Entrevista com o biólogo Renan Bantim curador e paleontólogo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, Ceará
A entrevista dessa semana foi realizada com Renan Alfredo Machado Bantim. Renan é Biólogo pela Universidade Regional do Cariri (URCA), com Mestrado e Doutorado em Geociências, ambos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, Renan é curador e paleontólogo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens (MPPCN), da URCA, localizado na cidade de Santana do Cariri. Ele atua na área de Paleontologia de Vertebrados, de Pterossauros e da Bacia do Araripe. O paleontólogo possui ainda experiência em Paleohistologia, principalmente com fósseis de ovos e Pterossauros do Brasil e da China. Além disso, domina as técnicas de morfometria geométrica em fósseis, análise filogenética e preparação química e mecânica de fósseis.
Coluna do Jucá: Você poderia falar um pouco a respeito do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens?
Renan Bantim: O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens é um pequeno museu localizado no município de Santana do Cariri, no estado do Ceará, distante 535,8 km da capital Fortaleza. Ele foi criado em 18 de abril de 1985, pelo então prefeito municipal e professor, Plácido Cidade Nuvens, tendo sua inauguração em 26 de julho de 1988. No mesmo ano de sua inauguração, o museu foi doado por comodato à Universidade Regional do Cariri, que desde então administra e coordena as ações de pesquisa e extensão do museu. Através do Núcleo de Difusão Tecnológica, o museu oferece regularmente cursos, treinamentos, encontros, palestras e representa um ponto de apoio logístico para pesquisadores de todo o mundo. Também fazem parte desse Núcleo: um acervo bibliográfico especializado (Geologia, Biologia, Paleontologia, Química, Física, entre outros), um centro de intercâmbio científico, uma videoteca e uma sala de recursos audiovisuais.
O Museu de Paleontologia mantém projetos de escavações permanentes de fósseis em toda a Bacia do Araripe, bem como coleta sistemática de fósseis nas frentes de escavações do calcário laminado, nos municípios de Nova Olinda e Santana do Cariri. Esse programa é a principal ferramenta contra a exploração clandestina e o tráfico de fósseis na região. O museu recebe, em média, 2.000 visitantes por mês, sendo um dos principais centros de visitação da região do Cariri. Seu atual acervo abriga vários grupos de fósseis, tendo como representantes: troncos petrificados (por silicificação), frondes de Pteridófitas, ramos e cones de Gimnospermas e flores de Angiospermas; moluscos, artrópodes (crustáceos, aranhas, escorpiões e insetos); peixes (tubarões, raias e diversos peixes ósseos), anfíbios e répteis (tartarugas, lagartos, crocodilianos, pterossauros e dinossauros). Todo esse material fossilífero é proveniente da Bacia do Araripe, sendo o MPPCN, o único desta categoria no Brasil.
Coluna do Jucá: Como é sua atuação enquanto curador e paleontólogo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens?
RB: A minha atuação no MPPCN começa no ano de 2008, na época estudante de graduação em Ciências Biológicas, quando pude participar do Simpósio de 20 anos deste museu, onde tive a oportunidade de conhecer pessoalmente as maiores referências sobre a Bacia do Araripe no mundo. Após este evento, pude contribuir com uma grande reforma estrutural e de exposições do MPPCN, iniciada em 2009 e concluída em 2011. Coincidentemente, 6 anos depois retorno ao MPPCN como paleontólogo, para dar início a uma atualização em todas as exposições, além de uma catalogação e curadoria da reserva técnica deste museu.
Ao longo desses anos de trabalho no MPPCN, pude perceber a importância deste museu para a comunidade local e para o estado do Ceará; diversos visitantes vêm à cidade de Santana do Cariri em busca de conhecer os fósseis e ver como um peixe virou pedra. Este público (desde crianças e adolescentes em excursões escolares; famílias com pais, filhos, avós e até bisavós; além de cientistas de diversas partes do mundo) mostra o quanto é plural o fascínio pelos fósseis da Bacia do Araripe. Em relação à curadoria do museu, pude qualificar um grupo de técnicos e monitores para a reestruturação da reserva técnica do MPPCN; de 4.500 fósseis, dobramos a quantidade para 9.000 espécimes, recuperando espécimes fósseis que ainda não possuíam número de coleção, advindos de obras (empreendimentos, construções de estradas, ferrovias, barragens), ou que estavam em depósitos temporários após a finalização de processos federais de repatriação de fósseis (operações da Polícia Federal ou Procuradoria Geral da Republica). Após esta etapa, notamos que o MPPCN possui na sua coleção 21 espécimes que representam holótipos, um número ainda pequeno em relação a outras coleções e até mesmo ao número de espécies fósseis descritas para a Bacia do Araripe, mas que mostra a capacidade deste pequeno museu de preservar o acervo e patrimônio fossilífero da Bacia do Araripe.
Coluna do Jucá: Os dinossauros representam uma espécie de “pop-stars” da paleontologia. Eles fazem parte do mundo da imaginação da maioria das crianças, isso independentemente da origem, religião, classe econômica e das demais diferenças que possam existir entre elas. Certamente, muitas dessas crianças um dia já sonharam em se tornarem paleontólogas. Algumas, certamente, conseguiram. Outras, por sua vez, mudaram de percurso ao longo do caminho. Em que sentido os dinossauros e a ludicidade em torno deles influenciam no processo de educação científica das crianças que visitam o museu?
RB: É um fato que dinossauros já fazem parte do imaginário das crianças há um certo tempo, principalmente devido à indústria do cinema, com os filmes da série Jurassic Park/Jurassic World, ou games como Dino Crisis e até mesmo diversos desenhos infantis. Talvez por serem animais que não possuem mais representantes atuais da maioria das linhagens (T-rex, Saurópodes, Triceratops entre outros), restando apenas as “aves”; a ideia de que grandes predadores e animais gigantes habitaram este planeta é um excelente tema para envolver o lúdico das crianças.
Ao voltar os olhos para o público infantil que visita o MPPCN, podemos perceber que a busca pelos dinossauros é o que realmente causa a ansiedade antes da chegada às salas de exposições; à medida que as crianças passam pelas salas com plantas, insetos, aranhas e escorpiões, crustáceos, peixes, tartarugas, pererecas, crocodilos e pterossauros, elas percebem que a vida pretérita não apenas se resumia aos grandes dinossauros. Este é um dos principais objetivos do corpo educativo do MPPCN, trazer para o público infantil várias informações, desenhos, esquemas e reconstruções artísticas da fauna e flora que ficaram preservadas de forma excepcional na Bacia do Araripe, e que os dinossauros tinham um importante papel ecológico na cadeia alimentar daquele ambiente antigo. Em um salão principal temos em exposição três reconstruções artísticas; dois dinossauros: o Angaturama limai (um espinossauro predador) e um Santanaraptor placidus (um primo do Tyranossaurus rex) e um pterossauro, o Thalassodromeus sethi. Neste salão as crianças podem observar os animais em tamanho real e como eles interagiam entre si. De uma maneira geral, pode-se dizer que o publico infantil sai do MPPCN conhecendo um pouco mais sobre a pré-história e a respeito de outros animais e plantas, também importantes, que conviveram com os dinossauros.
Coluna do Jucá: Em 2018, a prestigiada revista Science publicou uma carta assinada por 21 pesquisadores, na qual estes afirmaram que “o incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro é uma metáfora do estado atual da ciência no Brasil”. Agora que passou a comoção que tomou conta da população após o ocorrido, vislumbra-se o cenário pós-incêndio. Qual o seu sentimento em relação a esse cenário?
RB: A associação do incêndio do Museu Nacional com o atual estágio da ciência no Brasil tem algo em comum. É notável que na última década o Brasil deu um salto no avanço em pesquisas acadêmicas nas mais diversas áreas, colocando o nosso país em um patamar mais respeitoso em âmbito mundial. O foco na formação de pessoal foi intensificado, criando-se novas universidades, novos cursos de graduação, mestrado e doutorado, investindo-se em projetos de pesquisa e formando novos profissionais. Por outro lado, as estruturas de universidades, centros de pesquisa e museus foram sucateadas, sendo a maioria da verba recebida pelas universidades, destinada apenas para manter o funcionamento das mesmas. Nos últimos anos, após as etapas iniciais das crises política e econômica, esta situação vem piorando, com a troca de governos e a descontinuação de programas os museus foram ficando cada vez mais escanteados.
Agora, após a tragédia no Museu Nacional, algumas ações foram tomadas, como a criação de um grupo de trabalho para arrecadação de fundos para museus e a elaboração de editais específicos para a segurança. De um certo modo esta tragédia trouxe à tona o descaso com os museus brasileiros, com dezenas de outros em situação pior ou bastante semelhante ao Museu Nacional, talvez quem sabe trazendo um pouco mais de responsabilidade para cada cidadão brasileiro pelo patrimônio material e imaterial do nosso país que estão guardados em nossos museus. É o velho ditado, só se aprende errando, quem sabe agora nós não aprendemos a valorizar mais os acervos e nossos museus?
Coluna do Jucá: Há um problema muito antigo, silencioso e persistente que é a retirada ilegal de fósseis do país. Uma parte considerável, e talvez até imensurável, do registro paleontológico do país está localizado em museus ao redor do mundo ou então com colecionadores particulares. Há solução à vista para essa questão ou o descaso, a ignorância e o desconhecimento impedem a adoção de medidas para resolver ou, ao menos, minimizar esse problema?
RB: Sim, o tráfico de fósseis é um problema que se arrasta ao longo de décadas, sem uma solução eficaz e permanente. Esta situação se repete não somente no interior do Ceará, na Bacia do Araripe, mas em outras regiões do Brasil, como em Tocantins, além de outros países como China, Mongólia, Marrocos etc. Na década de 1980, o tráfico e o comércio de fósseis era explícito nas cidades do interior cearense e até mesmo na capital Fortaleza, onde os fósseis eram retirados das jazidas e vendidos em feiras livres a preço de banana. Após o decreto de 1988, quando os fósseis foram considerados bem da união, o comércio e o tráfico de fósseis se tornaram ilegais, e a maioria da população que cometia este ato, não mais o praticou.
Décadas se passaram e o tráfico atualmente é requintado e específico. A maioria dos fósseis traficados são oriundos dos calcários laminados da Formação Crato. O comprador, na maioria das vezes estrangeiro, mas por vezes pesquisador e professor de renomadas instituições brasileiras; já possui uma lista do que quer receber em seu país; alguns trabalhadores locais separam estes espécimes, um preparador especializado realiza a preparação do fóssil, removendo toda a rocha que cobre o espécime e o deixando pronto para ser exposto, em seguida o atravessador leva os fósseis da região em caminhões em direção a portos, para serem exportados em contêineres de mangas, laranjas e bananas. Esta realidade é bem conhecida, especialmente pela Polícia Federal, como pode ser lido na entrevista que mostra o assunto.
O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens atua constantemente na educação da sociedade visando interromper o tráfico de fósseis. Os guias do museu (corpo educativo) são filhos e netos de ex-peixeiros (nome dado aos antigos traficantes de fósseis), e já levam essa educação para suas casas, repreendendo os familiares e amigos de delapidarem este patrimônio da humanidade. Além disso, o MPPCN conta com o programa Jovem Paleontólogo, onde adolescentes estudantes das cidades de Nova Olinda e Santana do Cariri (cidades com maior índice de tráfico de fósseis), atuam semanalmente nas pedreiras de exploração, visitando lavra a lavra, conversando com os trabalhadores, passando conhecimento sobre a fauna pretérita preservada naquelas rochas e afirmando a importância de os fósseis estarem na região do Cariri e no Museu, para que sejam vistos por todos. Estas ações têm diminuído consideravelmente a venda e o tráfico de fósseis da Bacia do Araripe.
Coluna do Jucá: Cada espécie biológica é única e que carrega consigo um valor ímpar para biodiversidade do planeta. A extinção, por sua vez, é uma condição irreversível. Diante dela há, muitas vezes, um sentimento de consternação. A partir desse sentimento, decorre-se então uma incumbência, a da preservação. Diante desse contexto, o registro paleontológico não seria uma ferramenta mais que poderosa e apropriada, embora altamente negligenciada, para a educação científica de crianças e jovens do país com vistas à preservação da biodiversidade?
RB: Sim, o fóssil é um excelente objeto para comparação e visualização de como a extinção pode afetar determinados grupos de organismos e as estratégias que estes organismos desenvolveram ao longo do tempo para fugir de determinadas situações. A extinção é um processo na maioria das vezes natural, causado pela dinâmica interna e externa do Planeta Terra, tendo o homem contribuído com a extinção dos organismos apenas nos últimos milênios. Talvez, esta seja a comparação que deve ser feita: se anteriormente as extinções já causavam uma grande devastação na biodiversidade do planeta, após a ação humana isto se intensificou, e daí surge a ideia de se preservar.
Apesar disto, a fossilização é um processo que ocorre independente de processos de extinção em massa; aconteciam há milhões de anos e continuam acontecendo atualmente, associados à dinâmica externa e à formação de rochas sedimentares; então tudo que era levado e carreado para ambientes de deposição tinha a possibilidade de se fossilizar, independente se havia morrido naturalmente ou por um grande processo global.
Referência:
O Povo – Polícia Federal apreendeu 32 mil fósseis do Ceará em 10 anos
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Leia o texto anterior: Sem consciência científico-social, restam-nos as tragédias coletivas
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá
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