Que livro novo você vai ler em 2025? Linguaruda

segunda-feira, 6 janeiro 2025
Com eixo temático girando entre mães e filhos, a obra apresenta elementos acerca da crueldade que há no mundo e na humanidade (Foto: instagram.com/bethaniapiresamaro)

O Ninho, de Bethânia Pires Amaro, obra ganhadora de vários prêmios, abriu a jornada da nossa Linguaruda Cellina Muniz

(Cellina Muniz)

Ano novo, eis a gente mais uma vez fazendo planos e traçando metas. Dentre algumas possíveis, aquela por trás da pergunta – e agora, que novo livro eu vou ler?

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Além de alguém que se possa classificar como “linguaruda” (talvez um pouco menos, à medida que os anos passam), sou uma pessoa atravessada por algumas condições, reconheço: a condição de pessoa que lê e escreve, por exemplo. E, como leitora e escritora, há um elemento a mais, minha predileção por histórias que não “adoçam” o mundo, pelo contrário, buscam abordar o lado amargo da vida.

Movida por esses traços, o primeiro tema desta coluna “Linguaruda” neste ano de 2025 tem a ver com tudo isso e é também uma dica de leitura para o ano que se inicia, uma leitura que, para mim, foi mesmo como um “aninhar-se” junto ao livro, esse objeto que, ao nos afastar de tudo ao redor, permite-nos um voo em nossas próprias distâncias.

O Ninho

Refiro-me a “O Ninho”, de Bethânia Pires Amaro, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2023 e do Prêmio Jabuti de 2024, ambos na categoria conto. Evidentemente, esses e outros certames assim podem ser problematizados em muitos aspectos, mas, para além do bem e do mal, concursos literários são importantes e necessários como difusores da leitura e como agentes mobilizadores da cadeia do livro.

Foi assim que, movida pela curiosidade, fui atrás de conhecer o livro cuja autora eu desconhecia, mas do qual o gênero literário é o meu predileto. E que feliz encontro! Depois de ler seus quinze contos, posso afirmar com certeza que o livro “O Ninho” de Bethânia Pires Amaro faz jus a todas as suas premiações.

Lançado pela Editora Record em 2023, todas as histórias do livro têm um eixo temático em comum: mães e filhos, entrelaçados por meio de frases típicas do universo da maternidade que lhes servem como epígrafe. Mas não nos enganemos: não se trata de uma leitura só para mães, nem muito menos são historinhas “cor-de-rosa” do discurso “ser mãe é padecer no paraíso”. Pelo contrário: com personagens intensos, em descrições certeiras nos poucos detalhes dados (como Cora e suas celulites ou como Moira e sua aparência de jambo ou como Rute que nunca foi vovó), não há nada de ternurinha piegas nas narrativas desses dolorosos ninhos marcados por cenários de senilidade, alcoolismo e por muitas formas de abuso e abandono, só para citar alguns elementos que nos dizem da crueldade que há no mundo e na humanidade.

Paralelo oculto

Mas o que mais me fez gostar desse livro, além da sua enorme habilidade estilística no manejo das palavras e na construção das frases, é a máxima aplicada em cada uma das histórias (intencionalmente ou não, não sei dizer) daquela lição dada pelo escritor e crítico literário Ricardo Piglia (em “O Laboratório do Escritor”): a de que um bom conto é aquele em que o leitor percebe afinal que, por trás da história narrada na superfície, uma outra (ou outras) acontece(m) em um paralelo oculto.

O conto que fecha o livro com chave de ouro, “Areia”, é um exemplo por excelência dessa lição, num desfecho primoroso que, em poucas palavras, tem o poder de condensar numa rápida cena anos de sentimentos e sensações.

Para ilustrar um pouco de tudo isso, eis um trechinho para nosso deleite:

(…) a pressa que eu não tinha me escapou pela boca e a menina não veio, continuou a encher o balde laranja e a transformá-lo num frágil castelo, daqueles que eu não tinha ânimo para construir, pois qual seria o propósito de levantar algo fadado a desmoronar, a ser levado pelas águas para a mesma areia inerte ao redor, de que serviria senão para lembrar que todo esforço neste mundo era inútil, era inútil pedir a qualquer coisa que permanecesse, mas era cedo demais para falar à menina desses fracassos, por isso eu seguia prostrada sob o sombreiro e, ali nas ondas, ela aprendia sozinha a lição que eu não quis ensinar (…)

Como eu disse acima, senti-me realmente “aninhada” no livro de Bethânia Amaro. Sabe quando a gente para tudo e pensa “agora vou me aninhar no aconchego dessa leitura”? Sabe quando um livro, mesmo de forma ficcional, ao mostrar as agruras das relações humanas, pode nos ensinar a tentarmos ser pessoas melhores (mesmo que não seja esse seu propósito ou maior mérito)?

Gostei tanto do livro O Ninho que fui procurar Bethânia Amaro no Instagram e ela, de maneira muito gentil e simpática, respondeu a algumas questões que lhe apresentei.

Nada melhor, pois, que a própria autora para falar de sua obra:

Entrevista com Bethânia Pires Amaro

A autora d’O Ninho respondeu a algumas questões que a colunista lhe apresentou (Foto: instagram.com/bethaniapiresamaro)

1. Quem é a escritora Bethânia Pires Amaro?

Sou mulher, mãe e duas vezes nordestina: nascida no Recife e criada em Salvador. 

2. Quais são suas preferências e influências como leitora?

Leio de tudo mas ultimamente tenho me dedicado à literatura contemporânea, especialmente produzida no Brasil e na América Latina. Para O ninho, estudei uma série de contistas de referência, como Giovana Madalosso, Jarid Arraes, Marcelino Freire, Rafael Gallo, Cintia Moscovich, Lucia Berlin, Maria Fernanda Ampuero e Raymond Carver. Estes autores produziram, cada um a seu modo, obras com estilos muito próprios e de grande sensibilidade, que me geraram uma experiência muito marcante de leitura. Sempre que escrevo, é isso que procuro: entregar ao leitor uma experiência única e convidá-lo a conhecer algumas especificidades das vivências femininas nos lares brasileiros.

3. Como foi o processo de escrita d’O Ninho?

O processo de escrita do livro durou dois anos, de 2021 a 2023, quando inscrevi o manuscrito no Prêmio SESC de Literatura. De início, era um projeto muito diferente, focado em contos curtos de humor, mas cada vez mais fui percebendo como as temáticas familiares e relacionadas à maternidade se infiltravam no meu texto. A partir dessa percepção alterei o projeto e me dediquei a narrar a realidade de mulheres que me marcaram ou me tocaram de alguma forma, sempre sob o viés doméstico, porque penso que muito do que acontece dentro de casa passa à margem dos debates sociais. Este projeto foi desenvolvido durante o Curso Livre de Preparação do Escritor, da Casa das Rosas de São Paulo, e a Oficina de Criação Literária da PUC/RS com o prof. Luiz Antônio de Assis Brasil, além de outros cursos que frequentei. O livro passou por muitos colegas e pela leitura crítica de Anita Deak, que foi fundamental para o aperfeiçoamento técnico da obra. Enfim, foi um processo lento e que contou com a generosidade de muitos professores e escritores, pelo que sou muito grata.

4. O livro O Ninho foi agraciado com dois grandes prêmios literários do país, o Prêmio Sesc de Literatura e o Prêmio Jabuti na categoria contos. Que dica você daria a escritores iniciantes?

Eu penso que a principal dica é na verdade de conhecimento geral: leia muito, leia seus contemporâneos, leia a literatura produzida no país, e escreva, escreva, escreva, seja permeável às críticas e trabalhe sempre a serviço do texto, sem apegos desnecessários. O coração de um projeto deve ser protegido pelo autor, mas na execução a contribuição dos colegas é fundamental. Por isso é importante se cercar de pessoas que também estão fazendo literatura, para participar dessa troca tão fecunda e tão essencial à conclusão de um bom livro. E, por fim, tenha paciência, estude o necessário, reescreva quantas vezes for preciso, o texto tem seu próprio tempo.

5. O que você, na condição de mulher e autora, pensa sobre literatura identitária? Você acha que a literatura deve ter compromisso com pautas sociais?

Penso que a literatura é livre, então ela não tem que ter nenhum compromisso além de refletir o olhar de seu autor. É claro que é de extrema importância que vozes historicamente silenciadas encontrem espaço no mercado editorial, de modo a refletir as vivências diversas deste nosso Brasil tão desigual, mas a meu ver transformar a literatura em algum tipo de panfleto, dar-lhe funções moralistas ou didáticas, apenas contribui para empobrecê-la. Muitas vezes, colocar a obra de mulheres dentro do nicho de literatura identitária busca restringi-las e negar sua universalidade, como se houvesse a Literatura, com L maiúsculo, produzida por homens brancos heterossexuais do sudeste do país, e todo o resto fosse identitário ou regional. Cria-se assim uma mentalidade de “nós x eles” que acho muito danosa. As pesquisas mostram que temos cada vez menos leitores, o que somente reafirma a importância de abraçar todo tipo de literatura, do modo mais plural possível, e abrir caminhos para que histórias antes marginalizadas cheguem aos leitores, não por algum tipo de concessão social, mas porque são boas histórias. No fim, é isso que o leitor procura.

***

Já estou à espera das próximas histórias, Bethânia!

E, para quem ainda não experimentou o impacto da experiência literária dO Ninho, fica aí a dica então.

Leia também: Adeus, Labov!

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Cellina Muniz

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