Biólogo fala de bons resultados e problemas da educação pública e da interferência da religião em conteúdos didáticos
Dando seguimento à série de entrevistas, a Coluna do Jucá conversa com o biólogo e mestre em Ecologia e Recursos Naturais, pela Universidade Federal do Ceará, Edson José Cavalcante Amaro. Há quase uma década, ele é professor do Colégio Militar do Corpo de Bombeiros, que integra a Secretaria de Educação do Estado do Ceará. Entre os temas abordados, o professor fala sobre ensino de Evolução nas escolas e como esse conceito pode ser dificultado por questões religiosas.
Coluna do Jucá: O Ceará é apontado como referência nacional no campo da Educação Básica. A que se deve esse status, e quais os gargalos a serem superados?
Edson Amaro: O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mostra que o Ceará se destaca e melhora sua educação a cada ano. A esfera educacional é ampla, complexa e passa por vários setores, mas algumas iniciativas foram criadas e contribuíram para a melhoria dos índices educacionais. Entre elas podemos citar os incentivos aos alunos que tiram as melhores notas nas avaliações externas. Para esses alunos são distribuídos notebooks, custeadas carteiras de motoristas e distribuídas bolsas de estudos. As prefeituras também são incentivadas e recebem uma verba que varia de acordo com os resultados educacionais, o que estimula os prefeitos a desenvolverem ações e terem um comprometimento maior com a educação. Acredito que o grande investimento estadual feito nas escolas profissionalizantes também contribuiu para a melhoria da educação. Acho importante os estudantes terem a opção de ao fim da educação básica estarem aptos para atuarem no mercado de trabalho.
Porém, apesar dessa melhora, eu acredito que estamos longe de sermos considerados um bom modelo que consiga levar educação de qualidade para a população. Há a eterna busca pela valorização dos salários dos professores. Esta valorização incentivaria, por exemplo, os bons alunos a se tornarem professores. Muitos bons alunos que têm o desejo de se tornarem professores desistem ao longo do ensino médio ao descobrirem todas as dificuldades da profissão, e o descompasso salarial que existe com outras profissões mais valorizadas. Outros dois problemas são as salas superlotadas, cerca de 40 alunos ou mais, o que vai na contramão do que é indicado, e a grande quantidade de turmas, as quais cada professor fica responsável — 14, 16 ou até mais. Esse contexto torna difícil o preparo das aulas e avaliações com melhor qualidade, programação de aulas de campo ou aulas em laboratórios de ciências. Esses dois últimos fatores fazem com que cada professor lecione durante o ano para mais de 600 alunos ao mesmo tempo. Em situações como essa, é impossível um acompanhamento mais individualizado que permita identificar problemas particulares e buscar estratégias diferenciadas para cada aluno.
Coluna do Jucá: Como é lecionar no Colégio Militar do Corpo de Bombeiros, que é uma escola modelo da rede estadual e como ela funciona?
EA: Tenho a sorte de poder lecionar em um dos melhores colégios do Estado. O Colégio Militar do Corpo de Bombeiros possui uma boa estrutura física, com salas de aulas confortáveis, quadra poliesportiva, piscina semiolímpica, sala de ginastica, laboratórios de ciências e sala de música, entre outras boas instalações. Como a escola é militar, ela recebe recursos tanto da Secretaria de Educação quanto da Secretaria de Segurança Pública, o que contribui para uma boa estrutura física, além de uma quantidade adequada de pessoas, sejam militares ou civis, os quais contribuem para o trabalho de todo o colégio. A escola também possui parcerias com escolas privadas. As escolas parceiras disponibilizam suas instalações para os nossos alunos. Por meio desta parceria, nossos alunos também recebem material escolar. Nosso corpo docente conta com ótimos professores. Uma ótima escola atrai ótimos professores, e consequentemente ótimos alunos. Para o aluno ingressar no colégio é preciso fazer um teste de seleção, bastante concorrido por sinal. Assim, eu acredito que uma boa estrutura física, bons profissionais e bons alunos fazem do Colégio Militar do Corpo de Bombeiros uma instituição modelo.
Coluna do Jucá: Diferentemente de outros assuntos da Biologia, pode-se afirmar que o ensino de evolução é um desafio para o professor em sala de aula?
EA: O ensino de evolução requer um conhecimento prévio em vários outros assuntos como genética e ecologia. E quando falta essa bagagem, o aluno começa a apresentar algumas dificuldades de assimilação, confunde ou não compreende alguns conceitos fundamentais. Outro problema, mais grave por sinal, é a recusa em aceitar ou tentar entender esse conteúdo por causa de crenças ou religião. Mesmo a evolução sendo vista de forma superficial no ensino médio, ela toca em pontos como origem da vida, surgimento dos seres vivos e o parentesco entre humanos e primatas. Dessa forma alguns alunos entram em conflito com suas crenças e às vezes negam o conhecimento apresentado. Sempre abordo o tema evolução com precaução, justamente para evitar esse tipo de problema. Além disso, busco estimulá-los a buscar novas formas de pensar e questionar as “verdades” que trazem consigo.
Coluna do Jucá: Criticava-se muito o antigo modelo de seleção para o ingresso nas universidades (vestibular tradicional). Porém esse modelo foi substituído há algum tempo pelo ENEM. Este modelo ameniza um pouco as distorções no acesso à universidade pública, juntamente com o sistema de cotas. Você acha que a escola pública ganhou mais protagonismo com ambos os sistemas?
EA: Uma vez li um questionamento, e nunca mais esqueci: “quantos professores negros você teve ao longo do seu curso de graduação?”. Eu tive apenas um professor negro ao longo da minha formação acadêmica, juntando Graduação e Mestrado. Isso demonstra como nossa sociedade ainda não superou e corrigiu a atrocidade que foi o período de escravidão. Os cargos de maior destaque social ainda são pouco ocupados por negros. O sistema de cotas veio para corrigir essa distorção e tentar diminuir a desigualdade social, já que também beneficia pessoas de baixa renda. Não sei se o sistema de cotas é o melhor caminho para resolver esses problemas, mas também não vejo outro que consiga resolver de forma tão rápida essa situação. Tanto o ENEM como o sistema de cotas têm promovido uma maior entrada de estudantes negros e de baixa renda nas universidades públicas as melhores do pais. E isso é válido. Alunos beneficiados por esses sistemas já estão entrando no mercado de trabalho e eu vejo sim uma mudança de pensamento e de atitude positivas nesses jovens formados, inclusive conversando com ex-alunos que hoje cursam ou já se formaram em universidades públicas.
Coluna do Jucá: A Educação Básica contempla, ou pelo menos deveria contemplar, aspectos essenciais e universais na formação de crianças e adolescentes. Nesse contexto, uma educação científica adequada beneficiaria a sociedade como um todo. Porém, durante os anos da vida escolar de um aluno, esses saberes direcionam-se quase exclusivamente para a realização do ENEM. É possível mudar esse contexto? E como?
EA: É possível, porém é muito difícil. A competição para entrar em uma boa universidade é muito acirrada, e como o ENEM é a porta de entrada, os alunos vão sendo treinados desde cedo a resolver questões similares ao provão, buscando sempre “bizus” e formas de decorar o conteúdo. O conteúdo cobrado no ENEM é extenso e, na maioria das vezes, não sobra tempo para trabalhar outras temáticas de forma mais aprofundada. Acredito que seja necessária uma forma diferente de avaliação para ingresso na universidade. A reforma curricular nacional é uma tentativa de mudar essa realidade. Apesar das inúmeras críticas, é uma tentativa de minimizar parte desse problema. Uma forma que o professor pode minimizar esse problema, diante de tantas dificuldades, é sempre indicar leituras extras aos alunos, além dos livros textos escolares, realizar avaliações onde o conteúdo não seja cobrado de forma semelhante ao ENEM e o aluno possa se expressar de várias outras formas, através da música, dança ou apresentações orais. As feiras artísticas e culturais que ocorrem ao longo do ano no colégio são ótimas opções para o aluno pesquisar, aprender, expressar-se e demonstrar conhecimento adquirido de várias outras formas, além das tradicionais questões objetivas do ENEM.
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Thiago Jucá
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