Soprando café com canela olhando o céu de Suely Diversidades

segunda-feira, 31 agosto 2020
Rostos de cidadãs e cidadãos brasileiros racializados colorindo as imagens do cinema, historicamente protagonizadas por pessoas brancas.

Estética da solidão da mãe nordestina e negra no cinema brasileiro

Por Allana Amancio

Onze anos de cinema brasileiro separam um patriarcado parado no tempo de Iguatu (CE) de uma São Félix (BA) onde crianças negras morrem cedo. As personagens de Hermila, de O céu de Suely (2006, Karim Ainouz), e Margarida, de Café com canela (2017, Glenda Nicácio e Ary Rosa), apresentam mulheres com as subjetividades atravessadas pela maternidade, num movimento de deslocamento e reencontro do próprio lugar no mundo.

Os filmes se iniciam com lembranças das personagens enchendo as primeiras cenas de vídeos caseiros. Vemos uma Hermila sorridente, correndo pela areia com o namorado Mateus, enquanto anuncia que engravidou num domingo de manhã, após ouvir uma série de promessas apaixonadas. Paulo, marido de Margarida, filma vários detalhes da paisagem cotidiana e da esposa com as visitas durante a festa de aniversário do filho.

Logo, o saudosismo é penetrado pela realidade. Hermila tinha fugido de casa com seu namorado para São Paulo, em busca de uma vida nova. Teve, no entanto, de retornar para a cidade natal após o nascimento de Mateusinho. Numa mudança de planos individuais do marido, ele optou por mudar de endereço e sumir, ao invés de retornar também para o interior de onde saíram.

Margarida, ao perder seu filho Paulinho, isola-se do mundo externo, e independente da passagem do tempo, já somando quase duas décadas, continua assolada pelas memórias de dor. Parou de trabalhar, o casamento chegou ao fim. Sua rotina quase masoquista de perambular pelos cômodos empoeirados da casa continua até Violeta desmanchar a rigidez de seu casulo e reapresentá-la ao mundo.

O Paulinho da ficção de Glenda e Ary tem milhares de nomes e rostos na vida real da sociedade brasileira. O Atlas da Violência de 2017 anunciou que a maior parte das vítimas das 61.283 mortes violentas ocorridas no Brasil em 2016 foi de homens negros, representando 74,5% do número, e tais mortes violentas só aumentam, apresentando um crescimento de 10,2% entre 2005 e 2015. Na semana passada, foi publicada a versão 2020 desse mesmo Atlas que só confirma a situação: 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras; em 10 anos, a taxa de assassinatos de negros cresceu 33,1%; para cada 1 não negro morto, matam-se 2,7 negros.

Paralelamente, a personagem de Hermila pode ser um dos reflexos do retrato brasileiro de abandono paterno normatizado. Matheusinho foi registrado com o nome do pai, apesar de rejeitado meses depois. A realidade do abandono paterno pode ser ainda mais crua na vida real fora do cinema; de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, dados do Censo Escolar de 2012, revelaram cerca de 5,5 milhões de crianças brasileiras sequer possuindo o nome do pai na certidão de nascimento.

Allana Amancio. Foto: Arquivo pessoal.

O casal foi vislumbrado pela infinidade de sonhos vendidos por São Paulo; quando a corda da paixão arrebentou, quem caiu no chão foi Hermila. Desempregada, sozinha, de volta ao interior, ela experimenta o destino das mulheres livres e corajosas que tentam fugir da pobreza, mas terminam humilhadas como medida corretiva.

Sua mãe nem seu pai estão na narrativa; aparentemente, Hermila foi criada pela avó e pela tia. Onde estaria a mãe dela? E o pai? Morreram quando a filha era criança? Ou partiram, como ela própria e o ex-marido? A desolação de Hermila sozinha no mundo poderia ter encontrado desfechos menos dolorosos numa orientação e devido acolhimento para mulheres periféricas e marginalizadas.

Novamente, a realidade é ainda mais sensível. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira 2019, 63% dos lares comandados por mulheres negras sem cônjuge e com filhos de até 14 anos, vivem abaixo da linha da pobreza, medida por US$ 5,5 per capita ao dia, enquanto o índice para as mulheres brancas com filhos e chefes de família é de 39,6%.

Esbarrar nessas personagens faz pensar na necessidade urgente do feminismo contemporâneo, e demais movimentos sociais, em não ignorar a importância da interseccionalidade de raça, classe, nação, gênero e sexualidade. Foi por conta dessa urgência que intelectuais negras desenvolveram o conceito, iniciado pela jurista Kimberlé Crenshaw no âmbito da Teoria Crítica de Raça ao perceber que múltiplas situações de preconceito e opressões estruturais estão sobrepostas em determinados grupos.

Aqui no Brasil, tal discussão foi impulsionada recentemente por Carla Akotirene, em seu livro de 2018, O que é interseccionalidade?, quinto título para a Coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro.

Incomodada com o engessamento no marxismo da grade curricular do curso de Serviço social em Salvador e a colonialidade na dependência de pensadores da Europa e Estados Unidos, decidiu exigir com as colegas discussões teóricas na sala de aula visando uma formação antirracista e antissexista para as estudantes, a fim de suprir as demandas da população negra e feminina atendidas pelas assistentes sociais.

Sua trajetória acadêmica passou a ser marcada pelas contribuições dos pensamentos pós coloniais e decoloniais, valorizando a América Latina e a África como continentes produtores de conhecimento, a partir da experiência de inseparabilidade das estruturas do racismo, do capitalismo e do cisheteropatriarcado.

O envelhecimento precoce na face de Hermila após ser expulsa de casa, e sua amiga Georgina, ambas no início dos 20 anos de idade.

Envelhecendo numa dor silenciosa

A subjetividade de ambas as personagens escolhidas foram construídas pelo silêncio como expressão da dor e do vazio existencial que carregam no peso do corpo. Silêncio esse contrário ao sentido de invisibilidade ou ausência de tratamento atencioso a personagens com poucas falas. No silêncio, encontra-se também o momento íntimo de paciência para ouvir o próximo, mesmo que esse não se expresse por palavras. O momento do espectador criar vínculos, observar a personagem e perceber o sentimento no olhar, a dinâmica nas relações.

Ao construir Hermila e Margarida, o silêncio é ressignificado para um exercício de alteridade. Pelos lábios cerrados, torna-se possível adentrar a mente de Margarida, ouvindo seus pensamentos, suas memórias na cena. Na ausência de falas de Hermila, percebemos a ferida da rejeição coletiva em seu olhar, sendo maltratada pelo conservadorismo ao rifar o próprio corpo.

Hermila é expulsa à empurrões do mercado por um trabalhador ao tentar vender suas rifas. A vendedora de uma loja de roupas a ameaça e tenta agredi-la por ter vendido uma para seu cunhado. Quando sua avó toma conhecimento do plano, antes de expulsá-la de casa, bate em seu rosto repetidas vezes e a obriga a pedir desculpas pela humilhação de ter uma neta disposta a oferecer sexo por dinheiro.

Akotirene explica que a interseccionalidade também exige recorte geopolítico. Observa a periferia, a marginalização, o abandono, o esquecimento localizados no ponto cego de reivindicações das avenidas identitárias sem cruzamentos. Teria espaço para Margarida e Hermila no feminismo branco e de classe média, onde as cadeiras para sentar à mesa de discussões nunca estiveram disponíveis para mulheres negras e/ou periféricas? Dificilmente, enquanto os discursos dos feminismos vistos como subalternos demoram até chegarem em suas personagens principais em situação de vulnerabilidade social.

A interseccionalidade, ao mesmo tempo em que alimenta a consciência para a autoafirmação de indivíduos historicamente marginalizados, também expõe as lacunas nas construções de políticas públicas para diferentes grupos da sociedade civil. Expõe um Estado higienista que só começou a dar atenção às demandas heterogêneas desses grupos após o levante das avenidas identitárias reivindicando ações afirmativas, enquanto lembra esses mesmo grupos que o identitarismo não pode esvaziar a luta anticapitalista.

Encarar as marcas do tempo nas faces em primeiro plano das personagens também é significativo para o trabalho de observação das subjetividades. O cabelo grisalho crescendo, as rugas na pele de Margarida. As olheiras de cansaço, os traços de envelhecimento precoce de uma Hermila aparentando bem mais idade do que tem, devido ao amadurecimento forçado ao transitar na pobreza por um lugar mal visto para mulheres sozinhas, tomam a tela de Karim Ainouz.

Duas frases de Akotirene remetem fortemente ao grito preso de Margarida e ao poder de ação de Violeta: “Velhice é como a raça é vivida; e classe-raça cruza gerações, envelhecendo mulheres negras antes do tempo. (…) Há mais de 150 anos as mulheres negras invocam a interseccionalidade e a solidariedade política entre os Outros”, sendo os Outros todos os indivíduos que fogem às normatividades de branquitude, capitalismo e cisheteropatriarcado.

Para além, um mural na parede da sala de estar de Margarida chama atenção. As fotopinturas sem rostos ou com rostos borrados de seus antepassados, contrastam com o presente rosto de Margarida e de Violeta nas cenas, mesclando-se num determinado momento aos rostos em close-up de vários cidadãos e cidadãs baianas. A negritude nos rostos espalhados pelo Brasil estão em destaque, numa crítica intencional de Glenda Nicácio e Ary Rosa à branquitude do cinema.

Tal crítica evidente sobre a branquitude dominando todos os espaços de realização audiovisual retorna num diálogo entre Violeta e Margarida. Ao ver Violeta limpar a poeira de sua televisão, após iniciarem juntas a faxina que a casa tanto precisa, Margarida responde porque gosta tanto de cinema: “Um bom filme, Violeta, é aquele que mostra os podres, as limitações, as angústias que todo mundo tem. Um bom filme, antes de tudo, ele quer te experimentar e quer ser experimentado.” Diante da resposta empolgada de Margarida, Violeta, que não vai ao cinema, lança: “Quando eu era criança, eu ficava me perguntando, será que da mesma forma que a gente consegue ver os artistas lá na tela, eles também conseguem ver a gente?”, questionando-a mais uma vez.

Glenda Nicácio transformou a dúvida de Violeta em realidade: Aqui, a mulher negra e nordestina está na tela. Esse filme foi o segundo longa-metragem de ficção do cinema brasileiro, em 33 anos, a ser dirigido por uma mulher negra, após Amor Maldito, de Adélia Sampaio, em 1984.

Mural de fotopinturas com rostos sem identificações na sala de estar de Margarida.

Desenlace para o futuro

Violeta passa a deixar uma rosa de amor diária na porta de Margarida até ela se sentir à vontade. Após descobrir onde Margarida mora por acaso e sua situação, ela insistirá numa reaproximação com a mulher que a ajudou quando ficou órfã de pai e mãe durante a infância.

Após alguns dias, as rosas vermelhas mantidas em jarros e copos com água, acrescentam vida à cozinha antes sépia e um sorriso tímido no rosto de Margarida. Tais rosas cortadas da roseira levam Margarida, ainda que inconsciente, a lidar com a morte por outro ponto de vista, o do processo inevitável da natureza, inclusive quando cruelmente antecipado pela ação humana com a ceifagem.

A rosa não chega quando a avó de Violeta morre. O elo de cumplicidade entre as duas se fortalece, após a jovem experienciar um atravessamento da morte em sua vida ainda mais impactante que a do vizinho e mais consciente do que as da infância. Margarida realiza o movimento contrário; finalmente sai da toca e coloca uma rosa vermelha na porta de Violeta como consolo, anunciando que o trabalho de formiguinha da aluna em florescer carinho deu certo.

Divididas entre partida e permanência, o suporte que Margarida encontrou em Violeta marcou a diferença nos desfechos sentimentais. Apesar de Georgina ser uma amiga sempre presente, dispondo sua casa como refúgio todas as vezes que Hermila se deparou com o julgamento moral, ela não pôde dar o acalanto que essa necessitava, muito menos o ex-namorado ainda apaixonado, porque seu lugar não era ali.

Hermila teve de deixar o filho com a avó e a tia para seguir a procura da nova vida que tanto almejava, levando consigo somente a solidão no peito, enquanto Margarida realiza a ruptura com o passado a partir do reencontro com Violeta, forçando-lhe a quebra do silêncio, e reinicia a sua sorrindo no mesmo lugar. O fugir de si e o fugir da cidade são uma tentativa de fugir da opressão que permeia Hermila, assim como o isolamento de Margarida por medo da sociedade, foi uma rota possível de impedir ser vitimizada pela crueldade do  mundo externo uma outra vez.

A trilha sonora tem papel ativo na narrativa expondo os sentimentos das personagens. Os batuques organizados por Mateus Aleluia alimentam a tensão de Margarida, seja diante das visões lhe visitando no quarto, seja quando tenta banhar-se em sonho nas águas de mamãe Oxum. O instrumental no momento de esvaziar o quarto do filho é tão potente para a ancestralidade de Margarida que é acompanhado de uma coreografia, concedendo a força necessária para extravasar pelo corpo a dor do trauma invisível em sua carne de mãe negra em luto.

Os forrós ajudam Hermila a esquecer momentaneamente o conservadorismo à sua volta, funcionando como uma fuga momentânea para a dor. Os poucos momentos de diversão que ela encontrava para explorar em Iguatu era quando ia dançar no forró ou cantar no karaokê, com as letras das músicas selecionadas descrevendo todas as emoções envolvidas nas cenas, de acordo com os acontecimentos se desenrolando.

Mais especificamente, a música da lembrança de Hermila apaixonada conta: “Que bom seria ter seu amor outra vez. Você me fez sonhar, trouxe a fé que eu perdi, que nem eu mesma sei porque. Eu só quero amar você, tudo o que eu tenho, meu bem, é você, sem seu carinho eu não sei viver. Volte logo, meu amor.” Já quando Hermila reencontra João, o antigo namorado na cidade, a trilha revela a paixão ainda aquecida por ele: “Coração para que se apaixonou por alguém que nunca te amou, alguém que nunca vai te amar”.

Após ter certeza do abandono de seu marido, ela canta no karaokê com Georgina: “Eu não vou mais chorar, eu não vou mais chorar, sofro até te esquecer, mas eu não vou chorar, eu não vou mais chorar, você só me fez sofrer”. Quando começa a se rifar, o som expõe: “Amor vou te deixar mas não vou chorar, vai doer em mim, sempre que lembrar”; após apanhar e ser expulsa da casa da avó: “Não era bem o que eu queria ouvir, e me disse decidida, saia da minha vida, que aquilo era loucura, era absurdo…”, nos braços de Georgina.

Há mais de uma década, Suely partiu sozinha de ônibus atrás de uma nova vida possível no outro extremo do país, num céu azul de esperança contrário ao seu emocional. 11 anos depois, com Violeta, uma Margarida alegre, reiniciou a sua aprendendo a andar de bicicleta, num movimento radical contra o apagamento.

Conclusão

A interseccionalidade abre caminho para o combate à invisibilidade dada às mulheres racializadas e periféricas, seja pela mídia hegemônica, seja pelos grupos sociais ainda marcados por elitismo e sexismo, ligando o megafone para espalhar suas vozes frequentemente silenciadas nos debates da esfera pública.

Como Akotirene, Margarida também realizou o movimento de cruzar as águas do oceano atlântico, enquanto lócus de opressões cruzadas, com Violeta sendo seu suporte de mulher negra ajudando outra, para aprender a lidar com a interrupção precoce da vida de seu filho. Parafraseando Gloria Anzaldúa em sua carta às mulheres de cor escritoras do terceiro mundo:  terceiro-mundistas, uni-vos através da interseccionalidade.

Portanto, torna-se extremamente necessário o movimento de mulheres negras em diáspora, movimentando com elas as estruturas da sociedade, haja vista, apesar de toda a intelectualidade produzida pelas mesmas, acadêmicas ou não, elas ainda continuam na base mais atingida da pirâmide social. Logo, levar para o cotidiano o exercício de alteridade proposto pelos filmes é uma forma de potencializar o eco do diálogo de mulheres latinas, indígenas, africanas e asiáticas, com suas vozes historicamente invalidadas pelo colonialismo.

Ignorar a urgência do debate da interseccionalidade é alimentar a perpetuação da exploração de mulheres nordestinas costureiras em jornadas de trabalho análogas à escravidão, de mulheres negras enquanto mãe solos, chefes de família e trabalhadoras com jornadas triplas, de mulheres indígenas enterrando seus filhos executados pelas milícias ligadas ao agronegócio. É fechar os olhos para a banalização da violência contra pessoas pobres no encarceramento em massa e dos homicídios de jovens racializados enterrados precocemente por essas mulheres, enquanto os números de homicídios violentos da população negra só aumentam nas estatísticas brasileiras, apesar de todos os esforços das lutas antirracistas para modificar tal herança portuguesa.

Referências

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Leia a coluna anterior: O SUStentamento da saúde na pandemia

“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

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