As técnicas de reprototipagem podem oferecer soluções de menor esforço para se inovar
“Uma ideia é como um ponto: não tem dimensão.
Somando pontos temos uma linha, uma dimensão, um Norte.
Linhas formam planos, onde repousam as palavras e surgem os Canvas.
Espetá-los com a ‘Força’ pode fazer brotar algo tridimensional… Quem sabe, um protótipo?
A Inovação, jovem Padawan, é a única capaz de fazer este último andar por conta própria.”
“A Inovação pelo prisma geométrico de um Jedi”
– Contos do livro que ainda não escrevi.
Com essa peça lírica quis evidenciar que uma ideia não tem valor mensurável, que uma palavra vale mais do que mil ideias, uma imagem do que mil palavras (essa é velha), um protótipo do que mil imagens, e uma inovação do que mil protótipos. Até à dimensão do plano, da imagem, do Canvas, tudo está parado. Sair dessa segunda dimensão, que é a mesma do Word, Excel, Powerpoint, Canvanizer, Miro e correlatos, é o maior desafio empreendedor. Costumo dizer que se você consegue desenhar, consegue executar. Se conseguir prototipar, conseguirá inovar. O protótipo quebra as dimensões estáticas, sendo o único capaz de saltar abismos e, em forma de MVP (mínimo produto viável), adentrar o Mercado. Não é à toa que se diz que “o papel engole tudo”. Talvez por isto, prototipar seja o elemento mais difícil de se alcançar neste prisma geométrico inovador, imagine modificar o que já estava pronto, o produto?
Existe todo um arcabouço sobre prototipação dominado por excelentes designers profissionais, que trabalham coisas como graus de fidelidade (baixa, alta e média), tipos (Role Prototypes, Look & Feel, Implementation, Integration etc.) ou variação de contextualidade (parcial, total, geral ou restrita), pra ficar em três aspectos. Se o desejo é por abordagens fundamentais ancoradas em definições rigorosas de como fazer protótipos, recomendo consultar o colega André Grilo, assistir a inenarrável série da Netflix Abstract (pretendo “maratoná-la” pela 3ª vez), ou buscar por material na www. Entretanto, sob o prisma invertido da TRIZ, minha filosofia para criação, comecei a analisar a “morte” de P2S2 (produtos, processos, serviços, startups). Buscando por boas ideias, inspiro-me sempre no mundo natural. Fêmeas de polvo, aranha e outros animais morrem para servir de alimento às crias. Comecei a pensar nisso como um processo que descrevi como transmutação organizacional. Na tentativa de adaptar este conceito ao P2S2, cogitei que quando o produto “morresse” ele não deveria desaparecer, mas evoluir da seguinte forma: aproveitar sua história pregressa – uma experiência que não pode ser desprezada -, eliminar falhas anteriores e derivar um produto inédito, como se agora ele passasse a servir de protótipo para o novo. Ao invés de utilizar a transmutação, muito distante do linguajar empreendedor, e para tentar explicar que não falo de modelagem do zero, mas a partir do que está rodando no Mercado, como no caso da mamãe polvo, pensei nos termos “reprototipagem”, “reprototipação”, “retroprototipagem” e “retroprototipação”, e, para minha surpresa, a www retornou “zero” resultados na pesquisa, embora ache que estes termos devam existir em algum documento, porém inacessíveis aos buscadores.
Nesta aula condensada (AC), não pretendo mostrar o “como se faz” de protótipos, mas como trabalhar os produtos como protótipos para si mesmos – a reprototipagem -, através de cinco arranjos, e recriar os produtos para que possam andar novamente por conta própria.
Duas formas de pensar criativamente
Form Follows Function. Célebre frase proferida pelo influente arquiteto proto-moderno Louis Sullivan, “a forma segue a função”, retrata o seguinte (Wikipédia): “No contexto das profissões ligadas ao projeto, a forma segue a função parece expressar um claro bom senso. Ou seja, para atender as necessidades gerais da sociedade, o projetista deve configurar a forma a partir da função específica do objeto a ser produzido. De uma certa maneira, a visão funcionalista pode libertar a forma de uma miopia projetual, mas pode também, em uma análise mais atenta, ser um princípio problemático. (…) No início desse processo o funcionalismo foi muito importante para afastar conceitos antiquados sobre a forma e desenvolver uma estética compatível com a indústria em geral”. Mas tem um lado ruim, “as formas foram tão refinadas e purificadas que acabaram sendo ‘desumanizadas’; toda identificação de individualidade fora despida dos objetos”.
Function Follows Form. Em 1992, o trio de psicólogos S. M. Smith, T. B. Ward and R. A. Finke, documentaram no livro “The Creative Cognition Approach” o fenômeno “Function Follows Form”, ou “A função segue a forma”. Eles reconheceram que as pessoas utilizam duas direções quando pensando criativamente: do problema para a solução (P -> S) ou da solução para o problema (S -> P). A forma de Sullivan, “crie a função depois modele a carcaça”, por nós bastante conhecida, tem o formato P -> S, pois parte da definição estrita do problema e depois recobre-o com soluções. Não habitual é fazer o shape e depois preenchê-lo, como o sugerido pelo trio, indo da solução ao problema, S -> P. Chamarei o modo Sullivan de direto, por ser convencional, e o do trio por inverso, menos usual. Form Follows Function ganha o apelido FFFd e Function Follows Form a sigla FFFi.
Onde entram as FFF na reprototipagem?
“O que as Follows têm a ver com reprototipação e inovação, GBB San? Onde você pretende chegar, guru da aleatoriedade?”. Como bom iconoclasta de mindsets forjados pela educação orientada ao “problem first, solution second”, pinço o que escrevi em O futuro das profissões, onde sugeri o formato FFFi como alternativa à inovação: “Ei boy: arruma aí um problema pra solução que tenho aqui! Teríamos o caminho inverso: ‘Function Follows Form’ (…) Ache um problema pro meu carro autônomo, pro meu detector de temperatura mastigável, para minha bolsa que muda de cor quando estou com raiva etc. etc. etc. Perguntar ao contrário levaria a questões inquietantes, fomentaria novos caminhos, criando problemas para os quais a IA ainda não entende, pois não a programamos para partir de soluções e encontrar problemas”. A IA ainda não “saca” muito bem o sentido S -> P.
O modo de criar invertido, FFFi, exigiria uma quebra de inércia psicológica dantesca, uma inversão de mindset, mas abriria um novo espaço de possibilidades para o processo de criação. Já que tecnologia praticamente virtualizou nossa dificuldade em conceber protótipos, pode-se, investindo zero bitcoins, desenvolver templates de plataformas, simular processos em várias linguagens, utilizar apps de código aberto para modelagem tridimensional de produtos desde o esboço à edição de vídeo (Blender), elaborar vídeos animados para simulação de serviços (Powtoon) e, a um custo um pouquinho maior, comprar uma impressora 3D ou pagar por este serviço, sem falar em protótipos de baixa fidelidade feitos de papel, isopor, madeira e afins. A facilidade de prototipação viabilizou a FFFi: você pode montar a solução (a “casca”, a entrega) de forma rápida e barata, depois trabalhar o “miolo”, o motor que vai dentro. Tomando-se por base os rearranjos aqui apresentados, parte-se do que já está feito, de um produto em decadência, e encontra-se uma nova aplicação. Da solução para o problema. S -> P! Malassombrado, né não?
Isso não seria viável há uns 20 anos, dado o custo de se pensar algo e não se ter, ou não se saber como desenvolver, a tecnologia para rechear a forma. Exemplos não faltam. Em 1952, Alastair Pilkington concebeu a ideia do vidro temperado. Em 1954 foi construída uma planta piloto e a primeira patente britânica (769.692) foi publicada. No entanto, foram precisos sete anos e mais de £ 7 milhões (£ 80 milhões em valores atuais, de acordo com a Pilkington), para se desenvolver todo o processo. Hoje achamos o vidro temperado – que evitou muitas cabeças de serem degoladas em acidentes de carro -, uma banalidade. Se tivessem podido prototipar antes… O vidro temperado, uma solução tipo FFFd, previsto inicialmente para o problema automotivo, é hoje utilizado em várias áreas que envolvam segurança e resistência, já que é cinco vezes mais resistente a choques térmicos do que o vidro comum, transformando-se numa FFFi: “tenho esta solução, onde aplicá-la?”.
Reprototipagem: quando o produto volta a ser protótipo.
Vimos que o FFFi de pensar tem início na solução. Observe que o P2S2 moribundo já foi, ou ainda é, uma solução. Que tal esquecê-lo definitivamente como produto e usá-lo como protótipo? Esquisito, mas o custo é baixo, pois você já o tem em mãos. Exigirá, claro, uma mudança emocional. Não é fácil olhar para “seu filhote” e pensar modificá-lo, aplicando o caminho inverso ao que é sempre apresentado por aqui. Ao invés de: ideia -> protótipo -> MVP -> produto, a reprototipagem aqui defendida sugere: produto -> MVP -> protótipo -> ideia. Chose de fou, diriam os franceses! Não falo em desconstrução, mas em rearranjo. Um downgrade.
Cinco técnicas para reprototipar produtos
Utilizando a redução aos princípios, isolei cinco técnicas para rearranjar os produtos (agora protótipos), capazes de recriar P2S2 (produtos, processos, serviços, startups) Top das Galáxias, com potencial para promover a disrupção.
Subtração. Produtos inovadores, frequentemente, podem ter algo removido que se pensava essencial em sua concepção. A redução dos “lanchinhos”, a eliminação das azeitonas dos drinks e a remoção das capas dos tradicionais headphones (que criou os fones de ouvido embutidos), pouparam milhões de dólares para as companhias aéreas. A subtração de um polímero do marcador permanente criou marcador apagável por borracha. Olhe para seu produto, agora um protótipo, e pense no que pode retirar. Tenho certeza de que encontrará algo em excesso.
Divisão. Muitos produtos têm componentes separados e colocados longe do dispositivo principal para tornarem-se mais “usáveis”, os quais foram inicialmente pensados, ou mesmo concebidos, juntos. Equipamentos com controle remoto (quem pensava em colocar o controle do condicionador de ar longe do aparelho, mesmo que por fio?), impressora com cartuchos removíveis etc. Para essa técnica, imagine, por exemplo, conduzir um brainstorming com duas equipes tentando “quebrar” um P2S2 do Mercado, inclusive da concorrência, em duas partes? Bizarro!
Multiplicação. Nesse rearranjo, pense em replicar parte de um P2S2 (protótipo) e utilizá-lo de maneira diferente no mesmo P2S2. Bicicletas para crianças utilizam rodinhas laterais para ajudar nas primeiras pedaladas. Uma bike tem duas rodas principais em linha; nesse caso, foram acrescentadas duas rodas em paralelo a um produto acabado. A função picture-in-picture, inicialmente nas TVs, migrou para smartphones e nos permite assistir cenas na tela principal e saber o que se passa em outra. Pense, por exemplo, em adaptar mini-P2S2 ao produto original para atuarem em conjunto.
Unificação de tarefas. Em vários produtos, tarefas inicialmente pensadas descorrelacionadas, foram colocadas juntas. “Meias eliminadoras de odor” aquecem os pés ao mesmo tempo que atuam como desodorizadores. Umidificadores faciais com proteção solar. Veículos que trafegam com propaganda. Biscoito com recheio de sorvete-iogurte servido gelado. De posse de dois produtos distintos, em princípio, pense se a junção deles não criaria um potencial inovador! Atente para a sutileza: não falei em criar um produto com dupla função, mas juntar produtos de prateleira distintos. Unificar tarefas é, literalmente, brincar de Lego.
Dependência de atributos. Em muitos P2S2 inovadores, alguns atributos aparentam não ter correlação entre si. Ao invés de unificar, como no tópico acima, experimente promover dependência entre funções. Imagine-se numa cafeteria em que a xícara mudasse de cor conforme a temperatura do café. Automaticamente, um atendente poderia se dirigir a você e oferecer um café mais fresco. O mesmo para líquidos gelados. Outros clientes, observando este ato, sofreriam um belo estímulo: “será que o refil é gratuito?”, “vou consumir mais um pedaço de bolo e deixar meu suco esquentar para ver se eu ganho um novo”. A experiência de consumo da loja, com certeza, ganharia um upgrade. As possibilidades se multiplicariam. Faça um teste: cole um termômetro com mostrador visível em uma xícara e peça a opinião de clientes.
Finalizando…
Todas as técnicas apresentadas visam promover o conceito de reprototipagem, por mim não encontrado, e foram pensadas para produtos que estão, ou estiveram, no Mercado. Claro que podem ser aplicadas à criação convencional de protótipos, no sentido amplo de “primeiro exemplar”. A natureza alertou-me para o fato de que não devemos descartar a preciosa história daquele bravo P2S2, mas iniciar por ela. Não é caminho obrigatório, mas a ser tentado. Penso que a reprototipagem pode oferecer soluções de menor esforço para se inovar, comparado a partir do zero. A mamãe polvo, de certo modo, ainda viverá nos “polvinhos”. May the innovation be with you!
Referência:
Prototipagem – o guia definitivo
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Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Gláucio Brandão
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