Pesquisadora reflete sobre a violenta dialética entre a colonialidade, encarnada na Ordem, e os povos e saberes subalternizados de Pindorama, expressões do Progresso, no atual contexto da barbárie bolsonarista
Por Joana Mercedes (Instagram: @joanamercedes_)
Quando Pindorama foi registrada estabeleceram-se nela dois povos: os que representavam a Ordem, que chegaram em caravelas vindas da Europa, e os que representavam o Progresso, parte dos quais já se encontrava nestas terras, enquanto a outra chegou em navios negreiros vindos da África.
O Progresso sempre tentou dialogar com a Ordem. Mas a Ordem não o ouvia, pois a Ordem não era capaz de ouvir ou conversar com nada que não estivesse consagrado por ela mesma.
Foram arrastando essa relação por muitos anos, mais precisamente 521 anos. A Ordem sempre distante e se colocando à força numa posição de superioridade. O progresso sempre à frente, pois a Ordem não o alcançava, por mais que corresse focada, mesmo se valendo de todo tipo de tortura, opressão e fuzilamento. Mesmo diante de tudo isso, o Progresso resistiu. Foi resiliente, concretizou sonhos, fez faculdade, estabeleceu metas e as alcançou.
A Ordem não aceitou as vitórias do Progresso e, por esse motivo, alienou parte do eleitorado do dele e colocou no poder um representante cruel, um ser incompreensível e sem tradução perante o bem. No sertão do Nordeste pindoramense era chamado de “Carcará Sanguinolento”; lá ele não ganhou as eleições.
A Ordem tratou de aniquilar tudo que o Progresso havia construído: escolas, universidades, trabalho, desenvolvimento social e econômico, etc. Foram anos jogados fora. Aos poucos, os representantes do Progresso que tinham se aliado com a Ordem perceberam o equívoco, o erro e voltaram a lutar pelo Progresso. Lembraram de quem eram filhos e a quem e ao que pertenciam. Entretanto, já era tarde: a Ordem já fizera muitos estragos, muito se perdeu em pouco tempo, mas o pior ainda estava por vir.
Os pindoramenses não contavam com algo aterrorizante. Uma “peste” que traria dor, angústia, desespero e luto. Uma pandemia se alastrava pelo país. Assim como as caravelas, boa parte dos contaminados pelo vírus veio da Europa, quase todos integrantes da Ordem. Chegaram ao país de férias, contaminando os representantes do Progresso que trabalhavam nas residências daqueles que se escondiam na Ordem.
O eleito não fez nada. Muito pelo contrário, ajudou a propagar o vírus com um discurso de morte e de modo irresponsável pediu a população de Pindorama que não cumprisse o necessário isolamento social, banalizou o uso de máscaras, estimulou o uso de medicações que não combatiam a doença, não comprou as vacinas que poderiam salvar vidas, participou de aglomerações e chamou a gripe mortal de “gripezinha”.
O representante mor da Ordem foi chamado de genocida, psicopata, entre outros adjetivos que foram motivos para se prender representantes do Progresso algumas vezes.
Os representantes do Progresso foram às ruas contra o representante mor da Ordem. Em toda Pindorama, houve manifestações contra o Palhaço da Morte, como ficou conhecido em alguns estados.
Apesar de toda luta do Progresso para se combater a pandemia provocada pelo vírus mortal, o Progresso não resistiu, agonizando 540 mil vezes.
Todavia, isso não foi suficiente para o representante da Ordem, que a sob qualquer pretexto zombava da morte do Progresso, chegando a imitar a insuficiência respiratória que este passou nas suas 540 mil perdas.
Mas a Ordem não contava com a sensibilidade e inteligência inerentes ao Progresso. Este deixou uma carta de despedida aos sobreviventes que os representavam. Elaborou uma carta em versos prosados, estilizados, e não na prosa esperada pelo cânone literário. Sabia que a Ordem não teria condições de traduzir, pois lhe faltava o coração, órgão essencial ao discernimento e compreensão do que é belo e ético. Sabedoria do Progresso, que já fizera isso outrora contra a Ordem e essa, sem perceber, em certos momentos “medicianos” declamou ou cantou o que o Progresso criava.
Eis a carta:
Foi Anastácia quem me falou
A senzala ainda ronda a tua casa,
A tua cama,
A tua cozinha.
A dependência de empregada enxuga as lágrimas que limpam o teu chão.
A tua vergonha se esconde em meus seios.
A pátria gentil se embrutece e esquece o que realmente sou, somos…
Lembra do Abril ou do Moá?!
– Agora, no silêncio,
chora a Marielle.
Quanto maior o nosso silêncio, mais estarrecedor é o som das nossas correntes.
Ai, aí a dor!
Há de ter dor em cada passo do teu Brasil gentil e largo.
Na espera da esperança que embora preta se vista de verde e amarelo para esquecer de quem realmente somos.
Espero no escuro, jamais no claro.
Esses canteiros que são pretos,
Esses presídios que são pretos…
– Pintamos de preto a periferia,
Porém, a nossa bandeira ainda é verde, amarela, azul e branca,
apesar de carregar o vermelho do que restou do nosso Abaeté.
Índio chorou e morreu no solo que por ser marrom se queira verde.
As estrelas ou continentes são o lacrimar do beijo ateu.
Passo fundo, rumo ao abismo do mundo.
Pindorama, esqueceu dos frutos do solo teu,
dos seus mortos, que sendo vermelhos ou pretos,
partiram sem a sua benção.
Chove lá fora!
– Olhe para o céu, meu amor,
soluça agora a mãe gentil.
Após a escrita da carta, o Progresso delirou antes de partir. Viu uma imagem estendida, começou a visualizar sua cura, sua vitória. Teve como miragem o povo de Pindorama unido, vacinado contra o vírus, expulsando a Ordem como uma utopia possível, após uma distopia em curso. O Progresso vencia.
Com o fim da Ordem o que imperava era o bom e justo, as ciências e suas ramificações, a arte e suas expressões. Pindorama havia encontrado felicidade em demasia. Com o fim da Ordem, as ciências jurídicas não se manifestavam mais pela Ordem ou em nome dela, mas pelo Progresso e em nome do Progresso. O Progresso foi estabelecido!
Todas as vezes que o Progresso se lembrava da Ordem e pensava que poderia lhe dar outra chance, ele olhava para o céu e começava a contar as estrelas e percebia que não existiam somente as 27 estrelas de antes: agora eram 540 mil. Então desistia do perdão, bem como em manter em Pindorama a Ordem, pois sabia que a dor da morte caminhava unida a ela.
Infelizmente, esse era o sonho do Progresso que não foi ainda reanimado, nem se tentou ressuscitá-lo, apesar de tamanho amor.
Espera-se que os representantes do Progresso tenham acesso à carta e possam traduzi-la e explica-la aos representantes da Ordem, na tentativa de fazer-lhes perceber que precisam mudar de lado, antes que não haja mais sobreviventes em Pindorama.
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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