2025
A ilusão de mutações no humano, produzidas por tecnologias de intervenção biomédica ou comunicacional, é mais um sintoma da construção de desejos na contemporaneidade.

Uma análise crítica do transumanismo e suas promessas tecnocientíficas, questionando a ilusão de mutações humanas e a recusa da vulnerabilidade ontológica

(Alipio DeSousa Filho)

A fantasia que tecnologias avançadas podem transformar a espécie humana não é nova, mas encontrou no transumanismo contemporâneo uma forma sistemática e influente de pensamento. O que é chamado de transumanismo é um conjunto de ideias que aposta na superação das limitações biológicas humanas por meio da engenharia genética, implantes neurais de nanotecnologia e outros artefatos tecnocientíficos. Seus defensores sugerem que a evolução biológica humana será substituída por uma evolução tecnológica planejada e dirigida. Tal horizonte é frequentemente enunciado em termos messiânicos, como uma nova condição ontológica da humanidade – ou mesmo como sua superação.

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Essa crença aumentou desde o surgimento e aplicação em larga escala da inteligência artificial. Na opinião popular, produzida e estimulada pela mídia, acredita-se até mesmo em mutações futuras próximas na espécie humana, que seriam provocadas pelas relações do ser humano com as máquinas, dispositivos de informação e comunicação com linguagem digital. Como numa fábula, começa-se a falar que, em futuro próximo, a espécie abrigará seres humanos com crânios aumentados, cabeças encurvadas, olhos enormes, braços encurtados etc. pelo uso contínuo de celulares, tablets, computadores. Mas, como aqueles que estudam biologia sabem, tipos de mutações que não são transmitidas de uma geração para outra na espécie humana, em curto período de tempo, pois mutações dessa natureza requer milhares ou dezenas de milhares de anos para ser transmitidas.

Proponho aqui, neste brevíssimo texto, a partir de uma ontologia construcionista crítica-radical que a realidade humano-social é historicamente construída, relacional e contingente, sendo moldada pelas práticas culturais, instituições e saberes historicamente situados.

Nos últimos anos, o discurso transumanista tem se difundido com notável intensidade, tanto nos ambientes acadêmicos quanto na opinião comum, como promessa de superação da humanidade como a conhecemos: um salto evolutivo dirigido artificialmente, que substituirá os ritmos biológicos, culturais e históricos por um projeto tecnocientífico de transformação radical do humano. Entre outros resultados dessa promessa, estaria o chamado “aperfeiçoamento moral”. O “moral enhancement” é apresentado por autores como Thomas Douglas, professor da Universidade de Oxford, como resultado de práticas de biotecnologias que serviriam para “atenuar biomedicamente” (por meios biomédicos, incluindo cirurgias) “emoções contramorais”, alternativa que permitiria eliminar “disposições de condutas que sejam moralmente condenáveis”, podendo evitar comportamentos de “indivíduos antissociais”.

Contudo, essa visão, longe de ser neutra, carrega consigo um imaginário político e moral que merece crítica. Contra esse imaginário determinista tecnológico, é preciso opor a crítica construcionista radical, tal como eu a defendo, pois o ser humano não é um produto biológico-tecnológico que se pode modificar ao bel prazer de decisores, governantes ou cientistas, e para fins que estão apenas em seus pensamentos, intenções e projetos. O ser do ser humano é uma construção em culturas e sociedades, na história, em linguagens e em cujo processo são produzidas subjetividades e singularidades, contando, entre outros de seus domínios, com a vida psíquica, com e sem controle das máquinas do poder. A realidade das subjetividades e singularidades constitui o ser humano como ser imprevisível, incontrolável e em muitos aspectos insondável, e para o melhor e para o pior, o que depende de sua socialização na sociedade.

Pelo que se torna como ser de cultura, de linguagem, o ser humano dota-se da capacidade de agência, torna-se capaz de fazer escolhas, e dota-se também da capacidade de autodeterminar-se a cuidados de si transformadores, em ressubjetivações críticas, em construções de autonomia. Agência perseguida pelos poderes sociais, e em todas as épocas, pois poderes que conservam a ilusão de possuírem os meios para tornar cada um dos seres humanos robôs bem programados, controláveis. Não é por outra razão que pensadores como Espinosa, Michel Foucault, Antonio Negri, Michel Maffesoli, entre outros, denunciam o poder (em todas as suas formas) como o confisco da potência da agência dos indivíduos, massas, multidões. Confisco imaginário, como assinalou Antonio Negri, pois somente produz efeitos reais na medida em que esses mesmos indivíduos, massas e multidões o consintam e acreditem na realidade do poder deles separado.

Proponho aqui, neste brevíssimo texto, a partir de uma ontologia construcionista crítica-radical que a realidade humano-social é historicamente construída, relacional e contingente, sendo moldada pelas práticas culturais, instituições e saberes historicamente situados. Perspectiva ontológica que recusa qualquer essencialismo biológico ou tecnológico, e que situa a fantasia do tecnohumano, humano-máquina, mutações no humano por uso de tecnologias de informação e comunicação e anseios de transformações morais e subjetivas por intervenções de tecnologias biomédicas como sintoma da atmosfera social contemporânea que joga seres humanos na fantasia de escapar das condições concretas da existência – que pouco se faz para modificá-las – do que num horizonte legítimo de emancipação e transformações do social. Convém assinalar, não se trata, de minha parte,  de negar invenções no campo dos cuidados da saúde humana que conta com importantes avanços.

Todavia, não se pode deixar de observar também que o imaginário e as fantasias dele decorrentes de um tecnohumano estão imersos em desejos, medos e modelos sociais que pouco têm de espontâneos e neutros, embora apresente-se como cheia de boas intenções. Assentados, em grande medida, na  recusa da vulnerabilidade ontológica humana e na ilusão de um ser humano imune às contingências da existência, esses anseios e fantasias ilusórias alimentam um imaginário que expressa e fortalece tendências contemporâneas de adesão à servidão voluntária (La Boétie), à dominação, por aceitação do que chega como panaceia tecnocientífica para a solução de problemas humanos, para cujo enfrentamento e soluções é exigível a agência humana em deliberações ético-morais-políticas para alterações das condições da existência humana em nossas sociedades. Muitas delas que não dependem de tecnologias de nenhum tipo, a não ser o pensamento e a palavra, ferramentas humanas poderosas, únicas que podem permitir a construção de novas categorias epistêmicas para o viver humano, que se tornem os novos conceitos a governar a realidade social, fundamentos para a abolição de instituições que, até aqui, o que produzem é, para amplas maiorias, o “sentimento de inferioridade ontológica” (Fisher) e o sofrimento vivido como inevitável, mas inteiramente evitável fossem outras as estruturas, instituições, relações e moralidades existentes em nossas sociedades.

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Alipio DeSousa Filho é professor e diretor do Instituto Humanitas UFRN

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