Em mais um texto sobre embriões e conceitos que envolvem nossas decisões sobre o aborto, o professor Eduardo Sequerra aborda a busca por nossas origens
No último mês de agosto houve uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal para discutir a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. Nesta, seus autores questionam a legalidade dos artigos do Código Penal que criminalizam todos os envolvidos em interrupções da gravidez. A discussão toda, muito boa por sinal, girou ao redor do conceito de aborto até o fim do primeiro trimestre, data esta que não é definida por acontecer algo extraordinário com o embrião, mas sim por ser prática para definir e ser a mesma para todas as mulheres. Mas e o que acontece com o embrião nesse tempo todo? Hoje vamos ver como no início da vida de embriões todas suas células possuem enormes potenciais, inclusive de gerar indivíduos inteiros, e por que isso é uma questão importante para discutirmos quando devemos considerar um embrião uma pessoa.
Logo após a fertilização, o zigoto começa a se dividir em um embrião com um número cada vez maior de células. Estas células são indivíduos por si só, mas são unidas por moléculas que elas mesmas produzem e que as mantem aderidas umas às outras. Porém, esta adesão não é perfeita e um único bolinho de células pode se separar em dois ou mais bolinhos. E o que acontece com os bolinhos separados? A primeira pista veio de experimentos conduzidos por Hans Driesch nos anos 1890. Driesch separou as primeiras células de um embrião de ouriço-do-mar (seja por agitação vigorosa ou a remoção de cálcio da água) e observou que cada célula separada foi capaz de dar origem a um ouriço-do-mar completo. E esse fenômeno acontece também em mamíferos. Às vezes, nossos embriões-bolinhos-de-célula se dividem e cada um dos bolinhos dá origem a um gêmeo monozigótico. Isso acontece por que nossas células nesta fase são totipotentes. Ou seja, elas são capazes de dar origem a outras células que se diferenciam em todos os tecidos de nosso corpo, como a pele e o músculo. Além disso, elas podem também dar origem a células que formam os tecidos extra embrionários, como a placenta. Assim, é meio complicado considerar o bolinho de células que forma nossos embriões uma pessoa. Ele pode dar origem a várias pessoas, mas ainda não é nenhuma.
E será que o contrário também pode acontecer? Se cada célula pode ser uma pessoa e ao mesmo tempo não é nenhuma, será que células de dois bolinhos diferentes podem gerar uma pessoa só? Nos anos 40, um sujeito chamado Ray David Owen trabalhava em um laboratório que fazia teste de paternidade em bezerros. Naquela época já se vendia sêmen de touros campeões e os compradores queriam comprovar sua origem. Claro que ainda não haviam testes de DNA mas já era possível testar o sistema ABO (que todos nós testamos em nossos sangues) entre outros. Owen então se interessou por vacas freemartin (chamadas vaca maninha em algumas regiões do Brasil). Estes são animais inférteis com ovários sub desenvolvidos. Acontece que freemartins geralmente possuem também irmãos gêmeos fraternos (de um diferente zigoto). Quando Owen testou suas proteínas descobriu que eles eram gêmeos idênticos e não de diferentes zigotos. Como poderia ser possível? Um irmão macho, a outra uma fêmea com problemas de diferenciação sexual e os dois são geneticamente iguais? A situação ficou pior quando um fazendeiro lhe procurou com o caso de uma vaca da raça Guernsey que foi cruzada com um touro Guernsey mas que também acabou transando com um touro da raça Hereford que quebrou a cerca (essas raças são bem diferentes fisicamente). Gêmeos nasceram e enquanto a fêmea tinha cara de Guernsey, o macho tinha a cara branca de um Hereford. Mas aí, quando Owen olhou para as suas proteínas, os dois gêmeos haviam herdado as proteínas dos dois touros! Foi aí que Owen lembrou-se dos experimentos de Frank Lillie, no começo do século XX, em que ele mostrou através da injeção de um corante que as circulações das placentas de dois gêmeos fraternais é diretamente ligada. Owen então concluiu que cada um dos bezerros foi produto da fertilização pelo espermatozoide de um diferente touro, mas durante o desenvolvimento suas células se misturaram e seus sangues possuem células de diferentes origens. Eles são quimeras! Mas será que o quimerismo também acontece em humanos?
Em 2003, Lydia Fairchild estava grávida de seu quarto filho, desempregada e solteira. Para conseguir benefícios sociais, ela e o pai tiveram que fazer teste de DNA para comprovar de quem eram as crianças. O teste confirmou que Jamie era o pai mas não que ela era a mãe! Os agentes públicos logo passaram a suspeitar de Lydia havia sequestrado os bebês! Lydia mostrou certidões de nascimento, a obstetra que fez os partos depôs em seu favor mas o DNA era soberano para a corte do estado de Washington. Como estava grávida, um oficial do tribunal foi acompanhar o parto e mesmo assim, como o quarto filho tampouco tinha seu DNA, ela iria ser processada! Eu acho esse caso uma das melhores ilustrações de como fomos longe de mais no gene centrismo, nosso olhar para o DNA como um cálice sagrado. Foi então que o advogado de Lydia encontrou um outro caso de uma senhora, Karen Keegan, que estava fazendo testes para ver se seus filhos, já adultos, poderiam doar um de seus rins para a mãe. Acontece que que o genótipo de seus filhos não era compatível nem com a maternidade do genótipo encontrado no sangue de sua mãe. Mas como sua mãe havia feito outras biópsias (inclusive do rim doente), os médicos descobriram que ela era uma quimera, um corpo carregando dois diferentes genótipos. Os médicos de Lydia conseguiram então encontrar o genótipo igual ao dos gametas que deram origem a seus filhos em células do seu trato genital e assim, impedir sua prisão e perda da guarda das crianças. Não sabemos ainda quantos de nós somos quimeras. Lembremos que Karen e Lydia tinham irmãos gêmeos, mas esse gêmeo não precisa vingar para dar origem a um irmão quimera. Ele pode estar lá do nosso lado só no começo do desenvolvimento.
Estas células que podem dar origem a todas as células de nosso corpo estão presentes somente até o processo de gastrulação, que é quando elas começam a se comprometer com tecidos específicos de nosso corpo. A gastrulação acontece em seres humanos ao redor do décimo quarto dia de gestação. A meu ver, qualquer argumento científico, moral ou religioso sobre o surgimento de uma pessoa é difícil de se sustentar até a gastrulação. Como aconteceria esse “download” de uma alma em um indivíduo que pode se separar em dois ou se fusionar a outro?
Continuem acompanhando a série de textos sobre embriões e conceitos que envolvem nossas decisões sobre o aborto. Até aqui defendi que o embrião não pode ser considerado uma pessoa até a gastrulação. Mas até onde isso vai?
Referência
Zimmer, C (2018) She has her mother’s laugh: the powers, perversions and potentials of heredity. Penguim Random House.
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Leia o texto anterior: Fertilização, embriões editados e o futuro da reprodução humana
Eduardo Sequerra
Até pra nós..seus tios postiços…é motivo de orgulho acompanhar seu crescimento profissional sem perder a essência do menino que se preparou para voar com a espertize de uma Águia dissertando de maneira simples temas complexos sem perder a ternura e a humildade.
Maravilhoso texto .