Quantos ancestrais são necessários para inventar os cordões nervosos dos animais? Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 26 outubro 2018
Detalhe do desenho de invertebrados marinhos de Ernst Haeckel, de 1904.

Eduardo Sequerra apresenta as novas ferramentas que reacenderam o debate sobre o sistema nervoso central de vertebrados e invertebrados

Muitos anos se passaram desde o Grande Debate Cuvier-Geoffroy que comentei no texto passado. Mas um artigo recente reacendeu a fogueira do debate sobre o tema. E agora com novas ferramentas.

Hoje em dia sabemos que vertebrados e invertebrados não só possuem um sistema nervoso central correndo sobre a linha média, mas também compartilham células parecidas em forma, funcionamento e genes que expressam. Dentre estes genes está uma classe que organiza todo o sistema nervoso quando os animais estão crescendo, ainda como embriões, os genes homeóticos. Estes genes codificam proteínas que regulam a expressão de outros genes, através da facilitação da transcrição pela RNA polimerase. Assim, estes fatores homeóticos, por regularem grandes grupos de genes, conferem identidade àquela célula e tecidos em diferenciação.

Um exemplo de genes homeóticos são os genes hox, que dão identidade a tecidos diferentes ao longo do eixo antero-posterior dos animais. Um deles, Ubx, dá identidade aos segmentos abdominais da mosca-de-fruta. Se Ubx é mutado e perde função, o primeiro segmento abdominal da mosca não só perde sua cara de abdominal como se diferencia em um segmento toráxico, com um par extra de patas e outro de asas! E o curioso é que nós vertebrados também possuímos genes hox que organizam a diferenciação do nosso sistema nervoso. Então, se até nos genes nós somos parecidos com os invertebrados, faz sentido pensar que Geoffroy estava certo e existe um plano base para a organização do corpo de todos os animais bilaterais. E que esse plano base é na verdade o ancestral comum de todos os animais com cordões nervosos sobre a linha média. Mas como nós nunca vimos este ancestral, sempre resta a dúvida se ele foi realmente um só. Ou cordões nervosos podem ter surgidos mais de uma vez?

Desenho de invertebrados marinhos de Ernst Haeckel, de 1904.

Foi com essa preocupação que Martín-Duran e colaboradores revisitaram a árvore filogenética dos animais. O primeiro problema que eles levantaram foi que as primeiras observações de genes homeóticos foram realizadas em animais de laboratório, camundongos como o exemplo de vertebrados e mosca-de-fruta como o exemplo de invertebrados. Só que existem muitos outros invertebrados por aí, e se todos são herdeiros deste ancestral com genes homeóticos, a história tem que dar certo para todos. Ao aumentar esta lista de espécies, estes autores observaram que nem todos os animais tem um cordão sobre a linha média. Na árvore de bilatérios, o primeiro ramo a bifurcar são os Xenacoelomorpha. Estes animais podem ter sistema nervoso difuso, formando uma rede mas sem formar um cordão. E alguns deles podem organizar cordões em paralelo, ao invés de um único sobre a linha média. E esses cordões em paralelo aparecem de novo em Platelmintos, como a planária, o que indica que pode ter acontecido duas vezes. Outros, como rotíferas, fazem cordões que se ramificam. Então, a ideia de que todos os animais tem um ancestral com cordão nervoso central ficou mais complicada.

Mas tem um princípio importante na organização dos animais que pode ajudar nessa análise. Se olharmos para fases cada vez mais precoces do desenvolvimento de cada animal, tendemos a encontrar cada vez mais características em comum com um grupo maior de espécies. Assim, no primeiro mês de gestação, embriões humanos dobram um tubo neural, uma característica compartilhada com todos os vertebrados. Enquanto lá pela vigésima terceira semana estamos formando nosso córtex cerebral, uma estrutura compartilhada somente entre mamíferos. Assim, Martín-Duran resolveram olhar para os embriões dos invertebrados na busca de características que unam todos os cordões.

Esquema sobre Hox genes em ratos e humanos com suas contrapartes filogenéticas em Drosófila. Desenho de Dominic Nolan Paul Thompson.

Em vertebrados como nós e na mosca-de-fruta, existe uma molécula chamada BMP, que mantém as células da ectoderme longe da decisão de se tornarem células neurais. Só que durante o desenvolvimento outras moléculas que inibem a sinalização por BMP aparecem e uma parte da ectoderme decide se tornar neural. Após a formação do cordão, diversas destas moléculas sinalizadoras produzem gradientes de concentração ao longo do corpo que informam às células do cordão que tipo de neurônio elas devem se tornar. Para isso, estas células expressam proteínas como os genes homeóticos. Mas e os outros animais? Apesar dos genes homeóticos formarem domínios dentro do sistema nervoso em anelídeos, como as minhocas, e moscas, a sua expressão nem mesmo é confinada ao sistema nervoso de brachiopoda o nemertea. Esse arranjo de organização da expressão de genes homeóticos nem mesmo é reproduzido em outros cordados invertebrados (sim, animais que possuem notocorda como nós mas não produzem ossos, nossos primos invertebrados mais próximos).

Em conclusão, Martín Durán e colaboradores observaram que apesar da inibição de BMP estar presente em todos os animais, ela não é claramente utilizada para induzir o sistema nervoso em todos eles. Provavelmente, o ancestral comum só a utilizava para padronizar os eixos do corpo. E a expressão de genes homeóticos ao longo do corpo não aparece em todos os animais de simetria bilateral. Por estas razões, estes autores concluem que o sistema nervoso centralizado sobre a linha média provavelmente apareceu em três grupos independentemente. Sendo assim, não existiu um ancestral comum a todos os animais com um cordão nervoso central.

Este é um exemplo de como a inclusão do desenvolvimento dos organismos na formação de teorias evolutivas está mudando a biologia. Este novo campo do saber, que é apelidado Evo-Devo, promete revisitar muitas histórias, como a origem dos cordões nervosos, um debate com mais de 150 anos de idade.

Mas aguardem o próximo texto, por que teve gente que não concordou com as conclusões de Martín-Durán. O debate está vivo!

Referência

Martín-Durán, J.M., Pang, K., Borve, A., Lê, H.S., Furu, A., Cannon, J.T., Jondelius, U., Hejnol, A. (2018). Convergent evolution of bilaterian nerve cords. Nature 553:45-50

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Leia o texto anterior: A origem dos cordões nervosos: uma questão mais antiga que a própria biologia

Eduardo Sequerra

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