“Precisamos da efervescência dialogada para evoluir” Coluna do Jucá

quinta-feira, 16 agosto 2018
A professora Juliana Brasil com seu grupo de pesquisa.

A bióloga Juliana Brasil fala de sua pesquisa sobre parto humanizado e bases genéticas da homossexualidade

A entrevista dessa semana foi realizada com a professora Juliana Nogueira Brasil. Ela é bióloga pela Universidade Federal do Ceará, com mestrado e doutorado em Química Biológica pelo Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua formação foi pautada nas áreas de biotecnologia, biologia molecular e genética, nas quais se aperfeiçoou por meio de estágios na Iowa State University, Estados Unidos, e no Wageningen Plant Research, na Holanda e doutorado sanduíche no Department of Plant Systems Biology, na Bélgica. Atualmente é professora de Bioquímica e Genética no Curso de Medicina, e professora de Genética do Comportamento Humano no curso de Psicologia da Unichristus, onde pesquisa sobre medicina baseada em evidências no parto humanizado e bases genéticas da homossexualidade.

Coluna do Jucá: Uma matéria recente publicada no El País chama atenção para o protagonismo mundial do Brasil em relação às cesáreas. De acordo com o Ministério da Saúde, 55,5% dos partos feitos no país em 2015 foram cesáreas. Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza que a taxa “ideal” de cesarianas deve estar entre 10% e 15%. Você acha que uma mudança na formação básica dos estudantes da área de saúde, em especial da medicina, seria uma alternativa a curto prazo para reverter essa “epidemia”?

Juliana Brasil: A epidemia é bem mais grave: no sistema privado chegamos a 84% de cesárias no Brasil. E veja bem, é importante ressaltar, logo de início, que a cesária, em si, não é um problema. Essa cirurgia revolucionou a medicina obstétrica e salva vidas frequentemente. O problema decorrente do grande número de cesárias está no aumento do número de recém-nascidos (RN) prematuros, ou com problemas funcionais devido à antecipação do parto, entre outros problemas que só agora estamos começando a entender. Ainda hoje, a melhor forma de saber se o bebê terminou seu desenvolvimento intra-uterino e está apto a nascer é esperar o trabalho de parto espontâneo. Quando se opta pelo parto cesário eletivo, ou seja, quando a grávida agenda uma data para a cirurgia, pode ocorrer um erro no cálculo da idade gestacional, que os exames de imagem podem não detectar. Daí o RN pode apresentar dificuldades respiratórias, termoregulatórias, na alimentação, entre outros.

Posto isso, agora podemos voltar à pergunta. A resposta é sim. Discutir os novos achados da medicina baseada em evidências em sala de aula, levantar dados de prematuridade, contrapor aos índices de problemas em RN, comparar com as taxas de cesárias, levar o aluno a esta reflexão e conclusão, são mecanismos eficientes para uma mudança no panorama atual, em curto a médio prazo. Porém, nem toda a mudança há de partir apenas dos nossos profissionais de saúde. Existe uma cultura estabelecida que naturaliza a cesária, pois, há várias gerações, nós nascemos de partos cesários. A informação sobre essa medicina baseada em evidências precisa chegar a todos, para que as escolhas de cada gestante tenha consistência teórica e prática. Lembrando que, mesmo sendo informada sobre todas as vantagens e desvantagens dos tipos de parto, se a decisão da mulher for pelo parto cesário eletivo, essa decisão deve ser respeitada, na minha opinião.

Coluna do Jucá: Atualmente existe muita discussão acerca do parto humanizado. Independentemente do parto ocorrer via abdominal ou vaginal, em ambiente hospitalar ou residencial, o termo humanizado não deveria ser aplicado a todos os tipos de partos?

JB: Sim. E o termo humanizado deve ser, e já é, aplicado a todos os tipos de parto. Então, vamos esclarecer o que é parto humanizado. A humanização do parto é um conjunto de práticas que buscam readequar todo o processo de parto numa perspectiva mais acolhedora e menos medicalizada e intervencionista. Esta forma de pensar o parto nos permite reorganizar toda a realidade da obstetrícia que é feita atualmente, repensando qual o lugar da mulher na protagonização do seu parto, rever as necessidades e protocolos das técnicas e manipulações médicas aplicadas à mãe e ao bebê e, até, repensar o que é violência obstétrica.

É possível aplicar na prática esse conceito de parto humanizado para o Sistema único de Saúde?

JB: Levar o modelo humanizado ao SUS é um desafio possível, que deve ser perseguido com cuidado e persistência. É mais uma luta feminina a ser travada, porém, essa luta não exclui os homens, afinal, eles também querem/devem se envolver com o parto de seus filhos. E já temos boas notícias e diversas conquistas a comemorar em Fortaleza. No meu trabalho de pesquisa sobre Parto Humanizado, eu e minhas alunas temos acompanhado partos e pós-partos nos hospitais de referência do Ceará: Hospital Geral Cesar Cals (HGCC), da rede pública; e Hospital São Camilo Cura d`Ars, da rede privada. Este último já é referência nacional em partos humanizados, equipado com suítes PPP (pré parto, parto e pós-parto), pois faz parte de um projeto de Parto Adequado no Brasil desenvolvido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, o Hospital Israelita Albert Einstein, o Institute for Healthecare Improvement e o apoio do Ministério da Saúde. O Hospital São Camilo, apesar de privado, acolhe uma pequena fatia de gestantes do SUS. Toda essa estrutura está sendo pensada e almejada no HGCC, que neste momento passa por mudanças reais, porém, ainda pequenas no caminho do parto humanizado. Entendemos que o grande volume de gestantes e o investimento ainda inadequado de verba do estado dificulta alcançar a grande revolução que já assistimos acontecer no setor privado. Mas, perceber que há esta preocupação pelos profissionais e diretoria deste hospital nos anima bastante.

Coluna do Jucá: A ideia de que a microbiota vaginal é fundamental para o desenvolvimento adequado do sistema imunológico dos recém-nascidos é uma hipótese que vem sendo levantada, como aponta um estudo recente publicado na Nature Neuroscience. Nesse contexto, você vislumbra que velhos paradigmas estão sendo quebrados e novos estão surgindo, os quais poderiam alavancar o parto vaginal? Ou até mesmo, diminuir a taxa de cesáreas, a qual seria feita apenas em casos de necessidade?

JB: A grande revolução da medicina atualmente se chama evidência científica. A evolução da medicina, por muito tempo, se deu por empirismo. Passamos pela era dos barbeiros-cirurgiões e chegamos à grande produção científica e tecnológica que temos hoje. Na obstetrícia houve também uma grande mudança, porém ainda mais brusca. Saímos do parto sob cuidado de parteiras em ambiente domiciliar para o hospital, em cirurgia cesária, em muito pouco tempo. Em 1920, nasce a ideia de que a gravidez e o parto são processos patológicos e devem ser tratados como tal, foi quando houve a recomendação de sedação e uso de fórceps, nos Estados Unidos. Na década de 70, os partos hospitalares já eram considerados norma e, na década de 90, os hospitais dominavam a grande concentração dos partos nos países mais desenvolvidos, e no Brasil também. A partir de então, a rotina do procedimento e protocolos de partos abdominais e vaginais entram num processo de padronização, como uma linha de montagem industrial, tendo o médico como figura central, fazendo-se intervenções que facilitavam a manipulação médica e usando de mais tecnologia para corrigir qualquer mudança do padrão preestabelecido. Ora! Se vivemos tempos em que se fala em terapia gênica ou uso de tecnologia genética para adequar qualquer tratamento para as especificidades do indivíduo, na obstetrícia não seria diferente. O novo pensamento sobre o parto e suas reivindicações de respeito ao processo individualizado é uma tendência mundial do nosso tempo. Sem contar as recentes e relevantes descobertas científicas sobre o tema, como a interferência imunológica do bebê pela microbiota vaginal; a observação de que há grande facilitação do processo de mama pelo bebê quando há contato pele-a-pele e oportunidade de mama na primeira hora após o parto; o entendimento das consequências do coquetel de hormônios deslanchados durante o trabalho de parto na fisiologia da mãe e do bebê e sua influência no vínculo afetivo, prevenção de depressão pós-parto e etc. Todas estas descobertas vieram da medicina baseada em evidências, que modifica protocolos médicos preestabelecidos para melhor.

Coluna do Jucá: Professora, é um desafio tratar da homossexualidade humana envolvendo aspectos de identidade e afinidade, e não apenas aqueles de cunho biológico, como os genéticos e bioquímicos?

JB: Infelizmente, ainda é um grande desafio. É preciso ter tanto cuidado na forma como se fala sobre esse assunto, que isso se reflete na baixa produção científica sobre o tema. Eu mesma já fui aconselhada por colegas professores a “não mexer em vespeiros”, quando comentei sobre minha intenção de pesquisa nessa área. Nós somos constantemente desencorajados a travar debates construtivos sobre sexualidade, e é uma pena, pois precisamos da efervescência dialogada para evoluir nossos pontos de vista. E, para piorar, a esta discussão-tabu precisamos adicionar a real complexidade biológica do tema. Hoje, entendemos bem sobre a formação dos órgãos sexuais da nossa espécie. No entanto, sabemos muito pouco sobre como se desenvolve (1) a identidade de gênero, que é como o indivíduo se reconhece sexualmente, e (2) a orientação sexual, que é a atração sexual. Como estamos falando de comportamentos nestes dois casos, temos que levar em consideração a influência da genética herdada, do meio onde vive e se desenvolve esse indivíduo e a epigenética, que é a conversa entre o DNA e o ambiente.

Isso tudo torna a discussão tão complexa que dá margem a crenças e empirismos. Mais uma vez, nossa simplificação cartesiana, na tentativa de explicar processos complexos, trouxe alguns malefícios a nossa forma de pensar o processo em questão. Claro que seria muito mais simples se existissem apenas homens (possui órgão sexual masculino), cis (se reconhecem como homens), heterossexuais (se sentem atraídos por mulheres). Idem para mulheres. Porém, como já percebemos ao longo de toda essa entrevista, as padronizações excluem nossas individualidades, e isso nos traz problemas.

Coluna do Jucá: O debate em torno da cura gay suscitou muita discussão, e continua até hoje. A respeito desse assunto, muitas pessoas utilizam argumentos religiosos para defender seus vieses ideológicos, os quais impedem uma discussão de cunho científico sobre o assunto. Com base em tais argumentos, defende-se até a “plena liberdade científica”. É possível superar esse gargalo, e fazer uma discussão séria sobre esse assunto?

JB: É possível, mas temos algumas dificuldades de separar as crenças das observações, afinal somos humanos. Por exemplo, dados de diversos estudos das últimas três décadas demonstram que há maior coincidência de orientação sexual entre irmãos gêmeos idênticos (que compartilham 100% do seu material genético) do que gêmeos não-idênticos. Esse dado quer dizer que, se um gêmeo idêntico é gay, há uma maior probabilidade do outro ser também. Ou seja, quanto mais parecido geneticamente forem os irmãos, mais chances de terem a mesma orientação sexual. Esse dado reforça que a influência genética na homossexualidade é maior que a influência do meio. Porém, é certo que não podemos excluir a influência do ambiente nessa característica, por isso muitas pessoas entendem que existe uma “escolha” a ser feita quanto a esse comportamento. Para persistir na discussão, trazendo dados cientificamente aceitos, preciso entrar em assuntos um tanto difíceis de serem acompanhados pela maioria, que simplesmente não conseguem acessar meus argumentos (porque ninguém tem obrigação de entender de epigenética, por exemplo, não é mesmo?). Claramente, cabe ao cientista tentar se fazer entender, usar ferramentas didáticas e linguagem acessível, e esse exercício é extremamente trabalhoso. Além disso, pesa o que eu falei acima, de que é muito difícil buscar a forma mais correta de argumentar sobre o tema, para não cair em armadilhas, nem ofender a quaisquer das partes. Discussões muito sérias sobre o assunto já ocorrem, mas incluir a luz da ciência nesta discussão e, principalmente, excluir crenças e preconceitos, é que são nossos verdadeiros gargalos. Felizmente existem pessoas dispostas a aprofundar-se nestes temas.

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Leia o texto anterior: Envolvimento de pesquisadores no legislativo é uma necessidade

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás

Thiago Jucá

2 respostas para ““Precisamos da efervescência dialogada para evoluir””

  1. Parabens a profa Juliana pela entrevista e ao grupo de pesquisa pela revisita ao processo de atencao ao parto e nascimento em nosso Estado.Um dialogo aberto e verdadeiro sobre temas sensiveis e o que podera trazer a todos os movimentos adequados para o alcance das transformacoes necessarias!

  2. Juliana Nogueira Brasil disse:

    Professora Dirlene, sempre ao nosso lado e parte integrante e importantíssimo do nosso trabalho! Muito obrigada pela generosidade dedicada a este projeto desde o nascimento. Grande abraço!

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