O covid-19 surge como catalisador de uma política de inimizade alimentada pelo estado de exceção e que expande a soberania ao ponto de estabelecer quem vive e quem morre
A noção mais clara da evolução da pandemia do covid-19 pode ser dada por uma retrospectiva das notícias na mídia: primeiro foi a chegada do vírus no Brasil, depois o contágio comunitário e agora os enterros coletivos… E tudo isso permeado por vários episódios aterrorizantes. As carreatas da morte que pedem o fechamento do congresso e os buzinaços que insistem em quebrar o silêncio nas portas das UTIs. A pandemia expôs e acentuou a face mais horrenda da necropolítica que assalta os morros e periferias há anos.
O conceito de necropolítica foi estabelecido pelo professor Achille Mbembe, que resumidamente a definiu como uma política de inimizade alimentada pelo estado de exceção e que expande a soberania deste ao ponto de estabelecer quem vive e quem morre. Ou seja, o Estado que deveria proteger a todos usa a expressão da morte para beneficiar poucos.
E o covid-19 surge como catalisador de todo este processo. Com a lotação dos leitos de UTI, a definição entre os que têm direito a respirador passa a ser a decisão entre os que podem e os que não podem seguir lutando pela vida.
A naturalização da morte passa a ser estabelecida pelo argumento de complicações prévias dos pacientes (diabetes, idade, etc)… No entanto, a origem de todo esse processo é bem diferente do que seria a seleção por leitos de UTI.
A dialética da necropolítica parte do não atendimento à população pobre e vulnerável em suas demandas mais básicas (ao invés de confrontamento ao vírus, as pessoas lutam por comida) e de uma guerra de informação que tende a favorecer o mercado, colocando em risco o afastamento social e permitindo com que números de contaminados e mortos cresça descontroladamente.
O retorno a uma condição de normalidade forçada para este momento (com o retorno do comércio e escolas) reforçaria ainda mais o pico de nossa (já confusa) curva e funcionaria como uma sentença de morte a todos aqueles que se espremem nos ônibus, metrôs, salas de aula e em filas de banco (na nova luta por seus 600 reais).
Com a nova realidade de lotação das UTIs por todo Brasil, toda e qualquer tentativa de alimentar o mercado será no sentido de criar mais covas e rechear estatísticas de mortos (sejam eles por insuficiência respiratória ou covid – o que não muda o resultado deste grande desastre). No final, serão vidas jogadas fora. Vidas estas que o Estado tem obrigação em proteger. O mercado não respira, não tem gripe, não pulsa e nem chora de dor. As pessoas, sim.
A coluna Ciência Nordestina é atualizada às terças-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br). Use a hashtag CiênciaNordestina.
Leia o texto anterior: O planeta não é mais o mesmo
Helinando Oliveira é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) desde 2004 e coordenador do Laboratório de Espectroscopia de Impedância e Materiais Orgânicos (LEIMO).
Helinando Oliveira
Deixe um comentário