Jornalista brasileira que vivia em Beirute quando Israel invadiu o Líbano e fez parte da recente leva de repatriados pelo governo federal relata as semanas de terror vividas pelo povo libanês desde o início dos ataques, refletindo sobre a natureza colonial das barbáries israelenses.
(Leila Salim Leal)
Ao entrar naquele alojamento, o que mais vi foram vidas. Crianças para todo lado, famílias inteiras, gente dormindo, gente comendo, gente com raiva, triste, cansada. Mas também sorrindo, cuidando, acolhendo. Ou simplesmente existindo – o que era muito naquelas circunstâncias. Naquele pequeno prédio, uma das instalações da Universidade Libanesa em Beirute, estavam abarrotadas mais de 400 pessoas em situação precária. Faltava água, os banheiros estavam imundos, a comida era racionada e as salas de aula e corredores não comportavam todos os que precisavam de abrigo. Havia quem dormisse no pátio e mesmo nas escadas.
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Era começo de outubro de 2024, uma semana após um dos mais intensos bombardeios israelenses à capital libanesa. Em 27 de setembro, Israel havia lançado mais de 85 bombas sobre Dahieh, o subúrbio sul de Beirute, em um único ataque. As mega bombas “bunker buster”, como são chamadas, pesam de 900 a 1.800 kg cada e derrubaram seis prédios inteiros, formando crateras imensas que engoliram móveis, roupas, brinquedos e memórias de vidas inteiras. Comprometeram ainda as estruturas de muitos outros edifícios, forçaram o fechamento de comércios locais e desalojaram milhares de pessoas do bairro, uma área residencial densamente povoada.
Muitas das pessoas alojadas naquele prédio tinham chegado após esse ataque, vindas de Dahieh. Outras, no entanto, chegaram dias antes, vindas do sul do Líbano e da região do Vale do Beqaa, a leste do país. No dia 23, início daquela mesma semana, o dia mais mortal da agressão israelense matara ao menos 558 pessoas em 24 horas. Entre elas, 50 crianças e 94 mulheres. Outras 1.800 pessoas (no mínimo) ficaram feridas e milhares de famílias fugiram às pressas, deixando suas casas para trás em busca de abrigo na capital. Poucos dias antes disso, o surreal episódio das explosões de pagers e walkie-talkies havia matado e ferido pessoas simultaneamente pelas ruas, em suas casas e supermercados em vários pontos do país.
Os dias eram de morte, destruição e muito medo. Mas, insisto, a entrada naquele alojamento me mostrou a vida. Era inevitável olhar para cada uma daquelas pessoas e pensar nas suas histórias. Pensar que cada uma delas carregava algo de profundamente seu: seus sonhos, seus desejos, seus planos violentamente destroçados pela barbárie daqueles dias. Histórias de gente, que merecem ser contadas como tal, com integridade, e que não se resumirão jamais aos números que aparecem – quando aparecem – na maior parte da cobertura midiática ocidental sobre o Oriente Médio.
“Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade”, diz a Grândola Vila Morena de Zeca Afonso. Naquela esquina de Beirute, fui acolhida e abraçada por mulheres que me receberam com carinho e as tradições da hospitalidade árabe de forma natural, genuína, e por isso mesmo muito bonita. Puxaram uma das cadeiras da sala de aula transformada em moradia e me convidaram a sentar. Em dias de água e comida racionada, prepararam e me serviram um café. As crianças abriram potes – seus tesouros – e me ofereceram chocolates e biscoitos. Conversamos muito, aprendi muito e entendi um pouco mais da profundidade do que se passava ali.
Não há romantismo no sofrimento, é claro. E nem idealização que busque entre os oprimidos pela barbárie colonial qualquer tipo de “pureza”, essa ideia tão grosseira e simplificadora que serve cruelmente à dominação – ao esperar que só se legitimem as vítimas “perfeitas”. Falamos de gente, com suas contradições e suas existências carregadas de complexidades. Na noite anterior à minha visita, por exemplo, uma das mulheres com quem conversava havia sido atingida por um soco, ao tentar apartar outras duas mulheres que brigavam por um prato de comida. A briga fora tão intensa, me disse, que se generalizou e voaram cadeiras pelo alojamento.
Uma outra menina, adolescente, passara a noite fora – segundo o que se dizia ali, com seu namorado – e virara alvo de julgamentos, carregados de conservadorismo. Naquela manhã, seu pai chegou decidido a tirar a família dali, provavelmente motivado pela exposição da filha aos comentários gerais. Vi essa menina chorar compulsivamente e ser retirada de lá à força, contra sua vontade, por seu pai – sabe-se lá para onde. Vi suas amigas e mulheres mais velhas, colegas de alojamento, a abraçarem e chorarem na despedida, comovidas com um drama pessoal tão brutalmente exposto naquela situação de precariedade generalizada.
O dia no alojamento é uma expressão – talvez a mais cortante – de algo que os meses no Líbano sob agressão israelense me mostraram de várias formas e em vários momentos: quando a morte é cotidiana, viver é resistir. O povo libanês insiste em continuar vivendo, existindo e construindo o seu futuro. Na última semana, após a assinatura do cessar-fogo – já violado por Israel –, vimos imagens de famílias inteiras voltando para suas casas no sul do Líbano, no Vale do Beqaa e no subúrbio de Beirute logo nas primeiras horas de validade da trégua. Celebravam, cantavam e sorriam ao voltar para suas casas, mesmo que muitas delas estivessem reduzidas a escombros.
Ali, a casa é resistência, identidade, pertencimento – e profundamente política. A casa, o território, a terra – todos eles sob ameaça e ataque colonial há 76 anos, desde a criação do Estado de Israel. Como reforçou uma das mulheres com quem conversei no alojamento, todos sabemos que o massacre israelense à Palestina, assim como as agressões ao Líbano e a todos os países da região que ousarem não se alinhar ao seu projeto de “novo Oriente Médio”, não começaram em 7 de outubro de 2023.
No sul do Líbano especialmente, na fronteira com o enclave colonial na Palestina ocupada, são sete décadas de constantes ataques, ameaças, tentativas de invasão nas fronteiras, contaminação de solos e cursos d´água para inviabilizar a subsistência de trabalhadores rurais e tantas outras violações perpetradas por Israel, já fartamente documentadas – mas convenientemente esquecidas quando se advoga pela “paz” no senso comum que o Ocidente quer impor à região. Para além da violência constante na fronteira, o Líbano viveu as invasões israelenses de 1978, de 1982 – marcada pelos massacres de Sabra e Chatila, nos campos de refugiados palestinos em Beirute –, de 2006 e, agora, de 2024.
Estar no Líbano sob agressão israelense reforçou de maneira visceral para mim o entendimento da tarefa inadiável que é o combate ao sionismo, ideologia que sustenta o Estado de Israel, em sua natureza colonial, racista, baseada em limpeza étnica e apartheid. Não há como falar da agressão ao Líbano e do genocídio em curso na Palestina como um “exagero”, uma “reação desproporcional” ou apenas fruto do governo abominável do fascista Benjamin Netanyahu. Enquanto legitimarmos e convivermos com o colonialismo e o apartheid israelenses, enquanto pensarmos em uma “normalidade” sustentada por limpeza étnica e roubo de terras, o ciclo de agressões brutais – que sempre preparam uma próxima, mais intensa que a anterior – seguirá.
Quando se fala em um cessar-fogo no Líbano após tanto horror, e enquanto o genocídio segue e se aprofunda em Gaza, meu maior desejo é que esse possa ser um momento de virada. Que a exposição nua e crua da natureza do Estado de Israel nos ensine a não naturalizar o colonialismo, e não nos permitam um retorno à “paz” da limpeza técnica (mais ou menos) silenciosa. Viver é resistir, me ensinou o Líbano em 2024.
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A coluna Diversidades tem a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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Leila Salim é jornalista e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Vive entre Rio e Beirute desde 2022.
Leila Salim
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