Política sobre o aborto: qual é o papel da ciência? Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 9 agosto 2024

Especialista em embriologia chama o leitor a analisar o que se sabe sobre embriões a partir do método científico

Caros, bem-vindos de volta à coluna Biologia do Envolvimento. Para os que não me conhecem, sou Eduardo Sequerra, professor do Instituto do Cérebro-UFRN e especialista em embriologia do sistema nervoso. Nessa coluna discutimos questões importantes que envolvem embriões, evolução e sociedade.

Em 2018, a Ministra Rosa Weber do STF chamou uma audiência pública para discutir com diversas entidades o conteúdo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442. Nessa ADPF, o PSOL argumenta que é inconstitucional criminalizar a mulher que aborta ou autoriza alguém a abortar o seu embrião até a décima segunda semana gestacional. Motivado por essa discussão, escrevi uma série de artigos para o Nossa Ciência divulgando o que sabemos sobre embriões em diferentes idades etc. Esses textos todos foram escritos sob a expectativa de que a ADPF fosse votada a qualquer momento, mas não foi.

Não será votada tão cedo. O atual presidente da casa, Ministro Luís Roberto Barroso, declarou que a sociedade não está pronta para apoiar a causa que o parece boa. Imagino que esta seja a de que a ADPF faz todo o sentido. Ora, não é o STF que deve proteger os direitos daqueles que a sociedade não está interessada em defender? Bom, no meio dessa falta de vontade de decidir, uma coisa aconteceu. Prestes a se aposentar do STF, a Ministra Rosa Weber, relatora da ADPF, proferiu seu voto (Foto). Os convido então, a analisar o que sabemos sobre embriões através do método científico.

Antes de falarmos sobre embriões, é bom salientar que a ADPF442 versa sobre como a criminalização do aborto fere diversos direitos constitucionais da mulher, como o direito sexual e reprodutivo, assim como gera desigualdade, o estado não interfere na vida sexual e reprodutiva de homens da mesma maneira. Sendo assim, o argumento é que a criminalização do aborto é inconstitucional. Dito isso, o que vamos discutir aqui é o que sabemos sobre os embriões e sua relação com a ADPF.

A principal questão é que os proponentes resolveram discutir a constitucionalidade do aborto até 12 semanas. Isso é, por mais que a atual composição do STF concorde com a ADPF, qualquer mulher grávida há mais tempo do que 12 semanas e que quiser abortar poderá ser criminalizada. Essa decisão deixa descobertas muitas mulheres que descobrem sua gravidez próximo ou após 12 semanas. Quais são então, os argumentos para o marco de 12 semanas?

O argumento para usar 12 semanas como um marco é que até esta data a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera seguro o método químico de aborto. Este é realizado com duas drogas, a mifepristona, um inibidor do receptor de progesterona, e o misoprostol, um análogo de prostaglandina. Estes dois hormônios são produzidos pela placenta e enquanto a progesterona é responsável por manter a gravidez, aumentos nos níveis de prostaglandina induzem o término da gravidez. A OMS considera seguro o uso desse método mesmo fora de ambiente hospitalar e aplicado por profissionais que não necessitam ser médicos. Após isso, a OMS recomenda que o aborto seja feito em um hospital. O que aconteceria se fosse inventado um novo método mais seguro? Teríamos que discutir tudo de novo no STF? Não é um critério bom para definir essa data.

Vejam bem, se as 12 semanas não são um marco no desenvolvimento do embrião, não faz sentido limitar a descriminalização do aborto a este período. Basta dar acesso para grávidas fazerem aborto em ambiente e com profissionais adequados que o problema está resolvido.

No entanto, o problema permanece. Não temos um consenso sobre até que idade gestacional podemos interromper a gravidez. Como discuti em textos passados, os defensores mais ferrenhos de que o embrião tem o mesmo direito à vida que pessoas nascidas, defendem a ideia de que o zigoto recém fertilizado já é uma pessoa. Esta é uma discussão moral sobre em que momento o embrião se torna uma pessoa. No entanto, apesar de ser uma discussão moral, ela precisa levar em conta informações fornecidas pela ciência. Os marcos de desenvolvimento que são essenciais para as diversas visões de quando o embrião se torna uma pessoa são:

  1. Fertilização: Quando o zigoto se forma pela fusão entre os gametas dos pais, se forma o genoma do novo indivíduo. Segundo essa visão, esse genoma fornece todas as características da nova pessoa, incluindo personalidade, capacidade intelectual etc. O STF discutiu a constitucionalidade da lei de Biossegurança, a lei que regulamenta o uso de células tronco humanas para pesquisa, e concluiu que embriões em fases anteriores à implantação não são pessoas.
  2. Gastrulação: Quando as células do embrião avançam entre a fase de pluripotência, quando mantém a possibilidade de se diferenciar em qualquer tecido do nosso corpo, para a fase de multipotência, quando se comprometem com a identidade de um dos folhetos embrionários. A partir dessa fase, uma célula da ectoderme pode ainda se diferenciar em uma célula da pele ou cérebro, mas não de coração, intestino ou músculo. A partir da gastrulação o bolinho de células que forma o embrião não pode gerar mais gêmeos. Gêmeos nos mostram que diversas características da pessoa, como o humor e a personalidade, não são definidas no zigoto.
  3. Início da atividade cerebral: Legalmente deixamos de ser uma pessoa quando os médicos deixam de detectar atividade elétrica em nossos cérebros por exame de eletroencefalografia. Alguns cientistas defendem a ideia de que, para manter um critério proporcional, nos tornamos uma pessoa somente quando nosso cérebro se torna ativo. A atividade cerebral, no entanto, não liga de repente. Para defender essa visão temos que lidar com a realidade de um cérebro que matura sua atividade gradualmente ao longo dos segundo e terceiro trimestres.
  4. Nascimento: O nascimento representa um marco de independência metabólica do feto em relação à mãe. Só quando o feto ganha essa independência, ele passa a representar uma pessoa viável. Essa visão vai de encontro ao desenvolvimento de tecnologias de manutenção de fetos prematuros. No Reino Unido, por exemplo, o aborto que já foi legal até as 28 semanas caiu para 24 devido ao surgimento de tecnologias para manter a vida de fetos com essa idade. Vamos rever os conceitos ilimitadamente enquanto a tecnologia avança?

Assim, a ADPF442 é um avanço na discussão sobre os direitos constitucionais das mulheres. A escolha do aborto até as 12 semanas talvez tenha sido uma decisão política, para não induzirmos no público a imagem de embriões mais velhos, mais parecidos com bebês, sendo assassinados. Essa data resolve o problema de pessoas que engravidam, descobrem a gravidez com agilidade e tomam a decisão dentro do prazo. Mas deixam vulneráveis aquelas que não tem apoio, são perseguidas e tem que se defender sozinhas. Nós vamos continuar prendendo-as?

É chegada a hora da ciência levantar dados e discutir sobre os embriões. O que sabemos sobre quando eles começam a responder a estímulos estressantes, apresentar a percepção de estímulos dolorosos e a desenvolver a experiência consciente de dor? O que significa ter atividade cerebral realizada por neurônios sem bainha de mielina? São muitas as perguntas por responder. Essas informações são importantes para cercarmos de cuidados éticos os procedimentos de aborto. No entanto, temos que entender a relação entre as duas partes da gravidez, a mãe e o embrião. Citando o voto da Rosa Weber:

O Estado, portanto, tem legítimo interesse (e deveres) na proteção da vida humana, configurada no embrião e no nascituro, que não as pessoas nascidas, e assim o faz, conforme legislação civil. Todavia, a proteção desse bem jurídico encontra limites no Estado constitucional, de modo que a tutela do bem não pode inviabilizar, a priori, o exercício de outros direitos fundamentais.

“O Estado, portanto, tem legítimo interesse (e deveres) na proteção da vida humana, configurada no embrião e no nascituro, que não as pessoas nascidas, e assim o faz, conforme legislação civil, por exemplo. Todavia, a proteção desse bem jurídico encontra limites no Estado constitucional, de modo que a tutela do bem não pode inviabilizar, a priori, o exercício de outros direitos fundamentais. A proteção do nascituro, considerada a expressão do valor da vida humana em potencial, não coincide com o regime jurídico dos direitos fundamentais, seja quanto ao critério da titularidade seja quanto ao âmbito de proteção. Daí porque o argumento em si de ponderação entre direitos do feto e da mulher gestante, no caso da interrupção voluntária da gestação, é equivocado. O que há é ponderação entre valores constitucionais de proteção.”

Leia também: Por que 12 semanas para o aborto?

Eduardo Sequerra é professor do ICe-UFRN

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