Apesar disso, os envenenamentos ofídicos ainda representam um sério problema de Saúde Pública. A natureza incompleta e deficiente dos dados levantados não reflete a realidade dessa questão
Em março deste ano, inúmeras agências internacionais de notícias, dentre as quais a emissora inglesa BBC, noticiaram a morte de Abu Zarin Hussin, mundialmente famoso por ser um domador de serpentes. O motivo da morte? Morreu envenenado ao ser picado por uma cobra peçonhenta. Para muitos pode até parecer um caso isolado ou exclusivo de locais longínquos, mas um artigo publicado por pesquisadores brasileiros no final de 2017 na prestigiada revista Toxicon mostra que se engana quem pensa assim. Segundo esse artigo, a Organização Mundial de Saúde estima que 2,5 milhões de pessoas no mundo são envenenadas por ano ao serem picadas por cobras, o que ocasiona a morte de aproximadamente 100 mil pessoas. Para se ter uma ideia, só no Brasil foram registrados 27.261 casos no ano de 2014.
Já ao se considerar os dados epidemiológicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde, o estado do Ceará teve no ano de 2016, 557 notificações registradas de acidentes causados por serpentes peçonhentas, enquanto o estado do Rio Grande do Norte teve 269. De acordo com essas notificações, ambos os estados apresentaram uma média aproximada de 47 e 23 acidentes por mês, respectivamente. De todas essas notificações, três evoluíram para óbito em terras cearenses, enquanto que nas terras potiguares ocorreu um caso. Todas essas notificações de acidentes foram atribuídas às serpentes dos gêneros Bothrops, Crotalus, Micrurus e Lachesis. Outro detalhe que chama atenção é que em ambos os estados, mais de 80% dos casos referem-se ao gênero Bothrops, o qual é composto por inúmeras espécies de cobras popularmente conhecidas como jararacas.
Apesar da baixa letalidade relacionada aos acidentes ofídicos, esses dados são alarmantes haja vista dois motivos principais, quais sejam: 1) os envenenamentos ofídicos representam um sério problema de Saúde Pública, cujos dados, muitas vezes, não refletem a realidade, dado a natureza incompleta e deficiente das informações levantadas. Por isso, a subnotificação é uma realidade frequente, principalmente entre os moradores de áreas rurais que, muitas vezes têm dificuldade de acesso aos serviços de saúde. A realidade dessas subnotificações relaciona-se, inclusive, com a não identificação da serpente responsável pelo acidente; e 2) o acelerado processo de perda de habitat no qual esses animais se encontram, sobretudo, relacionado ao desmatamento e ao crescimento das cidades que tende a aumentar o número de acidentes.
A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a considerar os acidentes ofídicos como uma Doença Tropical Negligenciada (DTN) com vistas a dar maior visibilidade, além de estimular a elaboração de políticas públicas visando diminuir os problemas decorrentes do envenenamento causado pelas serpentes. Vale lembrar que a soroterapia é o tratamento recomendado além de ser o mais eficaz em casos de acidentes ofídicos, embora muitos municípios sofram com a falta do soro antiofídico. Em 2016, a título de exemplo, o Ministério da Saúde (MS) suspendeu temporariamente a distribuição de soros antivenenos para o Ceará, o que de acordo com a Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) comprometeu, na época, o estoque mínimo e a distribuição para os demais municípios cearenses. Cenários como esse são críticos, visto que o quadro clínico do envenenamento ofídico tende a se agravar devido às longas distâncias existentes entre os locais de ocorrência do acidente e o atendimento médico.
Como alternativa a essas adversidades e ainda considerando a urgência dos casos com vistas a minimizar, por exemplo, os danos locais decorrentes desses acidentes, o homem do campo tem lançado mão de estratégias relacionadas ao uso de plantas medicinais. Apesar dos poucos relatos científicos de tais propriedades antiofídicas e mais ainda das substâncias responsáveis, é fantástico imaginar que algumas plantas medicinais possam ser utilizadas com tal finalidade.
No imaginário popular as serpentes peçonhentas são tidas, por muitos, como grandes ameaças à nossa espécie – a Homo sapiens – dado que causam a morte de milhares deles todos os anos. Mas é importante ressaltar que cada espécie biológica é única e que carrega consigo um valor inestimável para biodiversidade do planeta. Isso por si só, já é uma condição irrefutável para preservá-las. Essa questão pode ser exemplificada, considerando-se o arsenal de biomoléculas únicas que cada espécie carrega consigo e que deixa de existir com a sua extinção.
Um dos casos mais emblemáticos do potencial inestimável de uma biomolécula associado à biodiversidade vem do Captopril, o medicamento até hoje mais utilizado no mundo para o controle da hipertensão, cujo desenvolvimento ocorreu a partir de uma substância encontrada no veneno da jararaca brasileira (Bothropos jararaca). E a cereja do bolo dessa história é que quem conduziu esse estudo pioneiro no mundo foi um brasileiro, o professor Sérgio Henrique Ferreira, cuja formação remete ao papel imprescindível do professor Mauricio Rocha e Silva.
Não é preciso muito esforço cognitivo para concluir que o Captopril – assim como inúmeras drogas derivadas dos venenos de outras serpentes e de outros animais peçonhentos – salvou e continua a salvar a vida de milhares de pessoas em todo o mundo, mesmo existindo outras drogas que desempenhem função similar e de maneira até melhor. Enquanto para os navegadores do século XV o mantra era navegar é preciso, urge para os navegadores do mundo digital do século XXI o seguinte mantra: preservar é preciso.
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Leia o texto anterior: A extinção é para sempre, embora a ficção queira nos fazer acreditar que não, do mesmo autor.
Thiago Jucá
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