Como substâncias utilizadas para matar insetos nas lavouras afetam as aves que por lá passam?
Em janeiro de 1958, Rachel Carson recebeu uma carta de sua amiga Olga Owens Huckins. Nela, Olga descrevia a destruição de um santuário de aves próximo a sua casa pela aplicação aérea de DDT. A aplicação de inseticida, que visava matar os mosquitos, havia matado todos os insetos e também as aves. Aquele santuário para a preservação da natureza havia sido silenciado, nenhum pássaro cantava mais por ali. Esta carta encorajou Rachel Carson a escrever a obra que inaugurou a causa ambientalista, A Primavera Silenciosa. Agora, mais de 50 anos de sua publicação, novos dados demonstram que mesmo quando não matam, os inseticidas silenciam nossas primaveras.
Dentre os muitos tipos de agrotóxicos que aplicamos em nossas plantações estão os pesticidas. Estes agrotóxicos tem como alvo o sistema nervoso do inseto, que geralmente morre paralisado. Para isso, estas substâncias de alguma forma interferem na comunicação entre neurônios e células musculares, que medeiam tanto nossos movimentos voluntários como involuntários. Sempre que insetos são intoxicados com uma certa quantidade de pesticidas, morrem sem conseguir respirar ou se mexer. No entanto, insetos não são os únicos animais que possuem sistema nervoso. Não seria nenhuma lógica mirabolante imaginar que pesticidas também causam toxicidade aos sistemas nervosos de mamíferos, aves e qualquer outro animal que esteja em seu caminho. Mas nos anos 90, a indústria de agrotóxicos lançou uma nova classe de pesticidas que se liga e causa uma super ativação de receptores nicotínicos nas sinapses, os neonicotinóides. Dentro da propaganda para o seu uso, estava a promessa de que os neonicotinóides se ligam com mais afinidade aos receptores nicotínicos de insetos do que os de vertebrados, sendo especificamente tóxicos aos primeiros. Mas se as doses de neonicotinóides são baixas para matar um vertebrado, será que podem ter outros efeitos?
A migração de pássaros durante a primavera coincide com a época de plantação de diversas cultivares no hemisfério norte. Assim, na época em que estão sobre grande demanda metabólica, para sustentar todo o esforço de suas viagens continentais, estes animais cruzam lavouras pulverizadas com grande quantidades de pesticidas direcionados para matar insetos. E foi por isso que Eng e colaboradores resolveram testar se doses muito baixas do nicotinóide imidacloprido (entre 3 e 10% da dose média necessária para matar) poderia alterar o comportamento migratório do passarinho Zonotrichia leucophrys lá no Canadá. Durante sua migração, estes pássaros param para comer e ganhar peso. Mas acontece que passarinhos expostos a imidacloprido perdem massa e gordura muito rapidamente, em horas. E a causa desta perda é a indução de anorexia. Pássaros expostos a 3,9 mg de imidacloprido para cada kg de peso do seu corpo comem em média 70% menos comida do que os animais controle. Graças à perda de peso, os passarinhos expostos a imidacloprido ficam parados mais dias antes de voltar a migrar. Assim, nicotinóides aplicados às nossas lavouras causam alterações fisiológicas nas populações de pássaros, mesmo em doses sub letais, diminuindo a chance de que os mesmos consigam chegar ao seu destino final e reproduzir. E os campos para onde eles iriam migrar no inverno logo se tornarão silenciosos.
Na Europa, três nicotinóides mais utilizados, como o imidacloprido, da Bayer, tiveram seu uso ao ar livre proibidos no ano passado. Isso por que esta classe de pesticidas estava causando o colapso de populações de abelhas. Nós no Brasil importamos cerca de 7,9 mil toneladas de imidacloprido em 2018. E assim caminhamos para não ouvir mais as aves que gorjeavam como nos tempos de Gonçalves Dias.
Referência:
Eng ML, Stutchbury BJM, Morissey CA (2019) A neonicotinoid insecticide reduces fueling and delas migration in songbirds. Science365:1177-1180. https://science.sciencemag.org/content/365/6458/1177
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Eduardo Sequerra
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