Estudos indicam que essa células só começam a aparecer na 22ª semana de gestação
Este texto argumenta que por conta de o córtex cerebral de embriões de humanos não contar com astrócitos nos primeiros dois trimestres de gestação, muito provavelmente esses embriões não são conscientes ou percebem dor. Isso porque os astrócitos são essenciais para regular o tempo da atividade neuronal e o fluxo de nutrientes para neurônios mais ativos.
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Estamos aqui na coluna discutindo sobre a ciência que envolve os embriões e o aborto. Um dos argumentos daqueles que são contra o aborto seria de que o embrião é um ser consciente, que recebe um estímulo nocivo e o traduz na percepção de dor. Mas uma característica importante dos primeiros circuitos neurais tem que ser levada em conta, os neurônios nascem antes das células de glia.
No começo do desenvolvimento do nosso sistema nervoso ele é apenas um tubo de células. Esse tubo se forma entre a terceira e a quarta semana gestacional. Nesse estágio, o tubo é formado unicamente de células capazes de se diferenciar em todos os tipos celulares do sistema nervoso, as células tronco neurais. Ao longo das próximas semanas, essas células se dividem muitas vezes, aumentando muito o seu número. Lá no cérebro, na décima semana gestacional, em uma estrutura essencial para a nossa consciência e percepção de dor – o córtex cerebral – uma parte dessas células se dividindo passa a gerar não só outras células com capacidade de se dividir, mas também neurônios.
O córtex cerebral é formado por seis ondas de nascimento de neurônios, cada uma gerando um tipo diferente desses comunicadores. Essas seis ondas se estendem até as vinte e nove semanas gestacionais. À medida que nascem, cada um dos neurônios tem que migrar, encontrar o seu sítio de diferenciação, estender prolongamentos até os parceiros com quem quer falar (esses prolongamentos podem ter muitos centímetros e chegar a metros em um adulto) e formar as suas sinapses. Muitos desses fenômenos ainda estão acontecendo quando nascemos, mas obviamente muita coisa já está conectada e funcionando também.
Então, podemos falar que uma vez que a periferia esteja conectada ao cérebro e um número básico de neurônios já esteja em seu lugar, o embrião já tem capacidade de perceber o mundo ao seu redor? Incluindo a percepção de dor? Bom, acontece que os neurônios não trabalham sozinhos para fazer sinapses. É verdade que são eles que transmitem os sinais elétricos ao longo dos seus corpinhos e liberam neurotransmissores na fenda sináptica.
Mas pensem comigo, uma coisa muito importante na transmissão nervosa é o tempo. Quando o neurônio libera neurotransmissores na fenda, essas moléculas estimulam receptores na membrana celular de um segundo neurônio. Esses receptores podem ser canais iônicos ou ativarem a abertura de canais iônicos que alteram a polaridade da membrana, podendo ou não levar a um impulso nervoso, o potencial de ação. O intervalo entre uma primeira liberação de neurotransmissores na sinapse e uma segunda pode ser de milissegundos. Então, é muito importante que alguém tire os neurotransmissores da primeira liberação rapidamente. Se não, a segunda liberação vai gerar uma resposta mais fraca no segundo neurônio, seus receptores já estarão ocupados.
É aí que entram os astrócitos. Os astrócitos transportam neurotransmissores da fenda sináptica para o seu interior, abrindo caminho para uma segunda liberação. Além disso, os astrócitos formam uma conexão entre os neurônios e os vasos sanguíneos. Se os neurônios daquela região estão trabalhando muito, os astrócitos mandam sinais que fazem os vasos dilatar. Mais trabalho precisa de mais sangue, mais comida. Sendo assim, faz sentido dizer que um circuito de neurônios anterior à diferenciação dos astrócitos tem problemas para resolver intervalos muito rápidos entre sinais e se trabalhar muito morre de fome.
Quando nascem os astrócitos do córtex cerebral? No começo dos anos 2000, três queridos colegas, Leonardo de Azevedo, Cecilia Hedin-Pereira e Roberto Lent (entre outros), estudaram cérebros de embriões que passaram por abortos espontâneos, por abortos indicados por médicos ou de prematuros que morreram após o nascimento, com o consentimento da família, claro.
Nesses cérebros, eles marcaram com anticorpos algumas proteínas tipicamente produzidas por astrócitos. Observaram que alguns poucos astrócitos começam a aparecer na vigésima segunda semana e somente na trigésima semana gestacional existe um número razoável destes no córtex. Curiosamente, os astrócitos encontrados na trigésima nona semana gestacional povoam preferencialmente as regiões do córtex onde estão os neurônios nascidos na primeira onda, e, portanto, amadurecendo a mais tempo.
Assim, ao fim da gestação (na trigésima nona semana considera-se que os fetos chegaram a termo) muitos neurônios corticais, sobretudo os que nasceram por último, não têm todos os seus parceiros para regular o tempo de suas sinapses e o aporte de nutrientes.
De fato, o registro eletroencefalográfico de bebês prematuros no terceiro trimestre mostra que eles apresentam pequenos períodos de atividade, seguidos de grandes intervalos de inatividade. Esses intervalos vão diminuindo ao longo do terceiro trimestre, até chegarmos a um registro completamente sem inatividade ao nascer. Isso é, muito provavelmente neurônios de fetos mais jovens não conseguem sustentar a atividade por muito tempo, por falta dos seus parceiros astrócitos.
O que os dados descrevendo a diferenciação de astrócitos sugerem é que o refinamento espaço-temporal da atividade neural necessário para um embrião perceber dor ou ter um mínimo de consciência, só é possível ao longo do terceiro trimestre. Assim, o argumento de que o aborto nos dois primeiros trimestres gera dor consciente nos embriões não é sustentado por esses dados. Nos próximos textos seguirei discutindo outros aspectos do desenvolvimento do cérebro de embriões de humanos.
Leia o texto anterior: Política sobre o aborto: qual é o papel da ciência?
Para saber mais: deAzevedo, L. C., Fallet, C., Moura-Neto, V., Daumas-Duport, C., Hedin-Pereira, C. and Lent, R. (2003). Cortical radial glial cells in human fetuses: depth-correlated transformation into astrocytes. J. Neurobiol. 55, 288–298
Eduardo Sequerra é professor do Instituto de Cérebro da UFRN (ICe-UFRN)
Eduardo Sequerra
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