O pesquisador Leonardo Oliveira de Almeida fala de seus estudos que abordam religião, mídia, materialidades e etnomusicologia
A entrevista dessa semana foi realizada com o pesquisador Leonardo Oliveira de Almeida. Ele é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (2012) e Licenciado em Sociologia pela R2 Formação Pedagógica – São Paulo (2019). Leonardo é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (2015) e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2019), tendo realizado doutorado sanduíche na Utrecht University (Utrecht – Holanda), no departamento de Antropologia Cultural (Faculty of Social and Behavioural Sciences). Autor do livro “Eu sou o ogã confirmado da casa: ogãs e energias espirituais em rituais de umbanda” (2018), publicado pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, como resultado da premiação de melhor dissertação de mestrado de 2016, outorgada pelo Centro de Humanidades da UFC. Pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Religião (NER/UFRGS) e ao o grupo de pesquisa do CNPq Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público (Mares). Atualmente, desenvolve pesquisas nas áreas de religião, mídia, materialidades e etnomusicologia.
Coluna do Jucá: Vivemos um cenário de duros ataques e subvalorizarão das áreas de humanas. Um sentimento crescente de descrença em relação à ciência também encontrou refúgio na nossa sociedade. A sua dissertação “Eu sou o ogã confirmado da casa: ogãs e energias espirituais em rituais de umbanda” foi publicada pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará após ter sido premiada como melhor dissertação de mestrado de 2016, outorgada pelo Centro de Humanidades da UFC. Por conta da temática, a sua pesquisa foi alvo de ataques, subvalorização e descrença dentro da própria Universidade?
Leonardo de Almeida: Dentro da Universidade, entre professores e estudantes, não. Fora dela, principalmente entre pessoas que não possuem intimidade com a temática do livro, há uma clara contradição entre me parabenizar pela publicação e, ao mesmo tempo, não entender muito bem “pra que serve isso”. Parte dessa dúvida está relacionada ao pouco conhecimento acerca da contribuição das Ciências Humanas para a sociedade. Para boa parte dos brasileiros, é difícil identificar quais são as contribuições já dadas pelas Ciências Humanas e como exatamente essas áreas do conhecimento podem contribuir.
A maneira como pode acontecer um diálogo entre técnicos da prefeitura e moradores de uma comunidade antes da realização de uma grande obra de urbanização, como vem buscando compreender, por exemplo, a pesquisadora Linda Gondim (UFC); ou o encontro entre engenheiros agrônomos e pequenos agricultores durante um processo de reforma agrária, como analisou Paulo Freire em seu Extensão ou Comunicação; ou ainda a discussão sobre cidadania no currículo de uma escola municipal, temática presente nas pesquisas das professoras Rosemary Almeida (UECE) e Danyelle Nilin (UFC), todos estes são momentos que já receberam e ainda recebem grande contribuição das Ciências Humanas. Em parte, o pouco reconhecimento social dado a essas contribuições se deve ao fato de não estarem comumente acompanhadas por rituais sociais que possibilitam o encontro entre um profissional, um cliente e um determinado serviço. Um médico, por exemplo, é o profissional que recebe seu paciente e expõe, durante uma consulta, os conhecimentos adquiridos ao longo de sua formação. O mesmo acontece com um engenheiro que é contratado por um cliente para realizar certas obras, ou com um advogado que utiliza seus conhecimentos para interferir em um conflito entre vizinhos. No caso das Ciências Humanas, além desses encontros nem sempre serem evidentes nos rituais sociais, o conhecimento produzido pelas pesquisas costuma chegar de forma mais indireta a maioria da população, muitas vezes sem que seja possível saber que foram produzidos por historiadores, sociólogos, antropólogos e filósofos.
Há ainda outro elemento que gostaria de destacar e que pode ser bem exemplificado a partir das palavras do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, que disse recentemente em sua conta do Twitter:
“O ministério da Educação estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.
Para muitos, a lente que avalia a contribuição das ciências para a sociedade é a do “retorno imediato ao contribuinte”. Cada uma dessas palavras possui grande importância. O retorno deve ser compreendido a partir de sua parceria com as maneiras pelas quais certos conhecimentos adquirem visibilidade numa sociedade. Algo que retorna só é identificado como retornado quando é visível, quando alguém identifica que algo chegou a algum lugar. Isso nos leva às dificuldades de visibilidade já apontadas anteriormente. A imediaticidade com que o conhecimento deve retornar também é outro ponto de grande importância. No sistema capitalista a imediaticidade adquire grande valor, muitas vezes incompatível, por exemplo, com as chamadas “pesquisas de base” que tanto contribuem para diversas áreas do conhecimento, inclusive para as que são compreendidas como “mais imediatas”, como “veterinária, engenharia e medicina”. E, por fim, temos a dimensão do contribuinte. O contribuinte quer um retorno rápido e visível, quer utilizar serviços. Fala-se, portanto, no retorno financeiro, geração de renda e circulação de capital como um indicador de maior ou menor importância de determinada ciência ou temática de pesquisa para uma sociedade.
Vista sob tal perspectiva, uma pesquisa sobre música e religiões afro-brasileiras não seria uma forte candidata a gerar “um retorno imediato ao contribuinte”. Por outro lado, a produção do conhecimento não se limita e nem deve se limitar ao retorno econômico imediato ou a modelos essencialmente capitalistas de imediaticidade.
Coluna do Jucá: Quais argumentos utilizar para defender a destinação de verba pública – mediante agências de fomento, como a CAPES e o CNPq – para pesquisas nas áreas de religião, arte e etnomusicologia?
LA: Como foi citado anteriormente, as religiões afro-brasileiras são alvo de preconceito e intolerância na sociedade brasileira. Uma vez que a nossa constituição prevê a liberdade religiosa e de culto, tal fato já seria suficiente para atestar a relevância dos estudos na área da religião. Existem conflitos a serem compreendidos e tal tarefa só é possível a partir de estudos que considerem aspectos mais amplos da constituição desses modos de viver. Em meu livro, por exemplo, a música foi um meio pelo qual pude compreender características mais gerais das religiões afro-brasileiras, como a possessão, a constituição da pessoa em sua relação com as divindades, a oferta de serviços espirituais, as formas de culto, a organização da hierarquia e as ações políticas frente aos desafios enfrentados por essas religiões no Brasil.
Mas a música não é apenas um instrumento analítico, ela apresenta uma materialidade, ela age e se relaciona a outros domínios. A música de terreiro ajudou a constituir o samba, o axé e outros segmentos musicais. Estes, por sua vez, chegaram a ser considerados “cultura”, “ cultura brasileira”. Algo a ser valorizado? Como explicar o fato de um certo tipo de musicalidade ser tão perseguida e, ao mesmo tempo, uma de suas variações ou ramificações ganhar as ruas, embalar grandes festas e se tornar digna de ser vista como elemento que compõe a identidade nacional? No campo evangélico, a música gospel foi recentemente reconhecida como manifestação cultural (ver, por exemplo, a música gospel e os usos da “arma da cultura”. Reflexões sobre as implicações de uma emenda – Raquel Sant’Ana), podendo receber recursos públicos, uma vitória dos movimentos cristãos. Temos aqui um exemplo do que Clara Mafra chamou de “arma da cultura” e que não se restringe a se expressar de forma modesta na sociedade. Sabemos que a música gospel não é apenas um mediador religioso que permite o contato entre o fiel e Deus, é também (e muito mais) um poderoso instrumento de transformação do campo religioso. O religioso se torna, portanto, um importante meio de ação política.
É um erro imaginar que todas essas questões dizem respeito apenas à vida privada dos templos e seus adeptos. A religião se expressa na sociedade a partir de suas interseções com outros domínios, como os da política, economia, turismo, espaço público, arte, entre outros. Compreender como se configuram tais encontros é fundamental para entendermos para onde estamos caminhando, quais os desafios da democracia e da cidadania. Não são questões geradoras de “retorno imediato ao contribuinte”, se considerarmos as concepções discutidas anteriormente, mas podem prevenir “doenças politicas oportunistas”, para utilizar a expressão de Lilia Schwarcz em um texto recente.
Os dados do IBGE nos indicam que o Brasil vem passando por transformações consideráveis no campo religioso. O crescimento do número de evangélicos, em especial os pentecostais/neopentecostais, aponta para o surgimento de novas configurações. E são também os segmentos neopentecostais que vem ganhando protagonismo nos casos de intolerância religiosa nos últimos anos. A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, e cujo fundador esteve ao lado do atual presidente da república nas festividades do último 7 de setembro, tem como uma de suas características a adoção de uma perspectiva claramente dualista: o bem e o mal, Deus e o diabo. O cristão, portanto, está incumbido de combater as forças das trevas, forças estas que atuam e podem ser encontradas nas religiões afro-brasileiras. Cristo teria vindo para que os homens pudessem obter, já neste mundo, e não apenas no céu, vida em abundancia, prosperidade material, saúde e sucesso. A impossibilidade de alcançar tais objetivos, de “tomar posse”, teria sua causa, entre outros fatores, na atuação do demônio. Assim, é comum que, durante os cultos, os espíritos demoníacos sejam convocados para que uma batalha espiritual entre os pastores e o mal seja ritualizada, finalizando com a vitória de Deus sobre os demônios (exus, pombagiras, orixás). Algumas igrejas, em complemento, estabelecem metas e prazos para o fechamento de terreiros, tema já abordado por alguns pesquisadores.
Tais ações se estendem para o campo da política e da vida cotidiana. Muitos são os relatos de terreiros invadidos e destruídos, adeptos do candomblé que sofrem agressão e são expulsos por motoristas de ônibus que se recusam a “levar macumbeiros”. Também podemos citar as tentativas de proibir os sacrifícios de animais nas religiões afro-brasileiras. Como se configuram tais conflitos? Quais suas origens históricas e como as garantias de liberdade religiosa se inserem nesse debate? Como a relação entre religião em política vem se configurando no Brasil, em especial a partir da presença de segmentos evangélicos na política e das estratégias utilizadas pelas religiões afro-brasileiras frente aos casos de intolerância? As agências de fomento possuem, portanto, um importante papel na viabilização desses estudos.
Lembremos que o atual presidente do Brasil vem anunciando em diversas oportunidades as suas intenções em valorizar o cristianismo, a família e os bons costumes. Também recebeu apoio expressivo de segmentos cristãos e alavancou candidaturas de alguns de seus companheiros. Religião, estado, política, cidadania, democracia, todas são temáticas em efervescente entrelaçamento e não possuem uma participação discreta na sociedade brasileira.
Coluna do Jucá: Nos últimos anos muitas Casas e Terreiros de religiões de matrizes africanas têm sido atacadas e até destruídas, fatos estes que tem raízes históricas. Segundo Yuval Noah Harari, autor de grandes sucessos literários como Sapiens e Homo Deus: Uma breve história do amanhã, a ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões, como a Umbanda. Você acha, contudo, que a ciência poderia de alguma forma contribuir para embutir na cabeça das pessoas o dever de se respeitar a manifestação de qualquer tipo de crença religiosa, inclusive, a da crença na não crença religiosa?
LA: Gostaria de citar uma das expressões dessa contribuição. Em 2006, quando foram publicadas pelo MEC as Orientações Curriculares Nacionais (OCN-Sociologia), foi sugerido que o estranhamento e a desnaturalização da vida social estão entre os princípios epistemológicos do ensino de Sociologia na educação básica. Esses se tornaram importantes guias para os professores de Sociologia, na busca por evidenciar que certos fatos não são naturais, que tiveram origens históricas e que foram se transformando ao longo dos anos. Nessa perspectiva, o estranhamento causa espanto diante do que não se conhece ou não se espera. Como afirmam Amaury Moraes e Elisabeth Guimarães, os autores da OCN-Sociologia, o estranhamento é uma sensação de incômodo, mas agradável incômodo – vontade de saber mais. Estranhar situações conhecidas, inclusive aquelas que fazem parte da experiência da vida cotidiana, é uma condição necessária às Ciências Sociais. Ao desnaturalizar, em complemento, torna-se possível perceber que os fenômenos sociais não são naturais, mas são na verdade constituídos socialmente, historicamente produzidos, resultado das relações sociais. Assim, os fenômenos podem ganhar historicidade, pois “nem sempre foram assim”, podem também ser percebidos como constituídos de transformações e continuidades que decorrem de decisões, interesses, de razões objetivas e humanas, não sendo fruto de tendências naturais.
Com apenas esses dois princípios epistemológicos (estranhamento e desnaturalização) já é possível que pensemos na importância das Ciências Sociais para a discussão sobre religião e sociedade. É possível discutir elementos do universo religioso, tais como ritual, sacrifício, crença, arte e devoção, atrelados a temáticas como cidadania, democracia, diversidade, intolerância, liberdade religiosa e política. Em minha experiência de estágio de licenciatura em Sociologia, por exemplo, pude discutir com os alunos como o peixe da Sexta-feira Santa e o peru de Natal podem ser levados ao universo do estranhamento e da desnaturalização. Para muitos, tratava-se da primeira vez que o peixe e o peru eram vistos como animais que eram mortos para participar de rituais religiosos. Após essa discussão inicial, iniciei um debate acerca dos sacrifícios de animais nas religiões afro-brasileiras. A luz das discussões anteriores, outro nível de debate foi possível, agora reconfigurando afirmações e hipóteses, bem como inserindo tais discussões em debates mais amplos, tais como cidadania, democracia e intolerância religiosa.
Coluna do Jucá: Segundo os dados do IBGE, o número de pessoas que se declaravam sem religião no país passou de quase 7 milhões em 1991 para pouco mais de 12 milhões no ano de 2000 e atingiu o patamar de mais de 14,5 milhões de pessoas em 2010. Ao que tudo indica, no censo de 2020 esses números devem aumentar. É possível prever as implicações do ponto de vista filosófico, ético e científico dessas mudanças em curso?
LA: Censo 2010 indica a continuidade da queda do catolicismo de 73,8% em 2000 para 64,6% em 2010. O Censo também indica o crescimento evangélico, de 15,4% para 22,2%, um aumento de 26 milhões em 2000 para 42,2 milhões em 2010. Esse crescimento foi alavancado pelos pentecostais, que passaram de 10,4% em 2000 para 13,3% em 2010, ou seja, 60% de todos os evangélicos do país. Outro dado importante é a diminuição de pessoas que se declaram pertencentes às igrejas católica, luterana, presbiteriana e metodista, o que parece revelar uma espécie de crise das religiões tradicionais. Estes dados apontam para uma expressiva reconfiguração do cristianismo no Brasil.
Outro dado também importante diz respeito ao crescimento dos sem religião, de 7,28% para 8%. É importante destacar que os sem religião não devem ser entendidos com a parcela da população composta por ateus, uma vez que podem ser caracterizados também por uma postura nômade, transitando entre diferentes denominações, e por vivenciarem uma espiritualidade autônoma, marcado pela dinâmica da flexibilização do compromisso religioso e independente de uma filiação religiosa ou vínculo institucional. Nesse contexto, há o que alguns autores chamam de “desafeição religiosa” em relação às instituições religiosas no Brasil. Nas palavras de Gracie Davies, “believe but not belong”. A categoria dos sem-religião designa, portanto, mais as pessoas não filiadas a uma religião específica e menos as pessoas totalmente secularizadas. Nesse contexto, tais fatos contribuem para a expressiva atenção dada a categoria “espiritualidade” nos estudos recentes das Ciências Sociais da religião.
A pesquisadora Clara Mafra destaca que parte do universo dos sem religião é urbano, jovem e masculino. Ainda Segundo a autora, essas características corroboram alguns pressupostos modernos: do urbano como o lugar da “saída da religião”; da “juventude” como o tempo de busca de experimentação, ao invés da fixação de certezas; de um maior pragmatismo por parte dos homens, versus um maior idealismo por parte das mulheres. Porém, em contraste com esse “padrão sociológico moderno”, a maioria dos sem religião tem baixa escolaridade, está na base da pirâmide e é de cor parda. Sobre esse aspecto, Cecília Mariz sugere que que esses jovens muito provavelmente são considerados “desviados” no meio em que habitam, entendendo esta categoria como alguém que conheceu a doutrina evangélica e depois se afastou da igreja.
É importante destacar que houve uma considerável redução do crescimento dos sem igreja, se compararmos os dados de 1991 (4,8), 2000 (7,3) e 2010 (8,04). Caso a redução do crescimento se mantenha no próximo Censo, teremos um quadro bem diferente daquele vivenciado nos anos 2000, em que alguns pesquisadores sugeriam um continuado crescimento dos sem religião no Brasil, em especial devido à redução do número de católicos. Como destaca Carlos Steil e Rodrigo Toniol em um de seus textos, devemos lembrar que ao contrário do que aconteceu com a França, onde aqueles que já não se reconhecem como católicos vão engrossar as fileiras dos que se declaram sem religião, que representam 50% da população, no Brasil eles vão sobretudo para as religiões pentecostais.
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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