Súplica cearense Coluna do Jucá

quinta-feira, 14 dezembro 2017

A escassez de água levou muitos municípios cearenses a decretarem emergência e, a severidade da estiagem dos últimos anos já figura como uma das piores da história.

De acordo a resenha hídrica disponibilizada (07.12.17) pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) do estado do Ceará, a capacidade dos reservatórios cearenses, os quais são formados por 155 açudes – distribuídos em 12 bacias hidrográficas -, é de 7,79%. Desses açudes, o Castanhão – maior reservatório do estado – encontra-se com apenas 3.0% da sua capacidade. A escassez de água levou muitos municípios cearenses a decretaram situação de emergência e, embora essa situação não seja inédita, tampouco incomum, a severidade da estiagem dos últimos anos já figura como uma das piores da história.

Açude Castanhão, localizado no leito do Rio Jaguaribe, Ceará

A história da seca no Ceará eternizou-se por meio de um livro – hoje, tido como uma das maiores obras da literatura brasileira-, “O Quinze” de Rachel de Queiroz, que figura como memorável, não apenas por ter se tornado uma referência para a ficção nordestina – um romance regionalista-, ou pela riqueza de detalhes, ou ainda pela linguagem simples. Antes de tudo, “O Quinze” retratou o Nordeste, em especial, a seca de 1915, com um realismo e uma clareza, semelhantes a “uma fotografia” que retrata fidedignamente um momento.

Quem quer compreender um pouco das nuances da Caatinga – bioma tão peculiar do Nordeste brasileiro-, deve certamente ler a maior obra de Rachel de Queiroz. Em várias partes do livro, a flora e a fauna da região são postos em destaque, como nos trechos a seguir: “(…) só algum juazeiro ainda escapou à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis mostrando os cotes dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas brancas”. Ou ainda, “(…) E se não fosse uma raiz de mucunã arrancada aqui e além, ou alguma batata-branca que a seca ensina a comer, teriam ficado todos pelo caminho, nessas estradas de barro ruivo, semeado de pedras, por onde eles trotavam trôpegos se arrastando e gemendo (…)”.

Certamente, um dos trechos mais marcantes, emocionantes e tristes da obra é a morte do garoto Josias, filho dos personagens Chico Bento e Cordulina. O desespero – decorrente da fome – levou-o a comer uma variedade muito venenosa de mandioca crua e morrer envenenado na estrada. É de conhecimento dos moradores do sertão que algumas plantas, bem como suas partes (raízes e folhas, por exemplo) são tóxicas para os animais, dentre os quais se inclui o homem. Atualmente, sabe-se que as plantas pertencentes ao gênero Manihot (Euphorbiaceae), como a manipeba, contêm substâncias conhecidas como glicosídeos cianogênicos, cuja ingestão e consequente hidrólise por enzimas (β-glucosidades), liberam uma molécula – o cianeto – altamente tóxica devido ao seu efeito inibitório sobre uma enzima chave do processo respiratório – a citocromo oxidase. Transcrevo aqui essa parte da história: “(…) Ele então foi ficando pra trás, entrou na roça, escavacou com um pauzinho o chão, numa cova, onde um tronco de manipeba apontava; dificultosamente, ferindo-se, conseguiu topar com uma raiz, cortada ao meio pela enxada. Batendo de encontro a uma pedra, trabalhosamente, arrancou-lhe mais ou menos a casca; e enterrou os dentes na polpa amarela, fibrosa, que já ia virando pau num dos extremos. Avidamente roeu todo o pedaço amargo e seco, até que os dentes rangeram na fibra dura. Aí atirou no chão a ponta da raiz, limpou a boca na barra da manga e passou ligeiramente pela abertura da cerca. (…) Ele contou a história da manipeba. Cordulina levantou-se, assustada: — Meu filho! Pelo amor de Deus! Você comeu mandioca crua. Assombrado, e sentindo a dor mais forte, o pequeno começou a chorar. Cordulina, aturdida, topando no madeirame do chão, andou até o terreiro limpo, procurando na terra varrida umas folhas para um chá. Depois, caindo em si, foi às trouxas, e do fundo de uma lata tirou um punhado ressequido de sene (…)”.

A história da seca no Ceará também se eternizou por meio da canção “Súplica Cearense” (Gordurinha & Nelinho), um dos inúmeros sucessos interpretados por Luiz Gonzaga. Nos versos dessa linda canção, a crença e a fé do homem do campo por dias melhores – dias de chuva – são o ponto alto como nos versos: “Oh! Deus / perdoe este pobre coitado / que de joelhos rezou um bocado / pedindo pra chuva cair sem parar (…)/ Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno / desculpe eu pedir para acabar com o inferno / que sempre queimou o meu Ceará”.

Por sua vez, “o porta-voz do sertão”, o cearense Antônio Gonçalves da Silva, popularmente conhecido como Patativa do Assaré, fez um poema lindíssimo “A Triste Partida”, que virou um enorme sucesso na voz do gonzagão. Como dizem os versos do poeta “Setembro passou / Outubro e Novembro / já tamo em Dezembro / meu Deus / que é de nós / meu Deus / meu Deus / assim fala o pobre / do seco Nordeste / com medo da peste / da fome feroz / ai, ai, ai, ai (…)”.

Certamente, as condições no campo melhoraram bastante, mesmo que longe do ideal. Alguns programas sociais (tão criticados) têm amenizado as consequências nefastas da seca e contribuído para essa melhoria. O que ainda precisa melhorar sobremaneira é a consciência das pessoas quanto ao uso racional desse bem tão precioso, uma vez que o desperdício ainda é muito grande. Falar do bioma Caatinga – do sertão – é falar da seca sim, mas também da esperança, a qual sempre se renova quando os primeiros pingos de chuva começam a cair, o que trazem consigo felicidade e bonança. O reservatório Castanhão passa por um longo e difícil período de baixo aporte de água, bem como todo o estado e grande parte do Nordeste. Como dizem os versos do Patativa do Assaré, os meses de setembro, outubro e novembro passaram e, em breve, terá sido dezembro. Em breve, mais um ano virá e, com ele, a expectativa de um bom inverno. Enquanto o ano não termina, a literatura, a poesia, a música, a ciência – todos – nos inspiram e nos fortalecem nessa longa espera.

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Thiago Jucá

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