Sobrevivendo no inferno: sobre músicas que denunciam realidades que se perpetuam Diversidades

segunda-feira, 29 março 2021
Estante Racionais. Foto: Klaus-Mitteldorf.

Pesquisadora reflete sobre como o modelo genocida da organização social brasileira foi sempre fortemente sentido na periferia e narrado pela música produzida nas quebradas

Por Beatriz Pires*

O modelo genocida da organização social brasileira, que para muitos só veio a fazer sentido neste ensaio para o fim do mundo que estamos vivendo, já vem sendo percebido pela periferia há muito tempo, através de uma série de marcas sociais que refletem um país fundado em modelos escravistas.

A prova disso, o ano era 1997 e os Racionais MC ‘S já haviam conquistado um lugar de importância dentro do cenário do hip-hop nacional com o disco “Sobrevivendo no inferno”, que carregava letras e uma estética inconfundível que denunciavam a cruel realidade de um Brasil subalternizado. Assim, depois de algumas obras e de bons anos de existência, o grupo trouxe para sociedade brasileira uma criação cultural e política que abriu espaço para tantas outras manifestações.

O repertório que causou impacto em vários nichos da arte, desde a literatura, até outras manifestações como cinema e teatro, trouxe canções que colocaram a tona a realidade periférica do Brasil. Não à toa, no ano de 2018 o disco acabou entrando na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp (Universidade de Campinas), fazendo a favela ser, pela primeira vez, contemplada pela academia.

Beatriz Pires. Foto: arquivo pessoal.

Como colocado no livro “Sobrevivendo no Inferno”, que traz reflexões sobre a obra musical e suas letras:

Para o sociólogo Tiaraju D’Andrea, mais do que simplesmente representar o cotidiano periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele define como ‘sujeito periférico’: o morador da periferia que assume a sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. O termo ‘periferia’ passaria a designar não apenas ‘pobreza e violência’ – como até então ocorria no discurso oficial e acadêmico-, mas também ‘cultura e potência’, confrontando a lógica genocida do Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer. (OLIVEIRA, 2018, p.16).

Pois bem! Mais de 20 anos depois, agora no ano de 2021, as músicas dos Racionais continuam a causar essas mesmas sensações. Não apenas pela qualidade e potência da coletânea, mas principalmente pela perpetuação de uma realidade periférica problemática e que continua sendo esquecida pelo poder público.

Assim, através de uma obra icônica percebemos que ferramenta de revolução, denúncia, conquista e de contra hegemonia,a música também pode ser desempenhando uma infinidade de papéis. E isso também diz muito sobre o poder da língua, das palavras e da poesia. Neste caso, em específico a cultura hip-hop, se coloca não apenas com uma aula de histórias que explica a vida das classes subalternizadas brasileiras de forma atemporal, mas funciona como um mantra para quem se enxerga nela e entrega ao indivíduo protagonista das narrativas ali descritas um sentimento de pertencimento e apropriação da sua própria imagem.

Como explicado por Oliveira (2018), muito da obra parte da construção de uma identidade formada a partir de um rompimento com o discurso conciliatório de valorização da mestiçagem. Vale acrescentar aqui que, para Abdias do Nascimento (1978), essa suposta democracia racial é a metáfora perfeita para se entender o racismo no Brasil: institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo e difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país, mas nem tão óbvio e nem legalizado.

E é com essa riqueza de narrrativas e levantando pautas que antes estavam presas apenas nas bolhas dos movimentos sociais,  que a obra continua propondo novas formas de sobrevivência ao povo favelado.

Sobrevivendo no inferno é a imagem mais bem acabada de uma sociedade genocida que se tornou humanamente inviável, e uma tentativa radical, esteticamente brilhante, de sobreviver a ela. (OLIVEIRA, 2018, p.33)

Dos Racionais MC’s, de 1997 para o ano de 2021. A história se repete, mas a luta (e a música) também!

*Beatriz Pires é formada em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do grupo Descolonizando a Comunicação (desCom).

Referências:

RACIONAIS. Sobrevivendo no Inferno. 2018.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro, 1978.

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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.

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