Em uma sociedade de racismo estrutural e estruturante, a resistência tem sido, ao longo dos séculos, um modo de vida
Por Alice Andrade
“Fique em casa”. Essa é a frase que mais tem ecoado em nossas rotinas nos últimos meses. Com a pandemia da COVID-19, o isolamento social é a medida mais eficaz a fim de evitar a propagação da doença, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Ficar em casa, portanto, é estar em segurança.
Será que é assim para todos? Em relação ao vírus, certamente. Mas em uma sociedade racista, estar em casa pode ser um risco de morte para pessoas negras.
Na casa do adolescente João Pedro Mattos, há 72 marcas de tiros nas paredes. E uma em seu corpo, que lhe tirou a vida prematuramente. Qual é a cor da pele das crianças e adolescentes que podem ter certeza de que um dia serão adultas? Até quando a pele que não é alva será alvo da vulnerabilidade de um Estado que tem a necropolítica como modo de operação?
A necropolítica, de acordo com o filósofo camaronense Achille Mbembe, é um sistema de poder à serviço da hegemonia que permite ao Estado decidir quem irá morrer e de que forma. Mbembe parte da ideia de biopolítica, de Michel Foucault, que é o controle sobre o domínio da vida. No Brasil, a necropolítica alia-se ao preconceito de classe e ao racismo estrutural e estruturante para exterminar vidas negras como parte de um pacto imperativo de genocídio que acontece desde a escravização.
Segundo Levi Kaique Ferreira, em texto publicado no Instagram (@levikaiquef), sob o manto do combate à criminalidade, a necropolítica se estabelece em comunidades periféricas e administra as vidas negras de maneira soberana: “(…) Manter populações vulneráveis sob gerenciamento necropolítico acaba por colocar o Estado em controle do medo de submissão dessas populações que, muito numerosas, em levantes contra a força governamental, representariam ameaça”.
João Pedro foi mais uma vítima desse gerenciamento de vidas que destitui o povo negro do direito à existência. “Viver com medo de morrer” é um sentimento experienciado por milhares de pessoas ao redor do mundo diante dos tristes e crescentes números de óbitos por coronavírus, mas que é constante ao longo da vida das pessoas negras.
Ontem foi João Pedro, 14. Antes de ontem, Ágatha Félix, 8. Jenifer Silene Gomes, 11. Kauan Peixoto, 12. Ketellen Gomes, 05. Kauê Santos, 12. Os nomes são muitos e seguem sendo multiplicados. Os números são tristes: a cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil, de acordo com o Mapa da Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Dos 885 mortos em ações policiais, 711 eram negros ou pardos, segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 75 são negras.
Cada vez que matam um de nossos jovens, arrancam uma semente que começava a germinar frutos de sonhos e futuro. Nosso povo sofre sem direito a esmorecer. Nesse contexto de violência e genocídio, não há como falar em sonhos interrompidos sem citar Marielle Franco, mulher negra cuja luta se tornou legado nos corações e mentes de quem, assim como ela, sonha com uma sociedade mais justa para pessoas negras, periféricas, mulheres, LGBTQIA+ e outros grupos histórica e socialmente subalternizados. O Atlântico ainda carrega os rastros de sangue do nosso sequestro, e a terra firme do Brasil segue sendo solo onde caímos mortos por balas “perdidas” que sempre acham os corpos de mesma cor.
Fui uma criança negra que cresceu em bairro periférico. Lembro-me bem da paisagem pela janela da kombi, mesmo veículo em que estava Ágatha antes de ser assassinada. O caminho era curto. Apenas uma subida, tempo bem menor do que se a caminhada fosse a pé. Todo início de mês, minha vizinha levava Juliana, minha amiga de infância, e eu para fazer as compras no mercado.
Ir até lá era um evento esperado por nós duas, pois o ganho era certo. Às vezes fazíamos escolhas mais imediatistas: um pirulito, uma pipoca, uns docinhos. Outras eram mais pensadas: um macarrão instantâneo para comer no fim de semana, ou um pedacinho do queijo de manteiga para o outro dia.
O que será que passou pela mente de Ágatha ao olhar a janela da kombi? Seus últimos minutos, que velaram uma vida inteira ainda a vir pela frente, embalaram seus pensamentos sobre algo que apenas ela soube o que era, mas foi tirado por quem deveria protegê-la.
Por isso e por tudo, perdão, Ágatha.
“Vou estudar. Vou ter um emprego, ter dinheiro e fazer compras assim”, pensava eu naquele dia ao olhar pela janela, sem saber que tantos anos depois uma outra criança negra seria sufocada para sempre naquele mesmo espaço.
Por isso e por tudo, perdão, Jenifer.
A cada passo, um sonho. Kauan estava indo comprar um lanche e, provavelmente, pensando nos seus. A adulta negra que sou vive sonhos da criança negra que fui. Entrei na universidade. Fiz amigos, tive conquistas, sigo traçando planos. Mas nada disso lhe foi útil, Kauan. Nós tínhamos tanto em comum, de repente fomos separados pelo tempo que lhe foi roubado. Nenhum emprego, títulos ou honras fizeram sentido diante do que aconteceu a você.
Por isso e por tudo, perdão, Kauan.
É difícil exigir do povo negro que resista quando sequer recebe condições para que simplesmente exista. Ketellen foi uma vida singular tornada estatística por ter um fenótipo que é alvo na sociedade brasileira. E pensar que ela só queria chegar à escola.
Por isso e por tudo, perdão, Ketellen.
O genocídio que me tira a humanidade em muitos espaços lhe tirou, literalmente, a vida. Chegar em segurança à própria casa é privilégio que não lhe pertenceu. A necropolítica no Brasil tem cor, classe e gênero.
Por isso e por tudo, perdão, Kauê.
Levaram sua vida, e até mesmo seu corpo. Interditaram seu futuro. Foi o sistema que confiscou seus sonhos. Sua travessia tornou-se nossa, em uma constelação de pessoas que enxergam em você mais uma estrela que nos guiará por justiça.
Por isso e por tudo, perdão, João Pedro.
Esses assassinatos seguem doendo no povo preto, por isso gritamos: vidas negras importam. Achille Mbembe recentemente escreveu um artigo publicado pela Analyse Opinion Critique (AOP), cujo título em português é “O direito universal à respiração”. No texto, reflete sobre o impasse planetário causado pela COVID-19 e de como os “pulmões da Terra” estão sendo danificados pelos modos de vida humanos, pois “nunca aprendemos a viver com o que é vivo”. Em um trecho, ele diz:
“De fato, em que consiste a respiração senão na absorção de oxigênio e na rejeição de dióxido de carbono, ou na troca dinâmica entre sangue e tecidos? Mas ao ritmo com que segue a vida na Terra, e tendo em conta o que ainda sobeja da riqueza do planeta, estaremos assim tão longe do momento em que haverá mais dióxido de carbono para inalar do que oxigênio a inspirar? Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia”.
“Não consigo respirar”. “Não me mate”. As últimas frases de George Floyd, 40, asfixiado por um policial durante bárbara abordagem, latejam em nossas almas como um eterno dejavú. Em sociedades racistas, quem possui o direito de respirar?
Com o escritor indígena Ailton Krenak (2019), em Ideias para adiar o fim do mundo, aprendemos que quando sentirmos que o céu está ficando muito baixo, “é só empurrá-lo e respirar” (p.28). Os nossos povos originários, assim como a população negra vinda de África, têm a resistência como modo de vida. Será utopia? Parece-me que o peso do céu talvez seja mais leve do que corpos que nos asfixiam sem piedade. Talvez essa tarefa seja ainda menos dolorida do que as balas que nos retiram a possibilidade de continuidade.
Para o povo negro, histórica e contemporaneamente, sem resistência não há sequer existência. O Movimento Negro Brasileiro, em seus diversos desdobramentos, tem lutado para garantir nossos direitos básicos. Há inúmeras pessoas nas redes e nas ruas comprometidas com a luta antirracista e com a premissa de que a preservação das vidas negras é fundamental para o alcance de uma sociedade mais justa, democrática e igualitária. E precisamos de ainda mais pessoas para somar nessa luta.
Um olhar para as redes sociais na internet, por exemplo, nos leva a enxergar pessoas como Winnie Bueno, Levi Kaique Ferreira, Nailah Neves, Rene Silva, Murilo Araújo, Nátaly Neri, Bia Ferreira, Andreza Delgado, Keilla Villa Flor, Roger Cipó, Gabi Oliveira, AD Junior, Ale Santos e diversos outros nomes que inspiram e co-movem (movem coletivamente) pessoas negras para a necessidade da partilha, do aprendizado, do autoconhecimento, da resistência, da mobilização e, sinteticamente, do aquilombamento, como fonte de força para empurrarmos o céu e conseguirmos respirar.
A gente resiste, pois a nossa luta é tão grande quanto nossa dor. E essa resistência vai se reinventando de muitas formas, com as ferramentas que conseguimos incorporar às lutas ao longo do tempo. Seja através da poesia, da prosa, da música, fotografia, literatura, ações sociais, audiovisual ou outras estratégias, seguimos na luta por uma sociedade que nos permita viver e ser. Isso porque, nas palavras da escritora Conceição Evaristo, eles combinaram de nos matar, mas “a gente combinamos de não morrer”.
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Leia a coluna anterior: Para a ciência ganhar, as pesquisadoras racializadas precisam deixar de perder
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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