Entender as particularidades, identidades e vozes das diferentes regiões do país é essencial para a construção de um jornalismo livre
Por Ana Karolina de Carvalho e João Pedro Luna
Em 23 de Agosto de 2019 era lançado no Brasil um dos filmes mais emblemáticos e marcantes dos últimos anos, o longa Bacurau dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles misturava faroeste, ficção científica, drama e suspense em uma única trama que nos envolve do começo ao fim. Dentre as diversas questões exploradas em Bacurau decidimos neste texto focar em uma bem específica: a representação da imagem do povo nordestino e a resistência de um povo para preservar sua identidade.
O tema nos surgiu após a grande inquietação gerada pela publicação da capa da revista Veja do dia 22 de Janeiro deste ano. A capa que trazia como tema o aniversário da cidade de São Paulo carregava um título extremamente desrespeitoso ao se referir a capital paulista como “Capital do Nordeste”. A composição da capa deixa evidente que o imaginário sudestino sobre a região Nordeste não havia mudado: cores saturadas que se assemelham a terra, cactos para reforçar a ideia de sertão, fundo de barro para representar uma casa “rústica” e claro, a imagem do nordestino como alguém que sai de sua região para ter uma vida melhor na grande metrópole.
Um dos fatores que contribuíram para a construção dessa imagem do nordestino no imaginário popular do brasileiro foram os fluxos migratórios massivos que ocorreram entre as décadas de 50 e 60, na qual um grande volume da população nordestina, seja das capitais ou das regiões sertanejas, saíram dos seus respectivos estados para o centro-oeste e o sudeste, em busca de melhores oportunidades de vida e emprego, visto que esse processo é consequência direta do desemprego nas grandes cidades.
A construção de Brasília, o processo de industrialização e até o chamado Ciclo da Borracha, ainda nos anos 40 foram, por exemplo, alguns dos mais importantes eventos históricos que ocasionaram os fluxos migratórios da população nordestina dentro do país. Esse fenômeno atualmente é algo bem menor do que antes, visto que já existem gerações de famílias nascidas em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais sudestinas, mesmo que de origens nordestinas, com pais, avós e bisavós vindos da região nordeste.
Segundo Melo e Fusco (2019), os dados censitários realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000 e 2010 explicam a redução direta da migração e trabalho realizado em diversos setores pela população nordestina na região metropolitana de São Paulo (RMSP). Sabe-se que durante o censo demográfico de 2000 eram cerca de 3,6 milhões de nordestinos compondo a população dessa região, o qual obteve queda no censo seguinte em 2010 com cerca 3,1 milhões de migrantes, ou seja aproximadamente 15% da população total da região metropolitana realizava um movimento significativo na migração de retorno.
Assim como em Bacurau, a imagem de um povo é formulada através dos olhos de quem acha que detém um maior poder sobre eles. Vistos como um povo sem particularidades pelos olhos dos estrangeiros ali presentes, os personagens do filme são vistos como “selvagens” que não possuem uma memória coletiva e uma identidade própria. A representação do “povo nordestino” na Veja assume ares de uma população homogênea que supostamente cultivam o mesmo desejo de construir uma vida na “cidade grande”.
Contudo essa imagem é um reflexo de anos de criação e repetição de um estereótipo sobre o povo nordestino. Não apenas em Bacurau mas como também em diversos outros longas, séries e até telenovelas, a representação do povo nordestino manteve-se por muito tempo descrita sob uma lente não regional, ao contrário de alguns filmes nacionais clássicos. Na era do chamado Cinema Novo, por exemplo, autores como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos souberam retratar fielmente através das suas obras a realidade da época em que a figura do nordestino sertanejo vivia de fato uma vida com diversas dificuldades e lutava para sobreviver, mas que suas raízes culturais, tradições e costumes se mantinham intactas, bem representadas.
Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) foram o começo de uma representação visibilizada e construção de um estereótipo da população nordestina ainda na década de 60, que permaneceu constante por quase 40 anos, até que se popularizou midiaticamente no começo do milênio, através da adaptação televisiva e cinematográfica da peça teatral O Auto da Compadecida (2000), escrita por Ariano Suassuna, nordestino.
Embora se trate de uma sátira, ou auto de comédia, na linguagem teatral, a representação televisiva dos personagens foi bastante estereotipada, com a figura do sertanejo preguiçoso e oportunista, principalmente por ser interpretada por atores e atrizes não nordestinos, o que atualmente já pode ser enxergado como uma problemática dentro da obra. Considerado um clássico, o longa se popularizou e, em consequência, a reprodução do estereótipo do nordestino também. No cinema, nas novelas e minisséries os personagens de origem nordestina foram reduzidos(as) em sua maioria a papéis de serviçais: empregados, motoristas, jardineiros, zeladores, assumindo um roteiro quase sempre semelhante de pessoas que saíam de sua cidade natal e desempenhavam funções secundárias para sobreviver.
O retrocesso da representação da população nordestina nos grandes meios midiáticos retoma o imaginário popular que o nordestino é o que serve, o que trabalha para sobreviver, o empregado, a mão de obra mais barata, além de precisar lidar com a presença constante de preconceitos a seu respeito, reproduzidos pela maior parte dos brasileiros, principalmente os da região sudeste como, por exemplo, a criação de apelidos que o reduzem ao seu local de origem, como “paraíba”, “pernambuco” e “baiano”.
A repercussão da capa da revista, suscitou debates e aflorou o sentimento de revolta na população de todos os estados que compõem a região Nordeste. No dia da publicação da revista a Veja se tornou o assunto mais comentado do Twitter com diversas opiniões de internautas, em sua maioria nordestinos, que se sentiram ofendidos com o tema.
A reação coletiva foi um indicativo de que o público se torna cada vez mais ativo dentro do seu processo de recirculação de uma notícia jornalística. A repercussão da revista se tornou extremamente negativa e foi noticiada pela forma preconceituosa e equivocada de construção de capa, título e conteúdo jornalísticos.
A principal reação a ser notada foram a das prefeituras das capitais dos Estados que compõem a região Nordeste. O perfil oficial da prefeitura de Salvador deu início a repercussão com uma crítica bem-humorada e típica da rede social do Twitter, usando a expressão “Será amadah?” e em seguida marcou os perfis de todas as outras prefeituras das capitais em uma clara afronta a publicação. As reações das demais prefeituras foi regada de bom humor e deboche, sinalizando que a receptividade da notícia tinha alcançado o público da pior maneira possível.
É interessante notar como a linguagem e forma de expressão de reação das prefeituras dentro da plataforma do Twitter não se torna menos válida apenas por ser feita dentro de uma rede social. A revista, que no momento estava sendo divulgada, encontrou seu público nas redes e ao buscar a circulação da notícia de forma positiva, encontrou o contrário.
Sua circulação também causou uma modificação, a reação dos internautas e prefeituras motivou uma marca de vestuário de Salvador a recriar a capa e o título da revista para “O Capital do Nordeste: a cabeça, criatividade e os braços nordestinos, que giram a moeda em São Paulo, agora voltam para as suas terras de origem”. A capa continha ainda a imagem de pessoas negras e pardas representando a diversidade da região diferente da capa original que trazia em sua maioria pessoas brancas.
A reação á nova capa expôs como esse imaginário ainda funciona uma vez que o próprio editor chefe da revista Veja proferiu comentários ainda mais xenófobos e se distanciou de um pedido de desculpas se reafirmando como correto em sua escolha. “O mundo da lacração acha que ‘diversidade’ é muita gente igual, ‘cool’, todos da mesma idade (sempre muitos jovens, claro), mesma maquiagem e quase uniformizados. E ainda chamam as pessoas de “O capital”. Diversidade não deveria ser só o que se vê no espelho”. É nítido que a preocupação do editor era defender que sua construção havia sido uma “homenagem” ao povo que ascende em terras paulistas, por mais que em São Paulo o número de nordestinos que alcançam um status dentro do mercado seja pequeno em comparação ao que têm sua mão de obra barateada e são marginalizados dentro da capital.
É importante que a mídia e as produções jornalísticas se vejam no papel de produzir conteúdo não mais tão enraizados dentro do imaginário popular, evitar que esses estereótipos sejam perpetuados é uma missão que deve ser abraçada pelos comunicadores de todo o país. Entender as particularidades, identidades e vozes das diferentes regiões do país é essencial para a construção de um jornalismo livre de preconceitos e de imaginários ainda mais xenófobos.
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JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí
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