A partir desta coluna, o professor Antonino Condorelli passa a ser responsável pela coluna Diversidades
Quando me convidaram para assumir a curadoria desta coluna, uma sutil angústia se misturou à alegria pelo convite e ao entusiasmo pelo desafio. A tarefa me confronta com um dilema incontornável: como escrever sobre diversidades não manifestando nem ecoando, mesmo sem intenção, o olhar que se autoproclamou e se enxerga como “universal”. Aquele olhar que não precisa provar sua humanidade, porque a assume como pressuposta, nem brigar pela legitimidade de sua fala, porque já a tem. O olhar que se acha dono do conhecimento autêntico e dos seus únicos modos de produção válidos, que pode pensar e falar sobre tudo porque está acima de tudo, pois foi ele que nomeou, caracterizou, classificou e organizou as diferenças, as identidades, as especificidades. O olhar que não se sente localizado, generificado e racializado, que se vê como não específico, como o modelo geral e abstrato do humano. Estou falando, é obvio, do olhar que me marca, mas que não concebe a si próprio como marca: o olhar de um homem cisgênero, branco, heterossexual, nascido em um país europeu (e bebeu desde tenra idade, portanto, da matriz de pensamento que se crê dona da universalidade e da ciência), docente e pesquisador universitário.
Um olhar tão privilegiado, tão confortável que o dilema que estou me auto-impondo é como escrever sobre diversidades; o de se posso fazê-lo sequer está em discussão, pelo menos no pensamento dominante. Quando Gayatri Spivak, na década de 1980, perguntou Pode o subalterno falar?, partia do pressuposto de que ao subalternizado (subalternidade não é propriedade inerente, mas condição construída) não é reconhecido esse direito nem sobre ele mesmo. Mas, no mainstream intelectual e acadêmico, “pode o hegemônico falar (sobre o subalterno e qualquer outra coisa)?” nunca foi uma questão.
Por sorte, há muita vida fora do mainstream. Bem mais do que dentro, na verdade. Vida que o olhar dono do conhecimento “universal” tipificou, racializou, generificou, enfim, rotulou e hierarquizou das mais diversas formas e que há muito tempo vem dizendo – às vezes gritando, por necessidade – que não tem só sua própria voz e capacidade de falar de si e por si mesma, mas que tem propriedade para pensar e falar sobre o que quiser, que falar de si é falar de como funciona e se estrutura tudo e, o que suscita mais escândalo e alvoroço nas universais mentes brancas masculinas cis hetero acadêmicas, que essas mesmas mentes e seus respectivos corpos (não separados nem separáveis) são tão localizados e específicos quanto quaisquer outros.
Uma escuta humilde das múltiplas vozes dessa vida além do mainstream talvez possa me ajudar a cumprir a tarefa que me foi incumbida escorregando o menos possível na arrogância epistêmica do homem branco intelectual que pensa “dar voz”, “dar visibilidade” ou até mesmo “compreender” e “explicar” os sujeitos que o pensamento no qual fui moldado inferiorizou. Mais do que isso, talvez me ajude a compreender melhor o lugar de fala a partir do qual construo meu pensamento; um conceito, esse de lugar de fala, que – como Djamila Ribeiro enfatiza em muitos de seus escritos e de suas intervenções públicas – é muito mais profundo e complexo daquilo a que a militância virtual conservadora, numa mistura de ignorância e manipulação, o reduziu.
Graças à escuta e à leitura de pensadoras feministas negras que pude compreender que afirmar um lugar de fala não significa reificar identidades, como os “críticos” do conceito alegam, mas tomar consciência de que múltiplos condicionamentos contribuem para que vejamos as coisas como as vemos e sintamos da forma como sentimos.
Foi, aliás, graças à escuta e à leitura de pensadoras feministas negras (cujas ideias o feminismo hegemônico trata como recortes, pois o ponto de vista, as realidades, condições e reivindicações das mulheres negras são vistas como “específicas”, secundárias com relação às “questões gerais” da “mulher”… categoria universal que é sinônimo, claro, de mulher branca) que pude compreender que afirmar um lugar de fala não significa reificar identidades, como os “críticos” (sempre brancos e sempre homens) do conceito alegam, mas tomar consciência de que múltiplos condicionamentos contribuem para que vejamos as coisas como as vemos e sintamos da forma como sentimos. O fato de ser homem, branco e europeu, de ter sido socializado de certa forma e ter tido determinadas vivências sociais faz com que, queira ou não, certas tendências e pressupostos estejam entranhados em meu modo de perceber, de sentir e de pensar. Tomar consciência desses condicionamentos pode me ajudar a compreender os limites, as incompletudes e os pré-direcionamentos de meu modo de ver e de sentir. Pode me predispor, portanto, para o respeito e a acolhida de outras perspectivas e para o diálogo com conhecimentos produzidos a partir de outros lugares, enriquecendo e aprofundado minha maneira de compreender o mundo. Pode me ajudar, também, a ter uma visão mais nítida das condições e experiências que compartilho e das que me são alheias. Saber que nunca corri o risco de ser assassinado “por acidente” devido à minha cor da pele, não saber o que significa sofrer assédio e violências simbólicas e psicológicas todos os dias nas ruas e nos ambientes de trabalho, não ter frequentado terreiros de candomblé e nunca ter pescado num mangue me ajuda a valorizar os saberes produzidos pelos corpos que vivem essas experiências.
Ler e escutar feministas negras como Carla Akotirene me ajuda a perceber que lugares subalternizados não são identidades rígidas, mas posições mutáveis que se produzem nos cruzamentos de múltiplas avenidas de opressão, e que um mesmo corpo pode compartilhar diferentes condições em diferentes encruzilhadas. Longe, portanto, de enrijecer diferenças e coloca-las em posições estanques, como muitas vozes que se veem como não racializadas criticam em nome de uma suposta “universalidade” do humano e do saber por ele produzido (na verdade sinônimos, já sabemos, de “homem ocidental” e de “conhecimento científico-acadêmico”), o lugar de fala é aberto e multidirecional.
Ler e escutar feministas negras como Patricia Hill Collins me ajuda a não confundir lugar de fala com experiência individual, a entender que um corpo/sujeito que ocupa certo conjunto de posições no sistema social não desenvolve necessariamente um pensamento consciente das próprias condições sociais de produção. O pensamento não é um produto automático do lugar de fala. Assumir um lugar de fala é um ato político que pressupõe a construção de uma consciência das próprias experiências compartilhadas. O que significa, por exemplo, que “testemunhos” (autênticos ou não) tão usados nas redes sociais para desqualificar lutas por direitos, como negros periféricos afirmando que não existe racismo porque nunca o vivenciam, mulheres negando a ideia de cultura do estupro por nunca ter sofrido as violências cotidianas que ela engendra e etcétera são interpretações pessoais de uma (suposta) experiência individual, não afirmações originadas de lugares de fala, pois estes se referem ao reconhecimento de condições sociais compartilhadas.
Assumir um lugar de fala é um ato político que pressupõe a construção de uma consciência das próprias experiências compartilhadas
Ler e escutar feministas negras como Angela Davis me ajuda a compreender que refletir sobre opressões a partir de marcadores sociais entrecruzados não significa pensar de forma “identitária”, em contraposição a um suposto pensamento “estrutural”, e que lutas feministas negras, transfeministas, antirracistas, LGBTQIA+ e de outros grupos subalternizados não são por “reconhecimento de identidades” desconsiderando as estruturas gerais de opressão. Ler e escutar Angela Davis me ajuda a perceber que pensar as opressões da mulher negra, da mulher trans ou da juventude negra periférica significa pensar as relações gerais de poder e de saber, estudar como a matriz colonial – capitalista, racista e patriarcal – de produção de subjetividades e de regulação da vida molda, hierarquiza e controla os corpos definindo as várias formas de dominação.
Ler e escutar feministas e artistas negras como Grada Kilomba me ajuda a entender que afirmar um lugar de fala subalternizado não significa “silenciar” nem “desautorizar” ninguém, não significa de forma alguma “impedir” que brancos falem sobre negritude ou sobre povos indígenas, que heterossexuais falem sobre homossexualidade, que homens falem sobre feminismo e etcétera. Até porque, como Djamila Ribeiro lembra com frequência em suas palestras, pensadoras ou ativistas sociais negras, LGBTQIA+ ou de outros grupos inferiorizados não possuem poder estrutural para silenciar ninguém: os homens brancos cis e hetero que se sentem “silenciados” ou “censurados” porque, em algum artigo ou intervenção pública, foram criticados (que atrevimento!) por (minha nossa, que absurdo!) uma mulher, de repente (ai, meu deus!) negra ou lésbica, continuam tendo o mesmo espaço que sempre tiveram nos grandes jornais e nas grandes emissoras de rádio e de tevê, continuam tendo o mesmo acesso privilegiado às grandes editoras, às tribunas políticas, às cátedras, periódicos e eventos acadêmicos, o mesmo poder de voz que sempre tiveram… e continuam atacando, desqualificando, deslegitimando e apagando todo dia, com sistemático esmero, qualquer voz ou pensamento que ameace seu trono de donos da palavra. Ler e escutar pensadoras e artistas negras como Grada Kilomba ajuda a compreender que todos podem pensar e falar sobre tudo, assumindo que o fazem de uma determinada posição que nunca é universal; que o subalternizado não é obrigado a pensar e falar apenas sobre si mesmo, que uma mulher trans negra pode falar sobre biologia e direito tanto quanto homens cis brancos falam sobre transgeneridade, negritude e suas intersecções; que afirmar um lugar de fala subalternizado e assumir um lugar de fala privilegiado significa pedir que quem sempre foi autorizado a falar, quem sempre teve a legitimidade de seu pensamento e de sua palavra garantida, agora comece a escutar.
Ler e escutar pensadoras e artistas negras como Grada Kilomba ajuda a compreender que todos podem pensar e falar sobre tudo, assumindo que o fazem de uma determinada posição que nunca é universal
É isso que me proponho a fazer como curador, e eventual autor, desta coluna: escutar pensamentos, sentires, modos de vida, lutas, práticas e experiências não hegemônicos; ouvir – e não “dar voz” do alto de minha intelectualidade acadêmica – as diversidades, para que me interpelem e questionem. Espero que isso me ajude a transformar, enriquecer e ampliar os pressupostos que fundamentam meu pensamento, a redefinir meus critérios de produção de conhecimento e a viver, a sentir, a incorporar mais (pensamentos subalternizados já me ensinaram que não há conhecimento sem corpo) as diferenças.
É isso que me proponho a fazer como curador, e eventual autor, desta coluna: escutar pensamentos, sentires, modos de vida, lutas, práticas e experiências não hegemônicos; ouvir as diversidades, para que me interpelem e questionem.
Aos que se reconhecem em meu mesmo lugar de fala, digo: precisamos abrir-nos aos questionamentos e às injunções dos saberes que durante tanto tempo nossa matriz de pensamento inferiorizou, invisibilizou ou apagou. Precisamos aprender a observar nossa branquitude como uma poderosa, eficaz e terrível ficção histórica engendrada – como nos ensinam Franz Fanon, Steve Biko, Abdias do Nascimento, Achille Mbembe e vários outros – pela mesma matriz epistêmica que inventou a negritude para, depois, colocar ambas nas posições de dominadora e dominada. Precisamos aprender a ver nossos corpos brancos e a entender nossa ciência “universal” como racializados e localizados, como nos revelam pensadoras e pensadores negros. Precisamos discutir concepções não colonizadas e não patriarcais de masculinidade, como nos propõe bell hooks. Precisamos aprender a enxergar a presença das religiosidades de origem africana e das religiosidades indígenas na produção de subjetividades, de identidades de gênero e de sexualidades na América Latina, como nos mostram as traveco-pensadoras Tertuliana Lustosa e Hija de Perra. Precisamos repensar as concepções e as políticas de segurança pública a partir dos corpos negros que vivem nas periferias, a partir das análises e ideias que nos legou o corpo negro, feminino, bissexual, periférico, político de Marielle Franco (cuja voz não conseguiram e nunca conseguirão interromper!) e de perspectivas poderosas e não coloniais como a da necropolítica de Mbembe. Precisamos apender a adentar ontologias não essencialistas, como nos desafia o perspectivismo ameríndio, e aproximar-nos de outras compreensões dos agenciamentos de humanos e não humanos para pensar outros desenvolvimentos possíveis que valorizem a diversidade de seres vivos e não vivos ao invés de aniquilá-la, como apontam os pensadores e ativistas indígenas Davi Kopenawa e Ailton Krenak. Precisamos não só ouvir, mas sobretudo nos deixar transformar pelas Marias, Mahins, Marielles, Malês…
Já sabemos que à questão de Spivak responderam ao longo dos séculos e continuam respondendo, teimosas, inúmeras vozes. O subalterno não só pode, como fala. Queiram ou não, gostem ou não. A questão, hoje, é: pode, sabe e quer o hegemônico escutar?
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Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Antonino Condorelli
Texto incrível e necessário. Parabéns, Antonino!
Muito obrigado, Bia! Sigamos nessa escuta humilde, deixando nos transformar pelos modos de ser e de conhecer dos grupos subalternizados e descolonizando cada vez mais nosso pensamento e nossas vidas…