Até que ponto a visibilidade midiática de indivíduos negros revela um cenário de inclusão e conquista de um mercado interessado em compreender esse público
Por Sandra Costa* (Instagram: @preta.no.branco).
Desde já, aviso que eu não tenho a pretensão de responder à pergunta-título desse texto. Mas lanço aqui uma gama de reflexões, baseadas nas minhas percepções e pesquisas sobre o tema.
Em 2019, eu participava de um evento acadêmico em Fortaleza que discutia os conceitos de identidade e suas implicações nas atividades midiáticas. Uma das palestrantes discorreu sobre seu trabalho acerca dos processos formativos de mulheres negras em uma rede social. Elaborou sobre a construção da imagem dessas mulheres, e o impacto disso na transformação do olhar atribuído à estética da mulher negra e as articulações com o mercado e com relações de consumo. Saí dali com uma pulga atrás da orelha.
É que eu comecei a questionar se não havia um pouco de hipocrisia na forma como a publicidade explora a imagem de pessoas negras na atualidade. Eu não consigo acreditar em conto de fadas. Aprendi a não aceitar, de cara, o que me é dado pela mídia (que é o certo a se fazer, inclusive) e fico me indagando o que há por trás de cada iniciativa, sobretudo quando parte de grandes empresas e marcas famosas. Pergunto-me até que ponto há realmente um desejo de inclusão e representatividade negra, ou se estamos imersos em estratégias para atrair um novo mercado consumidor e o black money**. Precisei entender onde nós, indivíduos negros, estamos situados dentro do processo de consumo e das discussões acerca do tema.
O ser humano consome, é fato. Desde a barriga da mãe, sugamos vitaminas através do cordão umbilical. Saímos da barriga, e já começamos a dar prejuízo ao mundo, inalando oxigênio e emitindo gás carbônico. Consumo é, no mínimo, existência, certo? Mas não é só isso. Consumir nos permite saciar as necessidades, e através disso construímos nossos hábitos. Hábitos, por sua vez, dentro do sistema econômico vigente, capitalista, são objetos de manipulação midiática. Aliás, Silverstone (2015) revela que aí está o papel da mídia no consumo: interferir no exercício da individualidade humana.
Relações de consumo envolvem troca. Vários autores que atravessaram o meu caminho (Barbosa; 2010; Bauman; 2008; Botsman e Rogers, 2011; Lipovetsky, 2007; Miranda, 2014; entre outros) debatem conceitos mais aprofundados sobre o tema. Aprendi com eles que consumo também é fator de distinção entre as pessoas e entre os povos; é o responsável, ao mesmo tempo, por estabelecer pontes culturais; por construir e, simultaneamente, enfraquecer relações sociais. Em uma sociedade de consumo, o ato de consumir é uma relação de poder, e essa relação está submetida a interesses econômicos induzidos pelo marketing e pela propaganda. Logo, o poder de quem consome aumenta quanto maior for a sua possibilidade de consumo. O homem é, realmente, uma mercadoria de si mesmo!
À publicidade cabe a tarefa de persuadir para o consumo, transmitindo, através dos anúncios, os significados culturais do mundo que nos rodeia no intuito de aproximar o público de uma causa, marca, empresa ou ideia, e convidá-los a tomar uma posição (adesão ou compra, por exemplo). Na contramão do mar de informação e sedução da atualidade, é pulsante a discussão sobre os impactos do consumo na natureza, na economia e na sociedade, o que faz com que consumir se torne um ato de reflexão, um exercício de cidadania.
De um modo geral, e dentro de um percurso sócio-histórico, o consumo é algo do qual a maioria dos negros foi excluída. Não falo somente da exclusão do ato de consumir em si, mas também das discussões em torno do assunto. A imagem do negro era corriqueiramente apresentada em posição de subalternidade, carregada de estereótipos, e nunca como potencial consumidor de produtos. Porém, vivemos hoje um contexto onde questões étnico-raciais estão movimentando diversas estruturas sociais, e aqui eu introduzo as minhas reflexões sobre a inserção da imagem de pessoas negras na propaganda brasileira contemporânea, e que cenários isso revela.
Grande parte das empresas brasileiras é liderada por pessoas brancas. São 68,6%, mais precisamente, de acordo com pesquisa do IBGE de 2018. Poucas são as empresas que cultuam o antirracismo como valor corporativo e, na verdade, não há um controle sobre isso. Ou seja, entre o “dizer” e o “fazer” pode haver uma distância enorme. Além disso, segundo o relatório Sustentabilidade Racial de 2021, elaborado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper, é muito baixo o percentual de negros em agências de publicidade e propaganda no Brasil (27% de pardos e 3% de pretos), e apenas 20% deles alcançam cargos de maior prestígio. Como consequência, o percentual de pessoas negras envolvidas nos processos de comunicação de empresas e marcas brasileiras também é baixo.
As estatísticas não são as melhores, e estão distantes do desejo de equidade em relação aos aspectos raciais na comunicação. Como falar em representatividade, se as empresas para as quais a imagem do negro é fornecida são dominadas por pessoas brancas, e se aquele negócio, produto ou serviço foi pensado para a realidade socioeconômica dessas pessoas? Além do mais, como pensar em inclusão quando as questões de raça estão sendo vistas de uma perspectiva de branquitude?
Excluído do protagonismo das relações de consumo por longo tempo, o povo negro não se enxerga nas propagandas, muito embora se perceba um esforço mínimo das marcas de se relacionarem com uma cultura de inclusão – ainda em um estágio inicial, pois há muito a se englobar no que tange à diversidade étnico-racial. É comum, nesse momento, que vejamos marcas inserindo imagens de pessoas negras em seus anúncios, mas, não obstante, distantes de suas realidades e necessidades. Sim, ter alguma visibilidade na mídia já é um bom começo, mas… haja empatia pra chegar onde queremos!
No que se trata de inclusão, ao que me parece, a comunicação brasileira vive dentro de uma zona de conforto, e temos propagandas feitas “com” negros, e não “por” e “para” negros. Falta conexão com o nosso público, cultura participativa, valorização estética e, o mais importante, a transformação da cadeia para que o discurso da diversidade não esteja tão descolado das práticas nos ambientes corporativos dos anunciantes.
Enquanto muitos clamam por resistência em diversas questões que envolvem afirmação racial no Brasil, no plano do consumo nós, pessoas negras, ainda estamos no estágio da existência. Estamos em processo de resgate dos valores dos nossos antepassados, reescrevendo nossas narrativas e entendendo o nosso lugar no mundo. Ainda somos considerados um grupo social minoritário, com baixa representatividade nos meios de comunicação – resultado de um apagamento histórico secular, que reflete negativamente na formação da nossa identidade e na construção da nossa autoestima.
A questão do consumo atravessa, ao longo do tempo, crises econômicas e tensões sociais. Se consumir é exercer cidadania, é preciso reconhecer ativamente o tensionamento que a questão racial cria em toda uma cadeia produtiva, e tomar decisões a partir daí. Para as empresas e marcas, é imprescindível seguir incluindo pessoas negras na publicidade, mas só isso não é suficiente. É preciso que estejamos em outros lugares, para além dos anúncios: seja atrás das câmeras, ou em cargos estratégicos, é preciso criar oportunidades. Em paralelo, é necessário trazer à superfície os nossos contextos de vida, compreender a nossa história, abraçar nossos ideais e transferir esses significados para os produtos e serviços que se usam da nossa imagem para propagá-los. E, para evitar cair novamente na zona de conforto, pensar: este é um caminho, mas não é o único.
(*) Sandra Costa é bacharela em Administração e Publicidade e Propaganda (UFC), especialista em Cultura e Mercado de Moda (Estácio). Redatora e entusiasta da fotografia. Graduanda em Jornalismo (UFRN) e bolsista do grupo de pesquisa Projeto Olhos Negros.
(**) Black money: termo utilizado para designar o dinheiro aplicado por pessoas negras em empresas, causas e/ou marcas que contribuem para o reposicionamento socioeconômico e representatividade negra e seus discursos.
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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